segunda-feira, 30 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dezenove


O salãozão do purgatório é uma dessas lojas de departamento, cheias, em dia de liquidação. Várias pessoas perambulando desesperadas, procurando por algo que não sabem, que não fazem a menor ideia do que seja, mas há lá um capricho da pechincha e da boa compra. O ar condicionado, pifou. E aquele cheiro do carpete subindo pelos ares, com os ácaros todos.

Todos sabem que o purgatório é a antesala. De lá partem as duas escadas rolantes definitivas, na versão clássica. Como sou um iconoclasta contumaz, mas que sabe das cousas, explico para vocês que são diversas escadas. Várias, múltiplas. E vão para vários lugares, quentes, muito quentes, frios, muito frios e alguns até tem quarto e sala com vista para a Baia de Guanabara. E tem sim um São Pedro, ou um sósia dele, um velhinho boa praça, mas estressado, com um molho de chaves do tamanho da arca, que comanda a bagaça toda.

No alto falante, vez por outra, uma voz chama os transeuntes para as suas entrevistas. Quando a voz é rouca, tipo a Demi Moore em "O primeiro ano do resto de nossas vidas" ou o "Sobre ontem a noite", pois bem. Mas tem vez que a voz é daquelas gravadas por computador para informar os passos para proceder uma reclamação numa dessas concessionárias de serviço público... dá até para sentir o cheiro de enxofre.

O fato é que há telões nas salas de espera das entrevistas do purgatório. Sim, imensos telões. Em todas passam jogos de copa do mundo, sim, de futebol. É espantoso acompanhar a reação das pessoas quando percebem a barca que estão. Mas não se enganem... a vida, ou o pós-vida, no caso, tem suas picuinhas, suas trapaças, suas puxadas de tapete.

Na salinha dos casos quase perdidos, a narração é do Galvão Bueno, num desses jogos do Brasil em que fomos eliminados, perdendo de virada. Com entradas e tiradas do Tiago Leifert nos intervalos, fazendo piadinhas e um comercial do Luciano Huck vendendo crédito de carbono. "Tuuuudo a ver.". São Pedro nem precisa dar muitas dicas aos arcanjos: a saída desta sala leva direto a uma sala de reunião do PMDB, numa discussão sobre cargos no governo e tempo de televisão na propaganda eleitoral.

Mas há outros cantos. Tem um lindinho e adianto o cenário, para quando chegar sua vez nos sintamos em casa: Você escolhe o narrador, e pode escolher o Fiori Giglioti, por exemplo. E escolhe o jogo pra assistir. E só jogões. Esta salinha, Pedro deixou sereias e sereios servindo canapés e tem até um vinhozinho maroto. Cheguei bem na hora que um dos orixás trouxe um vetê novinho em folha com um sorrisão no rosto. E ouvi a entidade bem feliz, informando a geral: "Chegou!!!! Chegou o Argélia e Alemanha da Copa do Brasil!!!!".

Os que estavam na salinha se alvoroçaram e até ouvi um "oba". Em pleno purgatório.



Amaraladas na Copa 14 - Dez Mais Oito


"Tia....". Tia, não. Professora.

Nessas minhas manias de reduzir as cousas numa linguagem que eu possa entender, gosto de imaginar as Copas como um imenso interclasses, aqueles nossos campeonatos da escola, na época do ginásio.

Quem nunca entrou numa quadra, porque os campeonatos interclasses costumam ser de salão, num torneio que reunia da quinta à oitava, quando os pequeninos, recém saídos do primário, nem beijo selinho ainda, eram obrigados a enfrentar por essas tabelas desalmadas, aquele time da oitava séria, todo mundo no fatorial, barba, gazeta, fura olho?

O time da quinta era até muito bom. Pelota de pé em pé, saída de bola bem feita, cada um marca um, pivô e eteceteras e tals. Goleava impiedosamente naqueles recreios com futebol qualquer time e até faziam chacotas quando colocavam na roda os demais. Era impossível não pensar que seria sempre assim e ter esperanças. O time é bom.

Aí chega o campeonato. O interclasses. Onde moram perigos. Onde há torcida. Há beijos de recompensa. Há craques, prêmios, olhares de inveja e cobiça. Bola rolando e...

O fato é que o timaço da quinta série ganha uma, dá show e todos comentam que os meninos são colossais. Vão vencer qualquer obstáculo. Até que naquela partida decisiva, intervalo entre aulas, todo o colégio assistindo a peleja, um a zero, o time da oitava empata. No finzinho. Depois do grandalhão ter dado uma cusparada feia no chão, depois de uma dividida mais ranheta, depois de uma discussãozinha com o professor que é o juiz, porque não marcou falta naquela jogada ali. E antes do sineta, óbvio, o gol evidente do time mais experiente. Feito com calma, quando tudo já era coração. E foi daquele menino lá, justo aquele que eu queria ser, justo aquele lá que já ia receber o melhor dos beijos...

México, Chile e Colômbia devem saber na alma o que é este sentimento. Brasil, Alemanha, Argentina, Itália também sabem que podem resolver situações improváveis antes da sineta. As vezes não funciona, é verdade, mas é muito raro não funcionar para todos os times da oitava série concomitantemente. Eles parecem, inclusive, combinar entre eles quem vai ser o responsável por extirpar o coração do romântico do momento, furará os olhos como já furaram uma Dinamarca, uma Hungria, uma Suécia, um Chile, um México... uma Colômbia. 

Mas e a Espanha? Bom, a Espanha é aquele time de sexta ou sétima série, que vez por outra belisca o caneco porque os times da oitava se mataram entre si. Mas depois, no outro campeonato, ficam lá na ansiedade entre o pega-pega, esconde-esconde e o gato mia...

E... acabou de sair um gol da França. Numa pipocada do goleirão.
"Tia........".


Nota do Feiceditor: Sabemos que por força da LDB o ensino fundamental vai hoje até o nono ano. Que antiga quinta é sexta, a antiga oitava é nona. Mas a memória é minha então mantenho no ferro velho.



domingo, 29 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dezessete


Devo ser uns trinta anos mais velho que o Felipe. Sou de 1972 e ele deve ser de 75, acho, creio, imagino. Camarada. Gosta de futebol como poucos e gosta de ler, o que torna nossa amizade fácil, porque eu escrevo como um desesperado querendo fugir um cadinho das ilusões, construindo outras. 

De humor fácil, torce para o Fluminense e tem aguentado bem as tirações de sarro sensacionais que estamos a lhe oferecer, aporrinhando por causa da meleca do campeonato do ano passado. Na nossa diferença de idade, o meu Fluminense de todos os tempos é o de Assis e Washinton. O dele, o de Renato Gaúcho e os times recentes, que ganharam alguma cousa, admito. Mas nossa maior diferença futebolística é a seleção.

Felipe é Romário. Para ele o escrete de 1994 reúne todas as condições para jogar no firmamento. Além do mais o técnico era Parreira, aquele do Flu de Assis. Já este velho senhor parou no tempo. A escalação é de um time que não ganhou uma copa. O treinador também jogou e treinou o Flu, num tempo imemorial de décadas e décadas anteriores à pisada na Lua. Esta diferença é, de certa forma, a peneira com que conseguimos analisar e olhar o futebol. Há aqui um encantamento diverso, que pode parecer só uma questão poética, mas sabemos que não. 

A nostalgia, e convenhamos que 1994 já se pode considerar nostalgia, é um sentimento que alimenta, apaixona, nos faz fazer músicas, canções e saudades. Saudade é a palavra de nossa língua que tem um sabor diferente, aquele cheiro de café sendo coado enquanto esperamos a fatia de pão. Mas ela também nos paralisa, em muitos aspectos. Ficamos muitas vezes ali naquela tampa de refrigerante Gini, chutando contra uma parede que não existe mais.

Por isso, mesmo tendo um outro time, um outro time, o mesmo Parreira, é verdade, os olhares e percepções - e a forma de torcer - tem uma cor diferente. As vezes antagônica, assustadoramente antagônica. As vezes complementar. Sempre uma cerveja, uma porção de colesterol e umas outras cervejas e estaremos ali, no eterno mesa redonda futebol debate de nossos eternos domingos a noite, mesmo sendo segunda feira.
O bom desse feiçobuco é que a gente pode dinamitar essas bobagens, explodir como biribinhas. Que se a falta da cerveja é um problema, aqui se dilui um cadinho. 

Mas copa é copa. E o Felipe é desses tarados compulsivos. Comprou zilhares de ingressos, torrou ordenados em passagens, quase não drome para entrar no sítio da Fifa e põe na pilha todo mundo: "Porra, é copa!". Ele quer, certamente que quer, que Alemanha, Holanda e Argentina (exceto a final, por razões de uma evidência solar), sigam no torneio. São as potências do futebol. E a copa é a hora do tira teima. E nosso time pode ganhar. Com Romário ou Neimar, temos chances sempre. 

Mas o que eu torço mesmo, pelo Felipe, sincera e honestamente, é ter um jogo da Argélia com ele lá na arquibancada. Ganhando ou perdendo, naquele canto todo de parece o comemoração de fim do mundo. Que o México todo cante e que voem bigodes, zapatas. Com o Sócrates batendo no cantinho de Zoff. E a Suíça, assim como naquele mundial para imberbes menores de dezessete anos, lá na Nigéria, já no nostálgico 2009. consiga o feito heróico de derrotar o time com Neimar, que no caso desta copa, o time de Messi.

Pode parecer pouco. E pode até ser que não. Mas é assim mesmo.

sábado, 28 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XVI


A bola não entrava. Nunca entraria era minha modesta opinião. Cricri, chatonildo, um lado perverso da minha alma ficava lá, flertando com a tragédia, namorando o infortúnio, quase um prazer. Senti ali uma novela já conhecida, estranhamente, em torneios anteriores. O time faz um bom primeiro tempo para cair na mais funda depressão, atados os ânimos no chão - assim como na derrota para a Holanda, assim como na derrota para a Argentina de Maradona. Era isso e estava escrito que seríamos eliminados. O Chile jogava melhor, cozinhava o galo como que esperando a hora para degolar os pescocinhos. Aquela gente ruim que vaiou o hino chileno, gente estúpida, merecia esse fim. Torcidinha de meleca, muito orgulho e amôooor. Nojo. E o Felipão e ....

Aqueles olhos de jaboticaba me fitavam. Queriam alguma resposta. Algum alento. "Um golzinho." "Só um golzinho, pô.". O Grande ali, no sofá, me lembrando enfim de uma outra cousa, de outros mundos, outras variáveis, códigos, valores. "O que você acha, pai?". Eu acho que esses éguas todos aí deviam logo marcar esse segundo gol, cascalhos! Que esse Felipão só pode estar de jeriquismo quando troca um segundo volante por outro: "Pimba!!! Um volante por outro? Depois vai pra prorrogação e perdemos uma substituição!". "Vai!!!! Cuidado, pombas!!!!".

Carambas, caçarolas, cacildas, frituras todas: a bola não entrava. O dez do time manquitolando, visivelmente incomodado com alguma dor. O time sem ele é, definitivamente, outro. Daniel, além de avenida, uma apatia toda de uma vida toda de uma lateral toda. E Oscar, um desaparecido. Puxa que puxa, a vaca e o brejo. "Filho... não está fácil." No fundo, bem no fundo, eu estava certo de que não ia dar...

O Pequeno se levanta. Vai para o quarto. Nem vê muito o jogo. Me abraça depois. Fica do meu lado. O Grande se levanta, bate bola com a bexiga verde. A casa parece perdida naquele futebol de devaneios. Os dois perceberam uma maracutaia paterna, com graça: não era que o pai sabia do jogo antes, era o rádio que estava uns três segundos na frente da narração da televisão. Ficaram colados no rádio. Silvério. E quando a casa se remoía indo pra frente da tv, um dos dois gritava: "Foi pra fora.".

A bola. E o Chile no ataque. Fim de jogo, fim da prorrogação, era o último lance. Depois, penales. Opa... sobrou livre pro chileno, ai, ai, ai, ai.... "Na traaaaaaaaaaaaave!!!!!!!". Foi na trave, pô! Saiu um palavrão, um ufa, uma benção. Os dois me abraçam. A loura nem mais falava. Só os olhos vidrados, numa estranha catarse. "Vai dar?". "Vai." A assertiva é minha, mais falada do que pensada.

Combinamos de desligar o rádio. Ficar só com a televisão. E combinamos tirar da tv a cabo e colocar na tv aberta, para acompanhar o resto da cidade. Não iríamos aguentar saber antes. E um consolo: "É.... iria tirar a emoção." Bah.... a emoção.

O quinto penal. A casa dá as mãos. Fazem cantos de "Júlio César" e eu, o chato, peço um coro de "Chuta pra fora, chuta pra fora!". Cantamos. Canto. Cantam. A pelota explode na trave. Correm pela casa, gritam na janela. Gritam muito na janela. E aquele abraço do Grande, funcionando como um obrigado.

Que venham as quartas de final. Que vai ter radinho, de novo.
 
 
 

Amaraladas na Copa 14 - Quinzão


Há certas cousas no mundo que deveriam ser tratadas com muito mais seriedade. Sim, digo dos programas de solidariedade internacional e das redes de proteção internacionais tentando mitigar o sofrimento de muitos, refugiados, expatriados, perseguidos. O combate intransigente contra a intolerância: de gêneros, de religiões, culturais, étnicos. E deveríamos cuidar mais, dentro desta lógica, de nossas identidades culturais, de nossas construções históricas - não só as construções com pedras, cimentos, argamassas, compasso, tijolo, cálculo, engenharia e tais - mas todas as construções que são fruto de nossa história: o samba, a valsa, o amor, a serpentina, a bola... o futebol.

Eu não entendo porque não é a ONU que organiza o futebol pelo mundo. Simplesmente não entendo. A ONU não é lá essas cousas, a gente sabe, tem muito mesmo o que melhorar, aprimorar, ser. Mas é uma construção importante, ao menos um indicador de que outro tipo de mundo seria possível, que outros mecanismos para resoluções de conflitos seriam necessárias, que não precisamos mais só de guerras. A ONU é um sonho. Mas é.

A FIFA é um balcão de negócio, principalmente depois que Havelange, aquele um que deveria ser esquecido pelo tempo e destinado ao ostracismo que nem o inferno é, é só esquecimento. Um pulha, com todo o perdão aos mais sensíveis e à família do cara. A federação deixou de ser o que Jules Rimet pensou um dia para ser só mais uma dessas multinacionais globais, cuja a pátria é só o crédito na conta de acionistas ou fedores assim. E o pior, a casa de tolerância monetária "organiza" uma daquelas paixões mortais que nos identificam como seres humanos - e, portanto, nos aproxima do sobrenatural, das deusas e deuses. Organiza e monopoliza um bem cultural da humanidade. E isso é lamentável, como processo histórico, político, econômico e cultural.

O futebol parou guerras e foi fundamento para outras. Mas não estamos falando só de um esporte que alimenta paixões. Estamos falando de nós. Estamos num Celtic versus Rangers. Estamos criando. Desde as regras simples do jogo, passando pelas inúmeras possibilidades que um time de onze jogadores, mais onze reservas, podem criar. Não é só para brutamontes, como vários outros desportos que necessitam da força física e do sobrepujar quase a morte o outro. Não é só talento e habilidade com os pés, senão não teríamos esta profusão de heróis cabeças de bagre, mas raçudos, onipresentes, volantes que desarmam e avantes que marcam com canelas, bicos de pé, púbis ou sei lá mais. Estamos a conversar e a construir, epopéias, vexames, desgraças, vitórias, derrotas, frangos, aritméticas, geometrias, sambas, livros, filmes, criação!!!!

A primeira fase da Copa no Brasil revelou muito disso. Que apesar dos fuínhas da federação, com suas echarpes no calor, com seu cheiro de colônia vencida, com seus arrotos, apesar dos cartões de crédito, dos bancos, das empresas de televisão, flui algo outro, que nos encanta. As histórias e as narrativas da copa de verdade, nas ruas, nos países, nos povos, no campo é fantástica. Sugiro aos mais incautos que persigam estas crônicas e relatos na copa em sítios como o Impedimento ou o Trivela. A história do garoto escocês que adora o atacante grego Samaras e o comovente depoimento do jogador sobre esta amizade. A façanha de Mondragon, o arqueiro cafetero que acaba de se tornar o jogador mais velho a atuar em um mundial, em três, na verdade. Drogba, que parou uma guerra em seu país. Eto se comparando a Obina e depois abraçando um moleque brasuca só pelo abraço. Das ruas de São Paulo, a cidade mais mau humorada do planeta as vésperas do mundial tomadas por uma intensa felicidade que se explica só e só pela bola, a esfera, a redonda, a menina, o balão. Do Maracanã, que vilipendiado, renasce num grito latino de chilenos,argentinos, uruguaios, colombianos e equatorianos. Do navio repleto de mexicanos. Das histórias de We Are The Bangladeshi Fans of Brazilian Football team, um país que não está na copa mas se reúne para falar, discutir, apreciar e se deixar encantar.

Do desespero dos conservadores americanos, porque lá nos States é o futebol que começa a despertar a multidão. Imaginem, no centro desta cultura mercantil, da vitória dos mais fortes, começarmos a apreciar o futebol como arte, como manifestação, como brinquedo e entenderemos as razões profundas deste temor. O futebol é outra cousa. E por isso mesmo não poderia ser tratado como simples mercadoria de gôndola.

Oxalá entendamos esta beleza e suas possibilidades, de fato infinitas... Merecemos. E muito.

A Fifa? Que vá a merda. Que é o seu lugar.

 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Quatorze


Eu sou advogado. Escolhi ser. Não gosto mais, é verdade. Mas me encanta a defesa do impossível, a boa tese, a justificativa plausível, o tentar explicar. Talvez seja um desvio de caráter: não sei punir.

Todo esse trololó acerca da punicção de Luisito me deixa acabrunhado e mais uma vez mergulho fundo nas minhas contradições, cada vez mais infinitas e "irresolvíveis".Por um lado a imagem está lá, para a via láctea toda acompanhar: Suarez desfere uma mordida no defensor italiano, daquelas fundas. A imagem fria e repetida, zilhares de vezes, espalha o pânico de todo pai e mãe com criança no jardim da infância - o pesadelo das mordidas. Fase oral, definitivamente.

Luisito é reincidente. Parece que pratica a mordida como se praticam as cusparadas na zona do agrião, os dedões nos fundilhos, as patoladas no saco alheio nas disputas dentro e fora da pequena área. A sujeira é imensa nessas horas de desespero. Um convento ficaria todo em claustro e penitência soubessem do que se faz ali no campo de jogo em nome do gol. O problema é que a mordida sempre será percebida. Não se escondem os dentes. E as marcas. De fato, a imagem fria estabelece a imposição da sanção. Não se pode fingir que aquilo ali não aconteceu, muito embora o juizão na hora do agá não tivesse visto nada ou reclamado de nada. Mas a imagem fria é fria, calculada e calculista. Qual palavrão saiu da boca do zagueiro, minutos antes? O que o cotovelo, esse ser de vontade própria, disse ao atacante naqueles átimos todos?

A utilização da imagem fria, depois do jogo, só para punir jogadores me parece um cadinho ofensiva no balacobaco todo. Porque se escolhem quais agressões merecem punições depois do jogo. Porque os escandalosos erros de arbitragem que resultam em gols ou em não-gols são coisas do jogo e não podem ser revistas. Porque o videoteipe é um remédio maravilhoso mas usado em demasia é cobardia inigualável. Um juiz mequetrefe que vê o lance oito vezes no teipe, com a ajuda do computador, do congela imagem, do recurso infinito fica a cagar regrinhas sobre o que está certo ou errado.... Ora, se vale para punir me parece que deveria valer, também, para reconstruir equívocos monumentais como aquele impedimentozinho maroto, aquele penalzinho cavado, aquela laranja toda limão cravo e tangerina. 

Sabemos que reconstruir lances seria matar o futebol. Porque essas pinimbas fazem parte do carnaval. Seria de bom alvitre estudarmos formas de correções destes eventos durante a partida. Mas, depois, finda a jornada, esfera inerte: acabou. 

Por outro lado, a mordida está lá. Fingir que ela não ocorreu e, no caso, que não é um caso de consultório, pois repetida, é passar a mão nas madeixas do craque e deixar pra lá, pobrecito ele não sabe o que faz. Sabe. E merece algum tipo de punição. Talvez devesse ser obrigado a se consultar, a ir a um terapeuta, uma mesa branca ou uma missa. Talvez um gancho de alguns jogos para se tratar. Mas, definitivamente, somente para punir é que vamos usar videoteipe é algo que não me desce. Nem com gelo e vermute. O exagero dos nove jogos, o banimento da copa e dos estádios, a retirada de credencial, tudo isso, de tão nojento, me abstenho de comentar. A FIFA é aquele figura ausente, que aparece para dar pito para justificar alguma síndrome de autoridade.

Agora.... atiçaram a onça. O Uruguay, na bola, no campo, no onze a onze, no banco - apesar do charme incomparável de Tabares, não assustaria muito, porque limitado. Godin e Cavani são pérolas, raras, mas talvez não fizessem verão. Mas atiçados, acuados, injustiçados - ok, ok, ok, sabemos que alguma punição viria, mas o excesso mata bem mais a planta - dão aquela adrenalina, aquele dopping psicológico, aquela serotonina mágica que faz o mortal sair pulando de viaduto, bancando o Buzz Lightyear...



quinta-feira, 26 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XIII


A primeira vez, sempre existem estas labaredas, foi num desses restaurantes de deixar todo o ordenado do mês. Acompanhava os quitutes que acompanhavam o café. Exótica. Uma fruta amarela, envolta numa casca seca. Um gosto gostoso como deve ser, daqueles que lembram pecados, pequenos amores. Ácida. Sabor.

"O que é esta fruta?". O garçom, solícito, mandou: "É uchuva. E é da Colômbia." Uchuva. Um nome bem diferentão e da Colômbia. Meu paladar afeto a histórias, cantigas, poemas e estranhezas adorou.

Depois de um tempo a frutinha tornou-se figurinha carimbada nos sacolões de classe média - essas feiras em locais fechados, no meio do caminho entre o mercado e a feira de rua, pequenos paraísos que nos fazem sorrir a alma e chorar bolsos. Mas aqui nesta nossa luta de classes, a espremida classe média, sofrida, aperreada, não gosta de sacolões e nem de uchuvas, são nomes que não condizem com nossas aspirações primeiromundistas, nosso complexozão de vira-lata de "europeu" nascido nos trópicos -todos temos sangue colonizador, ora pá - então inventamos os sensacionais "hortifrutis" e "physalis" para denominar sacolão e a pequena fruta. Assim, com ipsilone mesmo, que nós gostamos da letrinha com som de "i". Tá bem certo que o tal sacolão é basicamente um vendedor de hortaliças e frutas e que o nomezinho científico da uchuva é "physalis" mesmo. Mas isso tudo misturado e junto confessa muito de nossa amada raíz, dos patrícios e patriarcas - e matriarcas também, que gênero aqui ainda é um problemão sério que ninguém quer discutir - que habitam e nasceram e nascem na terra piratininga.

São Paulo é o máximo. A cidade pulsa, tem vida, coração, alma, noite, calor, frio. Uma mistureba dantesca. Tudo tem aqui. E há sim uma classe média espraiada pelos cantos e pelo centro da cidade. Sou um desses, desde sempre. Mas acho inevitável olhar para meu umbigo e dar risada, tentar aprender um pouco e sair da caixinha cômoda que o berço me deu, feliz. Vou no hortifruti e a caipirinha de physalis do Veloso, boteco que fica ali nas divagações da entre a estação Ana Rosa e a da Vila Mariana do metrô, pertim da caixa dágua da Sabesp, é de tomar de joelhos, rezando. Mas gosto muito de tratar a uchuva por uchuva, o sacolão por sacolão. Sou assim.

E escrevo todo este tratado para dizer que a Colômbia de Valderrama está prestes a um feito muito mais histórico nesta copa. Com o futebol mais alegre dos sudamericanos até aqui na copa, jogando com a leveza de James Rodrigues, está a um passo de nos empurrar uchuvas, para que não neguemos nunca mais que nossa cor também é preta, que fomos explorados pelo café, pelo ouro, pelo sangue, que mataram e escravizaram nossos índios, que matam e escravizam, que mataram e escravizaram nossos negros, que matam e escravizam, que se alimentam como abutres de nossa fé e tudo mais. Que o que nos une é o lamento e o sofrimento, mas a esperança e o caldo saborosíssimo da mistura. Que nossos complexos de vira-latas são parecidos - só um complexo do tamanho dos Andes explica Uribe. 

A Colômbia seguir no mundial, firme assim, bela assim, cantando assim, é a vitória dos nossos avessos. É a curimba que falta.

"Uchuva, por favor."


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Douze

Bastam dois pares de chinelo. E pronto, temos o essencial para um jogo de futebol. Os chinelos serão as traves. Dividimos os jogadores, quase sempre metade para cada lado e pronto: A esfera roda. Na praia, na praça, na grama do quintal, na rua, na sala de jantar. E lá seremos outros, ainda que por instantes. Eu já fui Zé Sérgio, o melhor jogador de futebol do planeta. Já fui Chulapa, Dario Pereira e Getúlio. Com o Grande e o Pequeno sou Rogéeeeeeeeeeeerio. Já fui Sócrates, Rocheteau e até Boniek. E fui o arqueiro camaronês Nkono. E Tilico, Élvio, Bernardão, Zé Teodoro. E enfrentei e joguei junto nas mesmas equipes de Zico, Biro, Jorge Mendonça, Dicá, Juari, Lato, Kempes. O Grande já foi Luis Fabiano, Robben e Cristiano Ronaldo. O Pequeno, Lucas, Messi e ambos já foram, vejam só, para desgosto paterno, Neimar.

Nesses jogos de chinelo pouco importa o que a crítica especializada acha dos craques, quais as notícias, quem vai casar com quem, se o jogador é bom de família, se cai na noite ou sei lá mais que saramaleques. Nessas horas o que realmente importa é o que o Zé Sérgio fez pela gente. E pronto. Mas a gente cresce....

Algo em Cristiano Ronaldo me incomoda. Me incomoda, e muito, a forma como que boa parte da crítica "especializada" trata o português. Cristiano é um jogadoraço, um gênio, decisivo, craque, sobrenatural. Mas o que importa é o cabelo, o olhar para o vetê, o exibicionismo e a arrogância. Ou as vitrines de roupa, perfumes ou sei lás que ele, como marca, ajuda a vender.

Cristiano Ronaldo, baleado, numa seleção frágil e fraca, no último minuto de uma partida foi capaz de um lançamento milimétrico, preciso, com açúcar, para encontrar a cabeça de Varela, no único instante possível. E não foi um gol inexpressivo. Foi o gol que manteve as tênues e limitadas esperanças portuguesas de classificação para a segunda fase. 

O mesmo locutor que faz a pilhéria, no desdém do gajo, enaltece outro, que é também craque, genial no campo, decisivo, sobrenatural, mas que vende cabelo, marca de cueca, olha para o vetê e faz dancinhas, coraçõezinhos, vende badulaques. Não se pode, mesmo, agradar a todos. Mas podíamos ser um pouquinho menos críticos da grama alheia.

Ou lembrar dos chinelos de trave e deixar os chatos para o depois do jantar.

Amaraladas na Copa 14 - "Onzimo"

Acordo. Peguei no sono e a rádio continuava a falar de futebol. Das hipóteses, das hipérboles, de hiatos. Não sei mais se sonhava e o som do radinho contaminava as ideias e varandas ou se era mesmo sonho dos bons. Por lá o Irã ganhava dos argentinos. Sim, vitória. Maiúscula, história, histórica, genial. E a festa em Teerã era daquelas cousas inenarráveis, esperança de um mundo melhor, tolerância.

Acordo assustado. Estava no meio do nada, um silêncio absurdo, a Renata desligara o rádio, provavelmente. Noite. Breu. Será? O jogo é daqui a pouco. Uma da tarde. E eu estarei no topo da Serra da Canastra, pensei. E se o rádio não pegar? E se o Irã ganhar, ave Maria e ave Maria Madalena, perderei este milagre? Sofro, antecipado. Durmo de novo. O gol de Messi equilibra as dúvidas. No fundo vai ser goleada e vamos ter que aguentar os argentinos dizendo loas e loas e loas. Eu adoro os argentinos, a Argentina, Diego é um santo e até concordo com as musiquinhas, porque se um foi muito melhor como jogador de futebol, incomparavelmente, Diego como personagem é "mas grande", sin duda alguna. Mas suportar aquele lererê todo dos hermanos é para testar qualquer amor, um saco estratosférico. Sai pra lá!

O fato é que no caminho do topo da serra o rádio pegava tudo. Fiquei tranquilo. Quem sabe a Argentina não ganhe de pouco? Mas se o Irã ganhar, eu não vou me perdoar... mesmo. Vai Irã!!!!!!!!!!!!!!

Acompanhar os jogos de uma copa pelo rádio é voltar no tempo. Mas é mais que isso. É acompanhar os sotaques todos do AM, perceber as variações sutis de narração e de percepção, perceber os nossos bairrismos, as nossas piadas caducas, o carioca, o mineiro e o paulista. Ouvir um jogo pela Rádio Nacional emociona qualquer um que conheça um cadinho do riscado, de Ari e Lamartine. E as vinhetas da Bandeirantes, da Globo e da Pan disparam emoções profundas. "Teeeeeempo e placar no Mineirão!".

Zero a zero. A bravura indômita desses iranianos é qualquer nota. De lá, um mundo tão distante e tão ofendido pela seletividade de indignações e pela exaustiva propaganda da metrópole e seu "way of life", conhecemos pouco mas reconhecemos sempre a bravura... desde a Pérsia! "O tempo passa!!!".

Pelo rádio, Messi jogava pedrinhas. E pedras colossais eu via pela paisagem da serra. Um curral feito com pedras, para passagens de gado. Pedras e pedras testemunhas de muitas coisas, entre elas uma das nascentes do Rio São Francisco, o mais brasuca dos rios, aquele que serpenteia nossa alma, vence o árido e se socorre nos mares de montanhas e oceano. E Messi? Cadê?

Quarenta e tralalá minutos. Ao caminho do fim. Últimas voltas nos ponteiros. Até que o arqueiro argentino teve que trabalhar, surpreendentemente. Era mais um zero a zero, definitivamente. Um eterno.

Lá na frente, uma "Garagem de Pedras". Um mirante absolutamente fabuloso da Serra da Canastra, da Babilônia, do Vão dos Cândidos. Um colosso. Deixei o carro com a porta aberta, rádio jogando, quebrando o silêncio. Faltava pouco.

"Bola com Messi.... atenção.... tocou.....". Ouvi os sussurros do silêncio e dos pássaros, ouvi todo o Mineirão gritando.... "E que golaaaaaaaaaaaaaço"!

Messi, senhoures e senhouras. Uma pedra, fundamental.


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dez


O vexame é das maiores forças vivas da natureza. Um grande vexame é capaz de feitos extraordinários, de desgraças colossais ou parir maravilhas maravilhosas, atômicas, sobrenaturais até.
O problema do vexame é sua digestão. Alguns não aguentam o batráquio, que costuma ser venenoso e ter espinhos, e caem na mais funda tristeza, solapam, avestruzam. Mas outros são capazes de tirar do evento um gosto de chance, de mais um gole, um riso gordo. Quem já viveu um vexame de proporções bíblicas, e todos humanos já vivenciaram ao menos um, sabe que o mundo pode reservar situações de prazer imenso mas, também, de pavor, medo e vergonha.

Numa copa há muitas chances de pequenos vexames. Uma escorregada, uma falha defensiva, um chute de pé muchibento, uma peste na arbitragem. Há também as chances de vexames médios. E há a oportunidade ímpar do vexame excepcional, daqueles capazes de fustigar a auto estima de forma excruciante, dolorosa, funda, futura cicatriz.

A verdade é que dá azar pensar nisso. Mas não deixa de ser deliciosamente furtivo, como que experimentar o proibido, imaginar o que poderia acontecer com um contra golpe fatal africano, de um camaronês com vestes e foice, ceifando com um gol inesperado os ares para se respirar. E nós todos de ouvidos e olhos no jogo do México, torcendo para que lá não aconteça o resultado impossível que nos desclassificaria, primeira fase em punhos, da copa organizada em casa. Porque Marin mereceria este desfecho, com toda a tintura no cabelo, com todo o laquê. Porque muitos de nossos jogadores mereceriam esta mácula, porque confundem as coisas e porque ignoram camisas, desejos, suores e anseios. Porque Parreira e Felipão, todos senhoures de bons modos, também mereceriam uma liçãozinha contra a empáfia e a subserviência.

O problema é que seria mais um vexame e só. Sim, um vexame pecaminoso, universal. Mas na nossa viperina estrutura de castas este vexame sobraria só para os bares, as lágrimas das crianças, o mau humor no dia seguinte. Não seria a imposição da necessária guilhotina nessa corja que toma conta do futebol e que transforma nossas bolinhas de gude e figurinhas de bafo em simples anotações de livro de caixa, entrada, despesa, resultados, balanço. 

Portanto, seria um vexame e nada mais.

Assim sendo, que não tenhamos vexames tão gigantescos. Porque servirão só de dor aos cotovelos já feridos. E que ao menos escalem Hernanes, em qualquer posição, que uma copa sem sãopaulinos é como cerveja sem álcool.


Amaraladas na Copa 14 - Nove, uai


Quando pensamos a viagem, confesso: estava enxabido com copa. Não com o trem da bola, rede, jogador correndo, gol, frango e aquela samambaia toda. O que me entristece e continua incomodando, como aquele gosto de cabo de guarda-chuva é o que deixamos pra lá, em nome de uns milhõezinhos para uma campanha eleitoral aqui e acolá, em nome de sei lá qual santo mercado rede globo fifa rabo empreiteira. Porque perdemos, e creio indesculpável, a grande oportunidade de fazer Brasil. Um Brasil que se define, e muito, como povo, em razão do futebol.

 

Das mazelas deste sacrilégio, o que me dói é que podíamos ter feito brasis em razão dos preparos, dos festejos, dos folguedos todos. A missa toda era simples: seleção jogando aqui, sendo nossa, nos quatro anos todos. Com Neimares, Gansos, Magnos Alves, Alexs, Daniels Alves, Júlios Césares, Jeférsons, Léos Mouras. Com a construção de pontes entre o time nacional e o país, com David Luís sendo a cabeleira cósmica que fazia do moleque e da moleca de uma dessas pracinhas espalhadas por aí um pouco mais brasileiro. Não quero aqui dizer patriotadas, essa coisa imbecil e imberbe, do torcer pela pátria mãe gentil, cantarolares de muito orgulho e amor, pose para fotos, ame ou deixe, chuteiras coloridas e vender celular, banco, petróleo. Digo outra cousa: Daquilo que nos define. Uma arrancada de Neimar varando defesas, atônitos, diz muito mais sobre nós do que as novelas do Manoel Carlos. 

Mas o fato é que planejamos a viagem bem na segunda rodada da Copa, uma viagem para a Serra da Canastra, em Minas Gerais, comer queijo e ver montanha. Muito queijo e muita montanha, um mar das Geraes. No começo todo, pouco pensei se o local de estada ia ter televisão para acompanhar os jogos ou internete via três ou quatro gês ou o escambau. Afinal, isso tudo é tão moderno que a gente nem pensa mais quando não tinha isso ou aquilo. Mas o fato é que na véspera da viagem, coração já tomado pelos jogos - e pela qualidade plástica das partidas, uma surpresa doce e farta - vi no saite da pousada: "sem tv e sem internete". Outra confissão: pensei em desistir de tudo, marcar outra data, chacoalhar o esqueleto e arrumar briga conjugal por um bom motivo, o único possível. Mas, depois, pensei e pensei: pode ter radinho de pilha, posso voltar no tempo, posso. Vesti minha bermuda mais surrada e fui andar por aí.



Costa Rica e Itália se enfrentavam nalgum canto do país. E, de fato, estava sem televisão nem rede de computador. Mas tinha um bom radinho AM portátil e um surpreendente AM no carro, que pela primeira vez no mundo resolveu pegar estações com nitidez. Montanhas e montanhas, numa paisagem de deixar boca aberta o tempo todo. A nascente do Rio São Francisco, o mais brasileiro dos rios, o mais santo dos fluídos d´água. Queijo canastra. E torresmo. E Costa Rica, jogando bem. Cachoeira. Cachoeiras. E tudo isso. É verdade, sem aquele clima de copa que a cidadona grande lá embaixo vivenciava....



Pausa. Parada. Torresmo e cerveja. "Olha, seu Edimar, a Dona Lúcia lá da pousada recomendou o torresmo, disse que era imperdível." O cabra abriu um sorrisão e mandou fazer o trem. Ofereceu um queijim enquanto esperava. Perguntei se podia levar o prato e a cerveja lá para fora, para ver o mar - das montanhas todas do mundo. "Claro que sim, qual o seu nome?". "Amaral."



Lá pelas tantas, vendo tanta beleza, ouço um gol. "Gooooooooool", gritava o rádio. Tentei ouvir melhor, era um desejo imenso de mandar o bolão as favas, com gol da Centro América. E era. Sorri, matreiro.



Seu Edimar, ao abrir a segunda cerveja, também revelou que ouvia o jogo: "Valente, este time da Costa Rica. Muito Valente.".



Lá no alto, também, tinha uma capelinha simples, quadrinhos da via sacra, uns santos, São Francisco. Bem em frente aos santos, um campinho de futebol.



Amaraladas na Copa 14 - VIII


Era um boteco, de esquina. Calçadas na mesa. Já era noite, depois das dez. Uma gritaria dentro do bar dava a senha: era futebol. Não era... estranhamente era um jogo de basquetebol, final de turno do campeonato local, entre duas equipas da região metropolitana de Montevidéu, na República Oriental do Uruguay.


Evidentemente, paramos no boteco. E esperamos o final da partida. Os orientales estavam vidrados. Torciam. O que mais encantava era aquilo: uma partida renhida de basquetebol, num dia de semana a noite. A descoberta como de uma senha para entender um pouco a alma daqueles vizinhos: há emoção e dor, eles estão ali. Parecem gostar daquele sofrimento infindo, dos sentimentos impossíveis, das grandes vitórias. Por lá é comum contarem com grande admiração a história da independência, com poucos e bons "33 orientales" que foram decisivos para a luta da independência contra o império brasileiro. Trinta e três contra um império. Assim é o Uruguay, assim é a alma, uma partida renhida, difícil, improvável.



Por isso, imagino cá com meus botões, que a façanha uruguaia contra os ingleses na semana passada e a derrota na estreia para Costa Rica tem explicação muito mais espiritual, um estudo d´alma clássico, do que na fria lógica dos números e das condições objetivas. A derrota para Costa Rica era evidente, estava escrita há milhares de anos, desde que índios habitavam a região do Rio da Prata. Os índios morreram todos, todos, sem exceções, tragicamente, na única luta em que perderam para os colonizadores. Mas Costa Rica é uma igual, na fé, na história de exploração pelo colonialismo. Já os ingleses... favoritos, time que tinha feito até um bom jogo embora tivesse perdido dos italianos, são exatamente o que estimulam as contendas da Celeste Olímpica. A tradição, aqui, não é ganhar ou perder. É lutar. E por isso Luisito e Cavani estão lá na lista dos melhores do certame, finda a segunda rodada da fase de classificação.



Montevidéu é uma cidade diferente no tempo. Por lá, apesar das modernidades de algumas áreas da cidade, ainda há tempo para se andar na beira do mar - que é um rio. Para se tomar chimarrão contemplando o oceano, que é de água doce ou quase isso. Onde andam carros que datam do século passado em número muito mais expressivo do que carrões novos. Onde na hora do almoço operários jogam futebol. Em que ainda se pára para ver uma partida de basquetebol, pelo simples prazer da peleia.



Há uma feira na rua Tristan Navarra, em Montevidéu. Uma feira literalmente livre: livros, roupas, verduras, queijos, antiguidades, frutas, discos, quinquilharias, miudezas, gente cantando, panfletos políticos e literários, esquinas. Dos lugares mais encantadores da capital oriental. Nas várias banquinhas de roupa há quase sempre uma camisa do Nacional ou do Peñarol. Mas há sempre e sempre uma camisa azul, celeste, olímpica.




Pode ser que voltem para casa já na primeira fase. Mas a vitória contra o Inglaterra, a seleção do país que hospeda a tal premier league, e a derrota contra os costa-riquenhos, já contam muito sobre a alma desses nossos vizinhos. E o fato da tetra campeã Itália jogar pelo empate diz muito sobre o que será o próximo jogo...


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Sete


Imagino jogadas, fantásticas e imodestas, todo tempo. Meu cérebro tem uma sala para jogos imaginários, certamente. Todos sabem que isso é um perigo, quase um catálogo de psiquiatria. Alguns até ensaiam algo como "não se pode viver o tempo todo em fantasias, cuidado." Talvez.


Mas ontem, na peleja de Fortaleza, a única jogada que me arrancou sorrisos eram as narrações da rádio Popular AM, a rádio que funciona ininterruptamente nas minhas digressões mentais. A equipe esportiva da Popular é muito boa. e é liderada por mim mesmo. Leonino até nas manias acha que o mundo é quem deve trocar a lâmpada.


Pois bem, a bola sairia dos pés de Rogério Ceni, num lançamento maravilhoso, que Rodrigo Caio resvalaria de cabeça deixando Magno Alves na cara do gol. O atacante do Ceará, um dos maiores artilheiros em atividade no Brasil, experiente, rodado, com uma simplicidade dos imortais, manda a pelota para o fundo da meta de Ochoa. "Goooooooooolaço! Um lançamento miliméeeeeeeetrico de Rogério, a inteligência de Rodrigo Caio e a bola chegou para o Magno Alves, que bateu firme, inapeláaaavel, indefensável!!!!". E eu chamaria os repórteres de campo que enfatizariam a comemoração de Magno Alves junto a uma bandeira do vovô que tremulava nas arquibancadas do Castelão. 


Sabemos todos que esse lance nunca mais aconteceu. Que depois de imaginado, narrado e comemorado, tal qual broa com café, foi degustado e pronto. A vaca fria estava lá, no zero a zero eterno, mais um desses jogos que podem rolar até o fim do mundo sem romper placares, naquelas virgindades eternas de novela das seis. Quem espera príncipes, tende a enamorar sapos.


Na toada que vamos temos um meio campo terrivelmente triste. Exceto o bom Luiz Gustavo, temos incógnitas. A maior delas é aquele que deveria ser motor do trem todo, Paulinho. Talvez tenhamos que mudar um cadinho as cousas pela família. Mas quem lembra de Kléberson no mundial da Ásia sabe que o técnico da seleção, se não tem muitas cartas na manga, tem uma sorte de bingo de quermesse. 


Outra cousa que precisa de um "pára que tá chato" é o birinaite do hino. A patriotada lá na Copa das Confederações teve um saborzinho de confeito, bom mesmo. Agora me parece um repeteco um tanto desnecessário, quando não uma muleta para justificar defeitos como insegurança e despreparo. Enquanto o estádio canta o hino os jogadores poderiam mesmo pegar fogo e não ficar naquele chororô com cara de comercial de margarina, meio que enredo de pastiche com narração em off do Galvão Bueno. 


Mas que a copa está muito boa, está. O povo da rádio Popular tá numa felicidade que dá gosto. E o programa especial sobre as remoções causadas por causa da copa foi muito bom. Tem festa mas tem rabo. E feio. Foi tão bom quanto o programa que falava do engajamento dos principais jogadores da seleção brasileira nas discussões sobre o calendário e organização do futebol brasileiro, com uma entrevista com o Alex do Coritiba e camisa dez do time nacional foi digna de boa nota, muito boa. Sem contar a recusa dos jogadores em cumprimentar Marin, aquela excrescência que avilta nossa memória, nossa história, nosso futebol.


Mas... enfim... a entrevista do Magno Alves foi fantástica, com direito até a um Fágner cantarolado numa sala de imprensa enlouquecida. Uma seleção assim, desse jeito, ninguém poderia imaginar.


Só na Rádio Popular.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - VI

Outro dia me disseram que o jogo Irã e Nigéria foi horroroso. Eu, que sempre desconfio, não acreditei nada. Eu sou daqueles que assiste a Rede Vida para assistir e achar graça num Capivariano e Assisense, que decoro tabelas de terceira divisão pelo simples prazer de narrar os lances imaginários de um time qualquer. Eu que imagino histórias do atacante do Calouros do Ar errando uma penalidade máxima, no último minuto de uma série C do cearense não posso acreditar num jogo de pavor entre dois times fantásticos. Tenho mais Bra-Pel, Gurani e Ponte, Ríver e Flamengo de Teresina, Celtic e Rangers no sangue que hemoglobina.

É que tem gente que só gosta de missa em igreja enfeitada. É bonito, confesso. Uma igreja toda com flores, tesouros, anjos barrocos, velas e castiçais de ouro. E o padre lá, solene, falando da carta aos coríntios e das dicas de Paulo para o bom lar, numa interpretação para lá de conveniente do texto do livrão. Acho chato o blablablá do padre, mas gosto do ritual todo e admito que conforta a quem quer ser confortado.

Mas sempre me parece que se um só deus existir ele certamente não estará sempre nestas missas. Por mais onipresente que seja, ele anda descalço. E tem lá que acompanhar o passo nas romarias, os cantos das salas de ex-votos, ouvir as novenas. E acompanhar os batuques que evocam outras entidades que ele sabe existirem e as respeita, porque ele seria, ao cabo de tudo, o criador de toda a confusão. E ele ouve orações em presídios de pastores de fato a acalmar e dar alento a quem realmente precisa. Precisa do verbo, mas está nas casas de tolerância, nas danças de terreiro, nas polcas de salão, no canto do convento, no riso de um travesti que faz ponto atrás da igreja.

Deusas e deuses, prefiro crer. Porque tenho fé nas gentes. Descobri isso recentemente, discutindo o mundo com meus guris. Que no fundo a eu era ateu para poder negar tudo aquilo que em nome da fé se fez de ruim na história recente deste planetão que é só uma gota perdida por aí. Mas que é improvável estarmos sozinhos e que sol, lua, mar, terra, inferno, paraíso, cadafalsos, porões, cinema, pão doce cheio de creme, atabaques, imagens, templos, carpideiras, divãs e balinhas de goma tem lá seus encantos, suas histórias, suas raizes e fundamentos.

Irã e Nigéria foi, sem dúvida alguma, o melhor jogo desta copa. Quem quiser negar, negue. A solidão deve ser algo muito cruel quando não se é por opção... 

Vou lá buscar os meninos, estão jogando bola no prédio com os vizinhos, para assistirmos ao jogo na casa da Fátima. Inté.


segunda-feira, 16 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Quinto



Fui ver um dos jogos no Anhangabaú. Lá montaram os "patrocinadores" e a organizadora do evento um local com telão para assistir aos jogos. Paulistas somos inacreditavelmente jecas para muitas cousas. Como não temos praia, costumamos nos lambuzar nas farofas, com gosto. Até as narinas mais empinadas da gente bandeirante piratininga chegam na praia e pronto: mafuá, farofa milanesa na areia e queimadura. Nem adianta dizer que não. Quem nega, no mínimo é cafona. Bom... nós paulistas somos cafonas. Mas voltando à marola, como não somos uma cidade linda por natureza, nossos encantos são outros. E para desvelo é necessário um algo mais, um outro olhar que guais de turismo e de beleza não dão. E por estas e outras estamos inacreditavelmente desacostumados aos gringos turistas.

Chega a ser patético. Porque uma cidade pseudo cosmopolita, repleta de gente do mundo todo que mora aqui, quando vê um que não mora, só tá de visita, ficamos todos animados, como que vendo entidades sobrenaturais. Jecas. No estilo do Monteirão, um clássico do tatu.

E na tal tenda para os jogos o que mais tem é gringo. Contei sotaques. Contei dezenas, repito, dezenas, de camisas de países diferentes. Fiquei bestificado com tudo. Parecia criança em loja de brinquedo. Quando uns caras, um deles com a camisa da Argélia e outro da França, começaram a azucrinar um grandalhão coreano, com uma linda jaqueta do time da Coréia do Sul, gritando "Argélia", comecei a rir feito besta: Coréia e Argélia é um dos clássicos do grupo H.. Pinto no lixo, eu.

E tinha um francês ao meu lado. Puxei papo. O cara veio da França para assistir ao jogo do Uruguay com a Inglaterra, em Itaquera. Um único jogo. E nem era do país dele. Estava todo feliz tirando foto de tudo e comemorou o primeiro gol francês com uma felicidade de primeira mordida em quindim. Bonito que só. Falamos da copa e ele, em inglês tão ruim quanto o meu, me disse algo como "vim para me divertir".

São Paulo tem muito africano. Quem anda pelo centro, sabe, reconhece. Mas é difícil conversar com eles num dia normal. Porque no corre corre dos dias somos todos meio bestas, mais relógios que relíquias. Mas lá na tenda, ar aberto, era fácil. Um "oi", um sorriso, uma comemoração de gol. E eles sorriem bonito, né? Quem nunca ficou feliz com um sorriso deles, desses lindos, sabe pouco dos encantos do mundo, pouquíssimo. Só refrigerante, provavelmente.

E os latinos americanos!!! Senhoures e senhouras, a quantidade de camisas vermelhas do Chile é de impressionar qualquer marujo. E amarelas de colombianos, sombreiros mexicanos e o azul dos hermanos. E os felizes costa riquenhos, garbos com sua bandeira.

Um clima amistoso que estamos pouco acostumados, gente sentada no chão sem toalhinha para as bundas, felizes, conversando. Apesar das caras sempre carrancudas dos policiais - e me pergunto a razão do porquê a policia do estado estar num evento que a organizadora diz ser dela - com exclusividade pérfida de um amante ciumento e inseguro - e, portanto, um evento privado.

Apesar dumas catracas e de umas revistas em mochilas e roupas, o local estava aberto. E os bêbados do centro também estavam lá. E não só os bêbados: as putas do entorno da praça do Correio, os mendigos das escadarias da Líbero, gente diferenciada. Há algo ali no Anhangabaú, antes de sermos essa gente jeca e malcriada, quando era rio e vale e gente pelada, que tatuou a cidade. Nem a tal organizadora foi capaz de tirar isso de lá. É provável que até o fim da copa tentem expulsar essa gente feia dali. Mas muito provavelmente não conseguirão... Desta vez há um ancestral nosso que continua a achar José de Anchieta um grandessíssimo dum explorador mequetrefe, que de santo não tinha nem as batas... mas que acha graça num festerê. 

Vão acabar comendo a gente, se tivermos sorte.


domingo, 15 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - IV


Há sempre um cagaço monstruoso acerca dos primeiros jogos de uma copa do mundo. Porque o calendário maluco do futebol mundial coloca a copa no final dos campeonatos de quase todo o planeta. Jogadores baleados, contusões a granel, tornozelos no gelo, joelhos na cristaleira. A ausência de jogadores importantes, de raros talentos, ofuscam a competição e tornam alguns jogos verdadeiros festivais de pedrinhas, de muxoxos e de retrancas federais, com o medo do medo: da derrota e do gol.

Os ternos da federação internacional conseguem ver cifras, contas bancárias, sigilos fiscais, mas não conseguem enxergar o óbvio dos óbvios: a copa deveria ser mágica, sempre. Deveriam imaginar que se um extraterrestre escolhesse algum festival, alguma festa, que definisse um povoado como a Terra escolheria a copa, o futebol, a bola na rede, esta febre infantil que faz meninos. E meninas, sim.

Mas não. Esses ternos, do alto de sua capacidade empreendedora, de sua visão privilegiada do mundo dos negócios, com sua altivez de comerciantes modernos, conseguem destruir essas pinturas como rasgando almas, matando índios. E a copa, ora a copa, é só mais um negócio.

A sorte do mundo - e da galáxia - é que a bola é um universo diferente de tudo. Ela tem um próprio, uma vontade alheia ao resto, uma certeza de deusa que cria, gesta, ama, sorri. E é ela que escolhe heróis, histórias, amores, vexames. A bola, por uma dessas estranhezas que só as maravilhas podem explicar, tem com os brasileiros uma relação especial, especialíssima, duradoura. Escolheu uma nação assim, de índios e negros explorados, espoliados, mas que tem quizumbas, quilombos, festa de São João, carnaval, terço, orixás, cristos, sexo e cauim, para amar febrilmente - e, as vezes, sem ter a reciprocidade dos amantes. Uma paixão lasciva como um lançamento de Gérson. Escale a seleção de 38 e note: há ali Leônidas. E há um gol descalço. Um gol descalço, senhoures e senhouras!

Por isso, neste quarto dia de copa, noto uma centelha de esperança. Porque se fizeram o que fizeram e fazem por aí, a dinamitar o Tejo de cada um de nós, a bola vai lá e cochicha ao boleiro: "Camarada, meu caro, a copa é lá na terra de Didi e de Garrincha. Não façam galhofa e tratem a pinimba com esmero.". E Robben, que deve falar a língua da bola, que deve dormir com a menina embaixo do travesseiro, resolve mostrar ao mundo que a retranca, na copa no Brasil, não tem muito sentido, não tem razão alguma. E o medo de perder - notem a grandiosidade desta conclusão absoluta - dá espaço para o prazer do gol. E estamos na melhor média de goles desde a copa de 54, quando os esquemas táticos tinham um monte de numerozinhos, mas cinco atacantes. 

A partidaça de Campbell, da Costa Rica, no jogo de ontem, a beleza de Pirlo, a graciosidade de Giovani dos Santos, a virada comandada por Drogba, só porque ele estava em campo, sem quase tocar na pelota. A copa está na parábola que acabará na cabeça de Van Persie e dará uma cambota nos ares antes de ultrapassar Cassilas. "Goooooool".

E há um sorriso redondo numa moça redonda num mundo redondo.

sábado, 14 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Três


Tenho saudades, o tempo todo. Por isso, talvez, e sempre, seja um anacrônico daqueles. Gosto de café com bolacha de água e sal, porque me lembra minha mãe. Gosto de bolinho de chuva, porque me lembro da vó Teresa. Tenho saudades...

Gosto de copa do mundo. Muito. A imagem que surge, imediatamente, é a antiga sala da Herculano de Freitas, na Bela Vista, carpete marrom. TV ligada. União Soviética 1 x 0 Brasil, gol de Bal, num dos frangos mais frangos da história dos planetas. E o pior, o autor da ave era um herói de infância, o sobrenatural Valdir Peres, o arqueiro do onze dos sonhos. Estava triste, angustiado. A bola não entrava, não vinha o empate. No gol soviético, Dasaev.

E por aquelas mágicas, Sócrates, em um jogo que parecia destinado aos desatinos, empata. Um baita gol. Um gol miraculoso, saboroso, laço aço aço. No radinho, Silvério - outro herói da infância, o narrador da Pan, se esguelava. Eu saí do sofá correndo e pulei no meu pai, pernas na cintura dele, envolvendo, abraçado. Meu pai me deu um beijo. Eu não sabia se sorria, se chorava: "Goooooool". Disse um palavrão, acho.

Tenho saudades.

Outro dia me recordei que desde tempos imemoriais não vestia a camisa amarela da seleção do Brasil. Por alguma razão perdida em algum canto dos quintais da infância ou adolescência, perdi o encanto pelo amarelo. E tenho cá comigo certa náusea da "canarinho", da cor. Talvez, e aqui tento explicar sem muito saber científico, seja a excessiva patriotada simbolizada por Zagallo - e tudo o que o zagalismo significa, a pachecada, o pátria amada mãe gentil, o "eu sei que vou vou do jeito que eu sei" - que me fez ter estes sentimentos pouco nobres por uma cor de camisa... Sim, porque a azul não me incomoda tanto. Nem a branca, de 50. De fato esta relação de desamor tem pouca explicação objetiva, mas muito de perder ingenuidade, de saber que aquele tempo de antes, de criança, acabou há tempos.

Mas o fato concreto é que o Grande e o Pequeno resolveram tratar com meus fantasmas, minha ranhetice, meu mau humor com relação à seleção canário. Eles completaram o álbum e saíram para comprar uma camisa da seleção, amarela, de fato. Para eles não há muitas digressões: "Pai, queria muito que o Brasil ganhasse esta copa!".

Gosto de copa... gosto de lembrar de um dia que nem sei se foi verdade, em que levei meu radinho de pilha escondido na mochila e, sorrateiramente, liguei bem baixinho durante uma partida entre a Espanha, dona da casa e do Arconada e do Quini, e Honduras, do arqueiro Arzur, durante uma aula da Tia Meire. E ela gostava tanto de mim... que deve ter percebido a burlesca mas não reclamou, nem chamou atenção. Era 1982, tinha dez anos. Nas minhas pelejas imaginárias, a copa no Brasil teria URSS e Brasil na Rua Javari ou no Canindé, e Renato Pé Murcho faria o gol da vitória. "Goooooool". E meu pai vinha me abraçar durante a minha locução imaginária do tento impossível do camisa oito do SPFC e da minha esquadra de botão.

A copa, finalmente, é no Brasil. Com tudo o que ela foi. E não vou ficar a lamuriar, lamentar, fustigar e fígado, o que eu acho de equivocado, ruim e péssimo sobre o tema. A única cousa que anoto é que ela está distante demais daquele torneio no meu Estrelão e esta saudade, por vezes, me deixa triste. Mas vou contar que os meus dois meninos me levaram para passear na Paulista.E lá eu encontrei gente que não via desde 1982, inclusive uns belgas com os quais animadamente discutimos as chances dos diabos vermelhos no certame.

Um a zero. Um gol contra. E o Brasil estava perdendo. Certa tensão em casa. Sogro, sogra, meu afilhado, a Rerrê e os dois guris. Atentos. No radinho de pilha, José Silvério. O rádio estava um pouquinho adiantado, o lance da TV era passado. Mas só eu ouvia o rádio na sala. Soube antes que a bola de Neimar tinha o destino do gol. Estava em pé, gritei gol. E aí o Grande veio do sofá, correndo, pernas na minha cintura, me abraçando. Gritava gol. Eu lhe dei um beijo.

Tenho saudades.

Mas tenho um sorriso bobo também.
 
 
 
 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dois


Enfim, o jogo.


Foi uma estreia com requintes de bom jogo. Pode não ser muito, mas não é pouco. O time croata veio jogar e por pouco não beliscou ponto. Não teve aquele lusco fusco de dez atrás e uma reza. Ponto pro jogo.


O time do Brasil foi bem ao não se desmontar depois de tomar o gol. Aliás, o gol contra de Marcelo acabou servindo para tirar o time da catarse. Antes do gol, lembremos, a Croácia teve um cruzamento para dentro da zona do agrião que quase dá feira, salada e divórcio.


Aí, Oscar, um jogador que abomino, começou a fazer a diferença. Acordou e começou a ser o cara do jogo, o motorádio. Foi dele o primeiro cruzamento. E foi ele quem dividiu a pelota com vontade, aquela fome de bola vital para um torneio de três pontos, que sobrou para Neimar. Neimar, aí, fez o que dele se espera: chamou a responsa e mandou no cantinho, num chutinho mirrado, quase erro, mas que mostra que a bola, a grama e, essencialmente, os deuses e deusas do ludopédio, gostam do rapaz. E a bola foi indo indo indo e gol. Neimar pode quebrar todos os recordes da seleção. E ele sabe disso, com aquela ponta de arrogância necessária.


Eu não gosto do Neimar "gente". Mas isso pouco, pouquíssimo, importa. Porque sou cá insignificante. E ele tem um talento com a bola no pé que é gracioso, divino. Respeito divindades, embora considere algumas verdadeiras bostas em pé. É o caso, mas, de novo, que importa? Merecia um vermelho pela tapa que desferiu no croata do Madrid? Não, mereceu o amarelo. Mas se eu fosse o árbitro estava ele no chuveiro. E isso serve de alerta, porque apesar do caseirismo da arbitragem, que será mais natural que suco de laranja na padoca do bairro, um ou outro árbitro pode estar de mal querer.


O time se encontrou, muito embora peças chave como Paulinho e Hulk estivessem retraídos demais. Fred não tocou na bola, mas há centro avantes que não estão no jogo por causa disso. Daniel foi mal. Marcelo, se não desmontou com o gol contra, também não teve brilharecos. Mas saímos do primeiro tempo melhores e até merecedores de sorte maior.


Já o segundo tempo começou chato. Só Oscar. Mesmo. E escrevo com certa irritação esta assertiva. Teve um carrinho do camisa onze mui digno numa disputa de bola, aquele algo a mais que diferencia um jogador. Mas o jogo estava chato e a Croácia também parecia satisfeita.


Aí, o papelão do juiz. Na demonstração mais que óbvia do que é um apito caseiro, caiu na área é penal. Houve, sim, intencionalidade por parte do juizão. Não que ele estivesse de fé ruim de véspera ou que recebera uns trocos de algum paletó ou de algum apostador infame. A intenção era não prejudicar o time da casa, o time da fifa, o time grande. É dessas máculas que não saem. Uns aceitam, outros dão de ombro, outros fazem de conta que é miserê alheio. É feio. Não foi um lance que o cara não viu, viu errado, não teve visão plena do fato. Foi simples e simples: caiu, penal. Mas, enfim, cal e gol. Num penal batido por Neimar, a virada.


Depois deste gol o jogo perde a essência anterior. Os croatas até que tentaram, tiveram um gol anulado - e creio que neste lance com o Julio Cesar cabe a tal interpretação do juizão de que foi falta. E casa desarrumada, o Brasil ainda fez o terceiro, em belo gol de Oscar.


O moço volante, Luis Gustavo, foi bem também. Importante citar. E o time só virou com Hernanes no time. Como tenho a singela impressão que falta sãopaulino nesse time, ao menos Hernanes dá uma pitada de amor num coração amargo como o meu.

É provável que o time ganhe bem do México. Porque ontem mostrou que tem gente capaz de colocar os nervos no lugar. Porque Neimar ganhou um parceiro, um alento, em Oscar. Mas é bom ficar de olho nos times que jogam pelos cantos e gostam de uma ducha, que a defesona brasuca anda a tagarelar com perigos. E o goleiro, tá bugado.

E o cheirinho de fralda cheia da arbitragem pode reverter em dano, caso nos jogos futuros a gritaria prévia não incomode demais aos "sensíveis" ouvidos dos organizadores...

dia 01.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A Arena Deserta





Preâmbulo

A situação do grupo é dramática, como as leitoras deste prestigioso blog futurologista estão cansadas de saber.
O Brasil está de luto, tenso, com a morte de Oscar e a fuga do assassino Paulo Henrique.
Para quem não leu, ou não se lembra, eis os fatos e os resultados até o momento:
Brasil 2 x 2 Croácia (leia aqui)
México 2 x 1 Camarões (aqui)
Brasil 5 x 5 México (e aqui)
Croácia 1 x 1 Camarões (Mãe DiNáder)
Para facilitar as contas, a classificação:


PT
SG 
GP
México
4
4
7
Brasil
2
0
7
Croácia
2
0
3
Camarões
1
0
2


O Jogo

Tanto já se falou, se escreveu, sobre as belezas de um estádio lotado e, de fato, até aqui, as arenas bonitinhas até que andaram apinhadas de gente.
Mas o jogo era de Copa e o estádio estava às moscas.
Na verdade, me faziam companhia, além das moscas, uns duzentos mexicanos, atrás de um gol, e cinqüenta croatas, atrás do outro. O único brasileiro desavisado era eu.
Repito: único.
Desavisado porque, ao comprar o ingresso para este jogo, em Recife, não percebi que, enquanto aqui jogariam Croácia e México, no mesmo bat-horário, em Brasília, Brasil e Camarões se enfrentariam para decidir a classificação.
Fato é que muita gente, com ingressos na mão, lotava bares e praças de Recife para assistir ao jogo da seleção brasileira.
Eu, na arena vazia, estava só. E como é belo o estádio vazio.
O som do apito ecoou, longo, pelas arquibancadas. Vários segundos se passaram até que se recobrasse o silêncio.
O jogo era mero coadjuvante da arena deserta e seus sussurros. Os gritos dos boleiros, as broncas do treinador, os xingamentos em croata, as parábolas descritas pela bola e o encantador barulho de seu choque com a chuteira mexicana tiravam deste expectador solitário a atenção sobre o jogo em si.
Sem ninguém do lado para fiscalizar minha concentração, assisti à partida distraída, descompromissadamente. A grande vantagem do estádio vazio é a cerveja gelada, sem fila.
A arena é moderna, padrão FIFA. O jogo, de Copa. Mas, na verdade, me sentia na Rua Javari (quanta falta me faz um cannoli). Pensei: houvesse alambrado, lá estaria a xingar o bandeirinha coreano.
Começou o segundo tempo, a quarta cerveja descia gelada, mas o jogo seguia morno.
De perto, o uniforme da Croácia era hipnótico. Uma toalha de pic-nic. Aumentava a vontade de tomar cerveja.
Estava no bar, pegando a sexta, quando o galego, já amigo, lápis numa orelha, radinho na outra, resmunga que o Brasil não estava jogando nada e o placar teimava em não sair do zero.
Pois no que a frase do galego ecoou pelos corredores da arena fria, ouvimos uns grunhidos vindos do campo.
Corri.
Gol da Croácia. Persistindo o resultado, o Brasil estaria fora. México e Croácia, classificados.
A desclassificação prematura seria um golpe grande demais para a torcida brasileira.
Bêbado, me comovi.
Cambaleante, voltei correndo ao alambrado invisível e, já sem as papas que a sobriedade me impusesse à língua, desferi, solitário, os mais variados impropérios contra o bandeira coreano, que acabara de anular um ataque mexicano. Ele olhava assustado, como se entendesse tudo o que eu dizia.
Então, o xingava mais ainda.
Xingava-o porque, ainda que só, tinha companhia, pois, naquele momento, o Brasil inteiro queria estar naquele alambrado invisível, para dizer para aquele bandeira que ele era um grandissíssimo filho de uma puta. Que sua mãe,...
Enfim, xingava-o porque não estava mais só, porque a ausência da torcida, me obrigava a lotar, sozinho, um estádio.
Pulei, gritei, xinguei, torci feito um louco, sozinho na multidão de cadeiras amarelas, como se o estádio estivesse repleto.
Até que o apito final ecoou doído e reverberou por todo o estádio. O jogo acabou.
Festa dos presentes.

Epílogo
A mim, restava o xixi derradeiro.
E, na solidão acústica do banheiro perfeito, sem temer o ridículo, pensando na arena vazia, nos bares cheios, cantarolei Pablo Milanéz: “Un homenaje / Para tu ausência / Lo llenas todo / Con tu presencia”.
Antes de deixar o estádio, vou tomar a saideira e ver com o galego quanto acabou o jogo do Brasil. A esperança é a última que morre. E alguém já disse: enquanto houver gelo, há esperança!

Luís Pini Nader
23/06/2014.
Croácia 1 x 0 México
Arena Pernambuco.
Público pagante: 151 pessoas