sábado, 30 de junho de 2018

Silêncio sorridente



Outro dia vi um vídeo filmado em Beirute, no Líbano. Era uma espécie de cortejo, onde as pessoas levavam um caixão com a bandeira da Alemanha, como num cortejo fúnebre. Mas repleto de buzinas e um tambor. E quem acompanhava o cortejo eram pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira, portando bandeiras do Brasil. O vídeo foi filmado no dia dos jogos de Brasil e Alemanha, na data de desclassificação dos alemães desta copa da Rússia.

Por aqui a gente não tem a menor noção do que representa a seleção brasileira de futebol. Não tem a ver com a CBF, com o governo de ocasião, com a patrocinadora da camisa. Em países como Bangladesh, Índia e Haiti foram relatadas histórias comoventes, emocionantes, bárbaras, de torcidas pelo Brasil, com gente pintando rua, fazendo oferenda, arrumando confusão com vizinho. Há uma identificação com a seleção, que é política, cultural, esportiva, lúdica. As matérias foram publicadas nos grandes portais e nos excelentes portais de futebol, como o Trivela. Ouso aqui uma digressão de boteco: a química entre a seleção brasileira é comparável às torcidas dos grandes e ricos times europeus, mas com uma dimensão fantástica, por ser uma aproximação por afinidades culturais, esportivas, política. Sim, politica no sentido de um reconhecimento da mágica que é um país pobre, miserável, com uma história repleta de assaltos, ganhando por cinco vezes o torneio mundial de futebol. 

Argentina, Uruguai e Brasil desafiam a lógica no assunto futebol. No esporte que todos os povos praticam e gostam, três países periféricos conseguiram feitos impressionantes e rotineiros. Enfrentam ombro a ombro e com vantagens, muitas vezes, os colonizadores, desafiam as potências, fazem os Estados Unidos parecem uma republiqueta de merda, como o cinema americano adora e reiteradamente retrata os países mais pobres de todo o mundo. E, o Brasil, o Brasil, meus caros, é a seleção que está sempre lá, que todos sabem que pode ganhar o caneco. Não faço aqui uma patriotada qualquer, que patriotismo é uma ideia idiota, feita para alimentar ódios que afastam o pensar daquilo que realmente importa. Falo de uma importante questão de estima, de levantar cabeça, de sonhar. A capacidade de sonhar.

Estamos sendo negligentes, muito, com o futebol como este elemento simbólico do Brasil como civilização. Entregamos o futebol ao negócio, deixamos um falso discurso de que são negócios privados os agentes que regulamentam o esporte. Perdemos a imensa oportunidade na copa passada, realizada aqui, de transformar o nosso mundo. Deixamos que um cafajeste como o Marin, algoz de Vlado, colaborador ativo da ditadura militar, fosse o "organizador" da Copa, presidindo a CBF. Deixamos a federação internacional de futebol associação criar leis, regras, conveniências. Fomos covardes. Continuamos sendo. Nunca que a fifa seria mais forte do que nós numa quebra de braço sobre os rumos do mundial, porque o mundial não pertence à fifa, embora queiram narrar assim. O mundial é aquele vídeo de Beirute. O mundial é o gol do Panamá e a festa do primeiro gol em copas num jogo onde tomavam de seis. Os donos do mundo cagam as regras nas nossas cabeças porque a gente não reconhece o nosso lugar, nossa força, nossa vitalidade. A gente prefere alimentar uma "rivalidade" com a Argentina ao invés de organizar um campeonato com o hermanos em Bangladesh, na Palestina, no meio do Kosovo ou participar da Copa da África como país convidado.

Não foi por acaso que instrumentalizaram o uso da camisa da seleção para os eventos patéticos que jogaram o país nesta selva de desesperança. Porque reconhecem a força simbólica e querem domá-la, para longe de nossas "Bangladeshes".

Tem um filme lindo chamado "Shooting for Sócrates", que conta a história da Irlanda do Norte na perspectiva de um menino que adora futebol e do jogo entre irlandeses e brasileiros na copa de 1986, no México - aquele jogo do gol do Josimar. A seleção brasileira é um instrumento que produz sonhos. E é esta a capacidade, a de sonhar, que nos transforma, a todos. Mais do que torcer pela seleção a gente precisa recuperar o que é nosso. 

Esta sexta que passou, primeiro dia sem jogos na copa da Rússia, fez aniversário de 60 anos do caneco na Suécia. Devia ser feriado nacional. E não estou brincando.

29 de junho, 2018. dia sem jogo, véspera das oitavas. Sobre o filme: http://www.cafecomfilme.com.br/filmes/driblando-a-guerra




sexta-feira, 29 de junho de 2018

Trave de chinelas


Lá pelos idos de não sei quanto, o critério de desempate para os jogos do Torneio Início - um campeonato festivo que marcava o início do campeonato paulista, com jogos de meia hora, num único dia, uma verdadeira macarronada de domingo, em partidas eliminatórias do tipo perdeu tá fora - eram os números de escanteio. O argumento era que o escanteio comprovava que o time estava jogando no ataque, procurando gol, então, no desempate, escanteio era gol.

Não sei se a regra do torneio Início era boa. Mas era oitocentas e quinze mais mais lógica e prudente que esta regra safada que a federação internacional de futebol associado tem adotado: a do "Jogo Limpo". Nas competições organizadas pela federação, premia-se quem tem menos cartões como critério de desempate. Obviamente, a regra macabra foi utilizada para definir um dos classificados o mais jururu para as oitavas de final nesta copa, na vaga disputada entre Japão e Senegal. Os japoneses ficaram com a vaga por ter tomado dois cartões amarelos a menos que os senegaleses.E o que aconteceu? Os asiáticos, sabendo do resultado da partida entre Senegal e Colômbia, mesmo perdendo o confronto com a Polônia, passaram os últimos cinco minutos num verdadeiro toco de lado recebo de volta. Uma ode ao oportunismo de quintal, aquele da grama do vizinho.

No fim, a seleção que praticou um joguinho mequetrefe de ocasião acabou se classificando na regrinha do "fair play", num contrassenso típico de fazer propaganda de refrigerante antes da matéria que alerta dos riscos da obesidade infantil. Ou, propaganda de banco e logo depois aquele analista cu de ferro vem explicar do problema da inadimplência contribuindo para os índices débeis da economia.

E é óbvio que a imprensona do mundo resolveu tacar o tacape nos japoneses, tratando a manobra do time como laranja podre, que aquele joguinho de engana nos últimos minutos foi uma manobra aviltante, mais terrível que xingar a mãe. Mas, carambolas cósmicas, porque diachos existe uma regra dessas? O amarelo, o cartão, é um sanção e se insere dentro das possibilidades da partida. O amarelo recebido numa partida duríssima, por causa de uma falta que impediu o prosseguimento da jogada, não pode se equipar com um amarelo por comemoração de gol. Aliás, amarelo em comemoração de gol é outra dessas cretinices de emoldurar. O amarelo é um sinal de alerta, uma admoestação preliminar, mas que leva em conta única e exclusivamente as condições objetivas e subjetivas, o drama e a miséria, daquela partida singular, que nunca mais se repetirá. 

Melhor o critério do escanteio. Pelo menos se premiaria quem chegou na última linha de defesa da cidadela adversária, tentando ganhar o pote de ouro do castelo. Melhor ainda era chamar japoneses e senegaleses para um encontro no ginásio coberto da escola pública mais próxima, para fazer um "vai a um", gol caixote, meio campo, seis de cada lado, sem goleiro mas com a regra de no mínimo três toques. Uma regra simplesinha, que toda criança que jogou futebol sabe identificar.

Ou, sei lá, classificar o Irã. 


28 de junho, 2018. Japão e Polônia. Colômbia e Senegal. Inglaterra e Bélgica. Panamá e Tunísia.



quinta-feira, 28 de junho de 2018

"Lateral é meio gol!!!"


Na TV Gazeta, antes do maravilhoso programa do Ronnie Von, muito antes, num tempo onde as tardes eram ocupadas pelo "Mulheres em Desfile", apresentação de Ione Borges e Claudete Troiano, um verdadeiro percursor de tudo o que é programa vespertino de televisão, o grande barato eram os programas de mesa redonda de futebol. 

O formato era descaradamente clubista, com todos os apresentadores representando ao menos um dos grandes times paulistas. Peirão de Castro, santista. Alfredo Borba, corintiano. Milton Peruzzi, palestra. Luis Noriega, São Paulo. Desconfio que o Fernando Solera também era São Paulo. E tinha o Orlando Duarte, Portuguesa. Não lembro se Orlando estava nas mesas redondas ou só ocupava as transmissões da Pan, como comentarista dos jogos narrados pelo estupendo José Silvério, quando a Pan era uma rádio de verdade e não esta sucursal da estupidez galopante e hidrófoba que é hoje. 

Eram duas versões, que me lembre, e as memórias são sempre isso, um afeto e nunca um teipe completo que repete os exatos: uma noturna, aos domingos, depois do Gigantes do Ringue - um desses vale tudo fantasia, avô bastardo dos MMAs que hoje ganham o mundo com regras e muitos dólares, e antes do videoteipe do jogo da rodada - a Gazeta não transmitia os jogos ao vivo, transmitia um videoteipe, com narração do Peirão ou do Solera - e uma versão diária, matinal, na hora do almoço. Cabulei aula, no meu primeiro ano de colegial, ou ensino médio para os mais atualizados, ou clássico e científico para os mais de antanho, várias vezes para ver o programa da Gazeta, que era no prédio onde eu estudava. Gazeta na gazeta, devia ser o nome do programa dos estudantes. 

No fundo, camaradas, somos todos torcedores, na dor, no amor, na economia, na cerveja, na política, no futebol e na porrinha. O formato descaradamente clubista do programa garantia bons debates, quebra paus homéricos. Mas evitava esse tipo de "isenção" ou "neutralidade" que tanto cagam e mancham de cocô as análises do suposto jornalismo brasileiro. Aparentemente aquilo podia ser simples ou simplista, não tinham os gráficos, as análises de desempenho, os números de passes certos, os números de gols onde o chute foi no meio do gol, não tinha "mapa" de calor para mostrar a movimentação dos jogadores em campo. Mas a gente sabia que o Dicá era mais preciso nos lançamentos, que Andrade nunca errava passe, que Paulo César Capeta dava um calor dos infernos nos laterais esquerdos, que os times do Telê gostavam de ter mais a posse de bola e que os times do Minelli eram fechados, bem armados, prontos para um golpe letal. Ninguém enchia o saco com as estatísticas de quantas vezes a chuteira do pé direito de fulano tocava na bola e nem das oitenta vezes que o time que jogava de azul conseguia a virada quando chovia em Estrasburgo. O dois a zero era um resultado perigoso e onde passava um boi passava uma boiada, eram as filosofias certeiras do Juarez Soares, que só não participava como mais um corintiano na mesa redonda porque era de outra emissora.

O grande problema das análises do time de Tite é que poucos dizem os óbvios, aqueles óbvios que são ditos por torcedores comendo pernil. Tentam dar planilhas onde deviam dar mortadela. O time de Tite é bom, ganhou três jogos e a rigor passou apuro um pouquinho contra a Suíça, depois do gol, e um pouquinho no segundo tempo contra a Sérvia. No resto foi o Tite de sempre. O técnico é o Tite, os times dele jogam assim, na segurança, a volúpia do um a zero. Se Coutinho e Casemiro estão a gastar a pelota, sendo Coutinho o super trunfo do pacote, o time tem presepadas. Falta ao time do Tite rebolado, gente que se mexe, alterna de posições no ataque. Que se libere Marcelo para flutuar e viver a vida loca de Real e que Tiago e Miranda se virem para dar cobertura. Que Neymar deve as vezes trocar com Willian de posição e que Willian, pelo amor de todos os deuses e deusas do universo, não pode ficar só no lado direito do campo, porque qualquer hora ele sai pela linha lateral e ninguém vai perceber. Aliás, pelo talento que tem, Neymar pode inclusive jogar de centro avante, trocando com Gabriel, e pelo meio, trocando com Coutinho. É um desperdício confinar o onze santista num lado só do campo, mesmo quando ele ziguezagueia pro meio parte de um lado só. E tem Firmino, entra Firmino. Enfim, mais remelexo menos missa. E que Tite convocou errado...

Não levar o Reinaldo do São Paulo fez o Brasil perder aquele lance de gol gerado pelo lateral batido lá no meio da área, para um bumba meu boi deus nos acuda na área adversária. O leitor pode rir, mas com um a zero, precisando empatar, quarenta e dois do segundo tempo, tem mais chance quem se desespera sem pudor, um beijo de batom vermelho e com mais bola na área saravá meus orixás.

27 de junho, 2018. Brasil e Sérvia. Costa Rica e Suíça. Suécia e México. Coréia do Sul e Alemanha.








quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contos de Leiteria


Devo ter organizado uns mil campeonatos de botão quando era moleque. A maioria desses campeonatos joguei sozinho. O Estrelão no meio da sala, times espalhados pelo tapete. Até a mesa de jantar era estádio, abrigava finais de Maracanã. Obviamente, por razões absolutamente evidentes, o São Paulo costumava faturar muitos torneios. Eram raras as derrotas do tricolor. Mas houve uma Portuguesa de Desportos, de Enéas e Wilson Carrasco, que numa tarde, entre o Speed Racer e o Savamu Demolidor, produziu um milagre para erguer catedral.

A finalíssima do torneio tinha que caber no tempo entre os desenhos. A história de Savamu estava empolgante, ele devia enfrentar algum gigante tailandês depois de ter sido derrotado numa primeira luta e treinado sozinho numa floresta para a revanche. O famoso chute no vácuo foi treinado contra árvores e o lutador saltava e caia numa fogueira que ficava no relvado. Ou seja, não dava para perder. O fato é que Portuguesa e São Paulo entraram no campo logo após o Corredor X salvar pela enésima vez o pescoço do irmão. A campanha da Lusa tinha sido excelente. Enéas estava literalmente possuído. Acho que na semifinal destroçou o Corinthians de Palhinha e Geraldão. Se não foi o timão, a vítima deve ter sido o Palmeiras, de Beto Fuscão e Polozzi. Já o São Paulo teve uma vida mais tranquila, vencendo a Ponte Preta de Dicá, o Guarani de Zenon e triturado o Fluminense de Edinho e Pintinho. Lembro de tudo. Arrepia contar o que aconteceu depois...

Na partida, numa saída de bola, eu literalmente escorreguei a palheta que comandava as ações do volante Almir. A bolinha chata de jogo de War resvalou no Wilson Carrasco e foi parar no fundo do gol do Valdir Peres. Inacreditável. Eu quase invalidei o gol, não tínhamos árbitro de vídeo, meu irmão devia estar no quarto, meus pais trabalhando. Ninguém ia saber de nada. Mas a consciência, sei lá porque, pesou. Gol. E pronto. Tinha tempo para virar. O que se sucedeu foi um massacre. O São Paulo bombardeava a defesa da Lusa. Eu jogava usando uma regrinha de cinco toques para cada time em cada jogada. Nas saídas de bola da Lusa, misteriosamente, as bolas batiam nos botões do tricolor. Mudava a posse da bola, então. O relógio correndo. Os comerciais da groselha Milani e do DD Drim, "nesta festa preciso por um fim", indicavam que em poucos minutos começaria a luta do século. Dei uma porrada num jogador do São Paulo, dentro da área. Expulsei o zagueiro da Lusa. Marca da cal, penal, bateu, o goleiro Moacir pegou. Palavrão. Na tela da TV, a música do Savamu: "Ele se julgava o demolidor, ele se julgava o demolidor". 

Mas o assombroso, o sobrenatural, ainda estava para acontecer. Da defesa do goleiro a pelota foi parar nos pés de Eneás. Ou seja, bola com a Lusa. Displicentemente eu toco com a palheta no botão. A bola ganha uma força sobrenatural e cai na gaveta do Valdir, encobrindo Oscar e Dario antes de morrer no fundo da meta. Dois a zero. Depois daquele dia nunca mais duvidei de fantasmas e que espíritos comandam por vezes as partidas de futebol. Confesso que remoí todos os lances e quase que me estraga o desenho, inconformado que estava. Anos depois, lendo Nélson Rodrigues, reconheci na leiteria o Castilho que morava no Enéas do meu jogo de botão da Portuguesa. Entendi tudo.

Dias depois, Eneás foi transferido para a Itália, acho que para o Bologna. Mas no campo de botão lá de casa virou uma entidade e resolvia sempre jogos impossíveis. Cheguei a escalá-lo no lugar do Éverton numa quinta feira a tarde chuvosa e sem tv em casa. A única partida que fez pelo São Paulo. 

Vendo a partida da Argentina contra a Nigéria, revi e reforcei minhas crenças. Não foi o Eneás, evidentemente. Mas aquele gol do lateral esquerdo, de perna direita, que segundo a própria mãe do jogador em entrevista aos periódicos portenhos só servia para subir nos degraus do ônibus, aos quarenta e larai do segundo tempo, foi de Batistuta, que encarnou no pé do lateral, ali, bem ali, e aos olhos de toda a multidão do mundo. 


26 de junho, 2018. Argentina e Nigéria. Islândia e Croácia. França e Dinamarca. Peru e Austrália.






   

terça-feira, 26 de junho de 2018

Para ler ao som de Pinduca, Dona Onete y Ruben Rada, porque no???



Daquelas cousas indesculpáveis, não ter dado a chance ao Mangueirão de sediar partidas de uma copa do mundo talvez sido uma das mais retumbantes bobagens de nossa história contemporânea. O estádio principal da cidade de Belém, no Pará, sedia uma das rivalidades mais estrondosas do futebol: Remo e Paysandu. E, de quebra, abrigou jogos da simpática Tuna Luso durante os anos dourados do cruzmaltino. A rivalidade entre o Remo e o Paysandu, Leão e Papão, é capaz de lotar estádios em jogos das séries A, B, C, D, do alfabeto inteiro.

Ignorar, por razões de sei lá qual ordem, esta rivalidade durante o preparo para a copa do mundo e escolher outras sedes, sedes em que o futebol era mero pretexto, demonstra muito da nossa incapacidade de entender o futebol como elemento central de nossa cultura, de nosso país, de nossa civilização. Não foram os portugueses que deram unidade ao Brasil. Foi a Rádio Nacional, foi Leônidas da Silva, foram Pelé, Didi e Garrincha. Internacional, Grêmio, Cruzeiro, Atlético, Sport, Náutico, Santa Cruz, Bahia, Vitória, Remo, Paysandu, Flamengo e River. Com um pouco de paciência, num boteco, poderíamos escrever um grande tratado de sociologia, antropologia, economia e política somente conversando sobre futebol.

O Brasil tem uma elite que odeia o Brasil. E para exercitar este ódio mascara, avilta, machuca, esquece nossa história. Nunca deu tratos à nossa maior ignomínia, ao nosso maior vexame, a escravidão. Na escola temos uma aula que diz que foi assinada uma lei por uma princesa bondosa e pronto, borracha. Não tratamos de nossa recente ditadura civil militar, não responsabilizamos o estado pela barbárie, pela tortura. Aprendemos que teve um golpe, que teve colégio eleitoral, que teve Tancredo, que Tancredo morreu, Sarney assumiu e acabou a ditadura, borracha. Nunca tratamos das borrachas, borrachadas, esculachos das forças de segurança contra a população mais pobre, negra. Aprendemos índices de violência e naturalizamos o confronto polícia e ladrão. Não nos furtamos em afastar uma mulher da presidência do país, eleita, só porque não íamos com a veneta dela, porque ela era mulher, usando argumentos os mais hipócritas possíveis. Nas escolas não se fala mais de Kuarup.

Não é diferente no futebol. Não temos interesses em ensinar nossa história nas copas, nos campeonatos. Basta afirmar que somos os melhores do mundo, no ufanismo idiota, como que brotando magicamente. Estamos esquecendo de Pelé e sem Pelé não há Zico, sem Zico não há Romário, sem Romário não há Ronaldo, sem Ronaldos não há Neymar. Pelé já é algo distante, alguns tratam como anedota ou como figura mítica, daquelas que perdem importância porque não precisamos mais de "Vitasay".  

Sem Maracanazzo não há 58. E sem 58, senhouras, senhoures, não há Brasil. Quanto mais distante for 58, mais nos distanciamos daquilo que poderia nos caracterizar como civilização, a civilização brasileira. Didi da Guiomar, Garrincha, Djalma e Nilton Santos. Éramos mais felizes e não porque a nostalgia alimenta. Porque tínhamos um sonho que ia muito além de fazer compras em Miami ou morar em Lisboa. 

A magistral partida da Colômbia contra a Polônia não se resume no passe saboroso de James para o tento de Mina, nas alturas. Nem do toque sutil de Quintero para o arremate lindo de Falcão Garcia. Muito menos na pintura de capela que foi o lançamento de James para o terceiro gol de Cuadrado. O magistral esteve no abraço de Higuita e Valderrama nas arquibancadas, um abraço de mais de mil palavras.

Nas coletivas de imprensa após a vitória indiscutível contra os russos, os jornalistas uruguaios perguntaram para o "maestro" Oscar Tabarez - o mais velho dos treinadores nesta copa e o que mais vezes a disputou como treinador, 1990, 10, 14 e 18 - sobre a partida e o que ele achava da Celeste ganhar dos anfitriões, assim como ganhou da África do Sul em 2010, da Argentina na Copa América de 2011 e do Maracanazzo, 1950. Celeste Olímpica, vencedora das Olimpíadas de 1924 e 1928, as outras duas estrelas que compõe o conjunto de quatro na camisa azul que entorta varal, mesmo sendo de um país pequenino de território. 

O Remo está na série C do Brasileirão. O Paysandu na B. A Tuna Luso disputa a segundinha do paraense. No sítio da internete da Tuna, garbosamente, se anunciam dois títulos nacionais. Eu, correria lá para ler.

25 de junho, 2018. Uruguai e Rússia. Arábia Saudita e Egito. Irã e Portugal. Espanha e Marrocos.








segunda-feira, 25 de junho de 2018

Quando o marreco sorridente também gritou gol!


Era domingo. Último dia da segunda rodada da copa. Nas duas primeiras rondas, neste formato de grupos de quatro, são muito maiores as chances do lúdico, do brincar. Depois, tudo ganha ares de seriedades excessivas, classificações, epopeias, desastres, glória, fracasso, vexame, sete a um, dinastias e bebedeiras. Mas no comecinho, não. Ali naqueles primeiros momentos temos os sonhos de um Panamá campeão do mundo, de um gol antológico, de passes com azeite, bolas com açúcares, planos, brinquedos. Com jogos todos os dias, muitos jogos, muitas bolas, muito assunto. O deleite. 

Sim, há na segunda rodada as desclassificações prematuras - ninguém deveria ser sumariamente eliminado na segunda rodada e as regras perfeitas um dia levarão isso em conta nalguma fórmula mágica. Mas, a rigor, todos tem chances. Até o time mais estrombólico, caricato ou sovina. É um grande barato, basta gostar de picolé. Eu gosto muito de acompanhar estas rodadas ouvindo jogos pelo rádio. Há uma fantasia nas narrações pelo rádio que nos transportam para mundos paralelos. Ouça o centésimo gol de Rogério num desses videozins de vocêtubo e percebam que para cada narrador, um desenho, uma mágica, um conto. Até parecidos, mas diversos. O rádio, o futebol pelo rádio, vai muito além da imagem televisionada: é a imagem imaginada.

De uns tempos para cá, com o advento dos aparelhos de telefone móveis, pequenas máquinas de computadores muito mais possantes que os PCs dos tempos remotos de colégio, há aplicativos e possibilidades de conhecer e escutar rádios de todos os lugares do mundo. Este sempre foi um sonho que acalentei, toda vez que tentava colocar as antenas dos radiotransmissores que passavam pelas minhas mãos e tinham a frequência das "ondas curtas". Com o celular, as ondas curtas funcionam mesmo. Basta um sinalzim das internetes.

Voltando ao domingão, fui ao parque com minha filha pequenina no horário do jogo do Senegal. Fui de carrinho e pude num plano infalível ouvir trechos do jogo. Um fone num ouvido e outro pronto para ela. Só quando ela quis dar milho e piruá para os patos é que deixei os fones. A menina adentrou corajosamente ao setor de patos e galinhas, galos e pintinhos do parque e eu resolvi que era melhor marcar de perto a atacante do meu próprio time, já que ornitologia é uma ciência que demanda total atenção e bicada de pássaro dói mais que chuteira de trava na canela. Bom, a menina andou para cima e para baixo, correu, correu de novo, subiu com a boneca para lá, para cá, conversou com o baile todo e, obviamente, se cansou. E pediu colo.

Lá pelas tantas ela estica as mãozinhas para os fones de ouvido. Estica, resmunga e só para quando eu entrego para ela. Automaticamente, ela coloca os fones nos ouvidos dela. Sem som, porque estavam desconectados. Reclama, aponta para o telefone, resmunga, chora. "Tá filha, vou ligar."

Antes de procurar alguma música, o celular estava conectado a uma rádio de Dakar, Senegal. Senegal e Japão faziam seu jogo na copa. Não entendia nada. Era um "Senegale hã Japonaise hã" que imaginei ser um a um o placar. O fato é que o narrador desembestou a gritar exatamente na hora que a menina recolocava os fones, desconfio que foi o segundo gol senegalês: "Futebó! Futebó, papai". E sorri gostoso.

O pai? O pai quase evapora naquele sorriso. E colocou o outro fone tentando descobrir se tinha sido mesmo gol...


24 de junho, 2018. Senegal e Japão. Inglaterra e Panamá. Colômbia e Polônia.




domingo, 24 de junho de 2018

Amarrações para o amor


Muito e muito se fala do drama argentino nesta copa. Do drama brasileiro, menos dramático, mais novela das oito, mas drama. O drama alemão, atenuado no milésimo final de uma partida em que a toalha já teria sido jogada fossem outros dramas. O drama italiano, que nem para copa veio. E todo jogo da Celeste é um drama. Queria falar de outro drama, porém, que parece não existir nos cérebros mais retilíneos. Mas existe, com a força repleta de ancestralidades...

No fim do jogo entre alemães e suecos, o juizão dando cinco minutos de acréscimos, pensei duas cousas: a primeira, era muito tempo para a Suécia se segurar. A segunda, caçarola, o México, vai sobrar para o México. Osório é nesta copa o São Paulo Futebol Clube de "sombrero", sabemos.

O gol alemão no fim, do cara que nunca erra passe e quando erra passe faz gol no último milésimo e se redime zerando a estatística, colocou água na tequila do grupo. O México fez uma partida muito linda contra a Alemanha e ganhou dos coreanos do sul numa partida relativamente tranquila. Mas tomou um gol no fim, diminuindo saldo. Vai para a rodada final com saldo de dois gols, seis pontos. E pega a Suécia, um time burocrático, mas saidinho - foram os suecos que eliminaram os italianos da copa e quem elimina a Itália merece o benefício da dúvida, sempre. A Suécia tem saldo zero, três pontos. Na outra ponta, Alemanha, três pontos e zero de saldo, contra a Coréia do Sul, zero ponto e dois negativos de saldo. Em tese, todos com chances. Mas com um olhar otimista para os mexicanos. E aí reside o drama, no otimismo. O otimismo é para os latino americanos o equivalente ao "só que não" das redes sociais.

Dos povos que tem o futebol como segunda pele, é o México que carrega o fardo mais pesado de falhar em momentos agudos. Os de memória mais pródiga vão lembrar de eliminações impossíveis, como a da copa passada, quando o México perdeu o jogo das oitavas para a Holanda numa reviravolta inacreditável, num jogo onde parecia impossível que perdessem. E notem, passando pelos holandeses, enfrentariam pelas quartas a Costa Rica, um adversário que o México enfrenta todo ano, conhece esquema, capital, aeroporto, pina colada. Era caixa a vaga na semifinal. 

O fato é que México e Suécia tem tudo para ser o jogo mais dramático de todos os tempos. A Alemanha ganhando da Coréia e fazendo saldo, e no jogo de cá aquele empate com bola na trave, juiz errando penalti, o VAR mais complicando que ajudando, torcida gritando. E Osório lá, pensando no que fazer. Osório, o profe, é o único capaz de levar o México ao delírio supremo: não descarto sequer o caneco. Mas, sei lá, num rompante tira o lateral mete um centro avante, recua o ponta para marcar e transforma em autopista libre de percalços uma das alas do campo...

Osório, um empatezinho e estamos lá. Só um empate. De qualquer forma já vou amarrar umas revistas suecas antigas e fechar as amarras num cadeado velho.


23 de junho, 2018. Alemanha e Suécia. México e Coréia. Bélgica e Tunísia.





sexta-feira, 22 de junho de 2018

Os orixás da bola



O primeiro gol da Nigéria, na partida de hoje contra a Islândia, é a explicação mais evidente das razões que fazem o futebol ser imortal. Até o milésimo de segundo anterior ao início da correria do lateral - ou ponta, meia, atacante, zagueiro, tanto faz - que lançou a bola para o domínio de Musa, na área islandesa, noventa por cento do mundo imaginava que a Islândia acabaria achando seu golzinho, se fecharia em copas, quase carimbando a vaga para a segunda fase.

Ocorre que a bola tinha outros planos. Gosto de pensar na redonda como um ente mágico. Mas inerte, quase sempre. Mas um carinho, um afago, um sopro, uma canelada, uma matada no peito ou uma desengonçada cabeçada podem despertá-la. Desconfio que foi o que ocorreu quando o jaqueta onze na Nigéria se lançou ao universo em direção a linha de fundo. O lançamento. A parte de fora do pé de Musa. E ela se recolhendo ao campo do chute, matreiramente, dando um quique que a deixou exatamente da ponta da chuteira do sete africano. E vai descansar gostosa no fundo da meta, para um mundo atônito. A beleza, plástica, mas do efêmero: A Nigéria voltava para a copa, trazia a Argentina de volta ao baile e, trazendo a Argentina, acolhe novamente a Messi. A Nigéria, que ao lado dos Camarões de Roger Milla, embala a mais tempo o sonho de um caneco inédito africano. Se a dança senegalesa emociona e nos redime, a Nigéria de volta ao sonho é um parque de diversões onírico. Com um gol desses... um gol que explica tudo.

A grande copa de Neymar seria a de 2010. Lá naquele antes, em terras sulafricanas, o menino já ensaiava seus passos de virtuose e ballet no Santos de Pelé. Não foi convocado, porque Dunga, um dos melhores volantes volantes que o mundo já viu, é um eterno ressentido - queria ter sido meia desconfio. O time de 2010 chegou na África do Sul super favorito. Ganhou de todo mundo na véspera. Com contragolpes fatais. Mas no torneio foi mal, muito mal. A contusão de Kaká matou o esquema de Dunga e sem Kaká o time se revelou excessivamente quadrado. Neymar ali seria a chance das geometrias, era um ilustre desconhecido e faria do mundo mais um zagueiro joão. Hoje,oito anos depois, Neymar é mais conhecido e manjado que muito artista de cinema americano, desfila, se exibe, demanda. É brilhante, mas não tem mais aquele frescor que o deixava incólume perante as vicissitudes e as labaredas do mundo, as nossas e, também e também, as dele.

Um ano antes da copa de 2010, na Nigéria, num mundial de quase meninos, chamado oficialmente de Sub/17, houve uma partida entre Suíça e Brasil, no Estádio Nacional de Abuja. O Brasil tinha Alisson no gol, tinha Casemiro, tinha Coutinho e tinha Neymar. Um timaço. A Suíça tinha Seferovich, Rodriguez e Granit Xhaka, que são titulares do time nesta copa do mundo e estiveram em campo no empate inaugural da semana passada. A partida acabou 1x0 para a Suíça, o Brasil foi desclassificado na fase de grupos. 

Aliás, o gol de Xhaka, hoje contra a Sérvia, foi um golaço de marca, um pelotaço com raiva de fora da área. Daqueles gols que ecoam. A Suíça pode não ir longe nesta copa, mas em 2009, foi quem levantou a taça. Vencendo a Nigéria na finalíssima.

22 de junho, 2018. Brasil e Costa Rica. Suíça e Sérvia. Islândia e Nigéria.






  

quinta-feira, 21 de junho de 2018

O tango do sexo das corujas mortas



Ser desclassificado de qualquer torneio é morrer um pouco, sempre. Desde a desclassificação evidente, que só machuca o peito, até aquela que é cruel, com requintes de filmes B e temperos de fim de mundo, que chegam a dilacerar tecidos. 

Lembro de um pelotaço de Ademílson, atacante vindo de Cotia, no São Paulo numa fase eliminatória de Libertadores, contra o Galo, em pleno Morumbi. A bola absolutamente lasciva, pingando na área, goleiro batido e o nosso atacante dá um chute galaxial, a redonda virando satélite. Já estávamos com dez em campo, desconfio, mas um gol ali era batata e classificação. Passei a semana fechando os olhos e a imagem que aparecia era o satélite quicando na lua. 

Se o jogo é de quarta a noite, virá o combo insônia, refluxo e saudade, rememorando o que poderia ter sido. É uma das sensações mais intensas que alguém pode viver. E sobreviver. Porque o campeonato seguinte começa em breve.

O cacete de uma eliminação na Copa é que existe uma maldição a mais: somente dali a quatro anos é que o gato que desvencilha do telhado. Sim, tem a questão das eliminatórias, que podem piorar o gosto de café frio. Ou seja, o dia que se sai da copa é um dia moribundo. Ainda mais se as conexões com o seu time estão presentes, em afeto e carinho. 

É evidente que os peruanos estavam de caso amarrado com o selecionado. Todas as matérias de recheio das coberturas esportivas do certame russo apresentaram rostos pintados de vermelho e branco, exaltando as qualidades do time, fazendo barulho nas ruas e nos estádios. A festa na partida de despedida do Peru de Lima, numa partida contra a Escócia, se a memória não me trai, foi daquelas deliciosas quizombas, de dar um tiquinho de inveja, remorso, espinha de peixe na goela. E o Peru já está fora da Copa, apesar de ter feitos dois jogos bastante razoáveis. Hoje o vermute não foi digestivo.

Vi boa parte do jogo entre franceses e peruanos. De uma lado um time enjoado, com muita qualidade aparente nos toques de bola e com um volante descomunal de bom, Kante. Mas um time confuso... por não encontrar uma palavra mais adequada para descrever o trem. Do outro, um time brioso, mas cheio de incompatibilidades entre a bola e os pés. Mas os sulamericanos jogaram como puderam, emparelharam o jogo. Lá pelas tantas, partida já com o placar de um a zero, a bola vem em direção a um dos peruanos menos famosos e o cara acerta na veia da redonda, dá para ouvir o barulho quando escrevo. Do pé na bola, um movimento levemente curvo, parecendo reto, um canhão. O tempo pára. A transmissão da tv, a narração do rádio, a respiração. Numa velocidade incrível e inapelável, a bola passou pelo goleiro e explodiu no travessão. Ali onde a coruja faz ninhos. Ali onde os sonhos viram passado. Ali onde não há o chuá delicioso do som da pelota se emaranhando as teias da baliza e, sim, um estalo de ferro. Excesso de ferro, revelam os exames de sangue, problemas de fígado. A eliminação se deu ali. Nunca mais. Quando a bola volta ao campo de jogo ela já é outra, deformada, rasurada.

É lindo também, nesse jogo de palavras e sentidos, que nós chamamos em muitas obras de arte, na literatura, nas telas e nas alcovas, o momento do orgasmo de "pequena morte". Como se depois, não houvesse mais nada. Deve ter sido o que Modric sentiu depois de desferir o chute que resultou no segundo gol croata contra a Argentina. Croatas e peruanos morreram um pouco hoje. Os argentinos não: seguem vivendo em seu tango dramático, "por una cabeza". 

21 de junho, 2018. Dinamarca e Austrália. Argentina e Croácia. Peru e França.




quarta-feira, 20 de junho de 2018

"Aperfeiçoando o imperfeito"


Ouvi uns pedaços do jogo de Portugal, numa estação de rádio lusitana, pelos fones de ouvido no celular. O telefone celular é uma invenção do demônio, todos sabemos. Mas o tinhoso é sempre contradição: criou algo para nos amarrar definitivamente ao trabalho, nos dar a sensação de estarmos ligados, conectados, plugados, por toda a existência da bateria, mas, por outra ruela nos deu os aplicativos de música e as rádios. Uma no cravo, outra na ferradura. Como na copa: Um Portugal e Espanha dum lado,um Coréia do Sul e Suécia, benzadeus que partida árida, doutro.

Os narradores portugueses, eles narram os jogos em dupla, assim como os uruguaios, torcem descaradamente e sem pudores para seus selecionados. É estranho quando comparamos com as nossas narrações mais famosas, que exageram num ufanismo que não podemos chamar de torcida... e não sei muito bem explicar o que é. A vitória parece que vem por causa de algo natural, inato e a derrota vem porque alguém cometeu algum crime. Os portugueses falam das naus perdidas. Nós falamos de como se perderam as naus. É uma linhazinha tênue mas é barbante. Nos jogos da seleção talvez fosse melhor escalar sempre o Silvio Luis e os seus bordões: "pelas barbas do profeta". Ou o Osmar.

O único jogo que vi quase inteiro nesta copa foi o Portugal e Espanha. Um belo jogo de futebol. Nos demais, o televisor ou o rádio ligado, mas sempre fazendo algo em paralelo. A copa, como encanto paralelo. Perdi muitos pedaços de jogo e vi alguns gols só em videoteipe. Como os de hoje. Não sei, então, nem tento, estabelecer análises de tática, técnica, desempenho. Aliás, estas análises andam chatas por aqui. Tentar criar sistemas lógicos que expliquem resultados, com índices de posse de bola, de chutes a gol, de onde a bola foi chutada, gráficos e mais gráficos, coloridos, bonitos. Não sei estas análises dão conta do jogo. A beleza de uma retranca, e como são belas as retrancas, quase nunca é observável dentro desses critérios matemáticos. Cannavaro nunca teria sido o melhor do mundo numa copa se os critérios de análise fossem só os de "show do intervalo".

Me disseram do Irã na partida com os espanhóis. Deve ter sido uma retranca lindíssima. Assim como foi a da Islândia. Nosso problema é tratar o futebol como obrigação de espetáculos e malabarismos circenses, quando na verdade são os imprevistos, os impossíveis, os incrédulos que dão perfume a este jogo, um dos poucos onde o melhor nem sempre ganha. Ninguém se apaixona pelo futebol numa partida do Barcelona ganhando com oitenta por cento de posse de bola. A gente pode admirar, achar um feito incrível, uma obra de arte, ter o gozo. Mas o que apaixona, aprisiona a bola no lado certo do coração, foi o dia em que o Mineiro recebeu um passe milimétrico do Aloísio Chulapa, entrou na área e caixa, time campeão contra um outro aparentemente muito superior. É a vitória do Valladolid num único ataque, nos seus dez por cento de posse de bola. É a vitória de Camarões na abertura da copa. E a dança do Senegal. A paixão só pode ser despertada num dia de vitória impossível. É o caneco do Leicester. É o Olaria do Afonsinho. Depois de instalada a paixão, a gente administra, transforma a paixão em amor, resolve querer ganhar sempre, aplaude e exige o bonito. Mas durante uma copa a gente percebe que amar é importante, mas paixão.... aaaaaaah..... paixão é foda, é bola na rede, é o salve-se quem puder na zona do agrião...

Na volta para casa, tentando recuperar os placares que perdi - num perdi muita cousa pelo jeitão de um a zero magrinho de todos eles - percebi que no meu bolão cravei Irã 1 x 1 Espanha. De certa forma, ainda tem paixão neste navio.


20 de junho, 2018. Portugal e Marrocos. Irã e Espanha. Uruguay e Arábia Saudita.





terça-feira, 19 de junho de 2018

O jogador que falta a seleção



Eu gosto de copa. Mas tem muitas cousas que eu não entendo. Uma delas, pujante, é o diacho de interromperem as partidas da série A do Brasileiro, a Libertadores e a Sulamiranda. Abraçados aos meninos e com a menina pulando entre nós no sofá, me perguntam os dois: "quando é que o São Paulo vai voltar a jogar?". Já estou na fase de não saber responder a todas as perguntas deles...

Alguns vão dizer que não dá para competir com o certame mundial, que seria uma espécime de cereja oficial da federação que organiza a bagaça toda. Outros irão dizer que não teria como porque exauriria as pessoas com tantas informações sobre o futebol. Outros, os diretores da empresa que monopoliza as ideias do país - essencialmente esses, acham que iam ter que contratar jornalistas, equipes de esportes e equipes operacionais, para poder dar conta de eventos simultâneos como estes e ficaria muito oneroso. Eu, aqui do breu das tocas, acho tudo isso cascata, lorota, falta de comprometimento ou o excesso doutro comprometimento qualquer outro.

Começa errado, por direitos de transmissão comprados a preços exorbitantes, que uma única empresa detenha o poder de transmissão sobre os jogos de todos os campeonatos. É o capitalismo de merda que o país está acostumado desde sempre, onde a "competição" só interessa no quinhão alheio. Não sei porque os órgãos de proteção ao mercado simplesmente não proíbem este tipo de concentração de atividade econômica e cultural. Devia ser regra: transmite o Brasileirão, não transmite a Copa. Transmite o Paulistão, não transmite o Carioca. Tem contrato com o Corinthians, não tem com o Flamengo. Transmite Olimpíadas, não transmite Fórmula Um. Simples assim. Concentração é um bode, não é? Mas nosso liberalismo é  herdeiro de capitanias, neto de feudos, bisnetos de castas. Ou uma outra saída, linda de marrédessi que seria liberar o sinal para todo mundo. Eu, aqui de casa, transmito o que quiser.

E segue errado, porque a pausa no campeonato interrompe o coito. Lembro de uma Libertadores que o São Paulo enfrentou o Cruzeiro.Estávamos com os mineiros entalados porque tínhamos sido eliminados num ano anterior, sem chutar uma bola no gol em cento e oitenta minutos. Era eliminatória, o time estava naquele vai não vai. Mas antes da série, pudemos inscrever novos jogadores. Inscrevemos Fernandão. Fernandão fez história no Internacional de Porto Alegre, uma bonita história, e no Goiás. Pois bem, Fernandão fez duas partidas monumentais, Messi no chinelo, acabou com o Cruzeiro, tirou o nó e prometia mundos e fundos. Pausa para copa. Nunca mais. Fernandão teve passagem breve, nem titular foi durante o resto do período que ficou no tricolor. Perdeu o trem. Fernandão era um cara legal. 

Escrevo estas linhas como um desabafo, preocupado, com os rumos da prosa. Nenê, nosso sete, mais de trinta e cinco de RG, anda fazendo partidas de gala e garbo neste Brasileiro. O São Paulo fez mais pontos em doze rodadas do que em todo o primeiro turno do ano passado. Fico aqui matutando se esta pausa para a Copa não vai tirar esta adrenalina de nosso artista e voltará macambúzio destas férias forçadas...

Ao menos neste ano a Série B não parou. O Fortaleza segue fazendo uma campanha de Canal 100 e agorinha a noite estavam jogando Avaí e Guarani, na Ressacada. O estádio estava animado. No Guarani, Édson Silva desfilava na zaga. Édson foi,por um curto período, é verdade, o maior brasileiro vivo quando ocupou a bequeira do São Paulo: foram um ou dois jogos messiânicos. O cara chegou a cabecear o chão lutando por uma bola. Do lado do Avaí, também na zaga, Betão, ex Corinthians. Foi de Betão o gol que terminou com a fase mais bonita do Majestoso, onde bastava o Corinthians jogar com o São Paulo para acabar em crise: o 5x1 na estréia de Autuori, as quedas de treinadores, o show de Amoroso naquele jogo que teve que ser refeito pelo rolo da arbitragem. No ano do rebaixamento, logo após o São Paulo ganhar o caneco de forma antecipada, Betão fez o um a zero que tirou o Corinthians da fila. Depois daquele jogo o Majestoso anda dando mais dor de cabeça do que resultando em pão na chapa.  

Quando era menino, gostava também de jogar bola nos dias da Copa. O monotema era bálsamo. Desliguei o televisor, estava dois a zero para o Avaí. Os meninos dormiram, a menina dormiu, a casa em silêncio, vim escrever. Procurando os gols dos jogos de hoje na copa, quase li uma notícia da contusão do Neymar. Antes de abrir a aba, num canto, o nome de Aguirre pula na tela e me chama: "São Paulo faz treino com três zagueiros, Aguirre relembra os tempos vitoriosos de Muricy: Se é o melhor para o futebol, não sei. Mas é o melhor para o São Paulo.". Me emocionei, confesso.  


Em tempo: Avaí e Guarani empataram, um elétrico 3 a 3.

19 de junho, 2018. Japão e Colômbia. Senegal e Polônia. Egito e Rússia.










segunda-feira, 18 de junho de 2018

Juiz ladrão!!!!


Uma das piores invenções da humanidade é o árbitro de vídeo nas partidas de futebol. Aquele um que fica no ar condicionado, bedel de costumes e analisador de lances polêmicos, distante do calor do campo, presente no imaginário como o que vai sarar a injustiça no campo. Trata-se de grande besteira. Enorme, retumbante, fascinante.

Eu sempre escrevo que futebol são reminiscências. Muito, mas muito mesmo, do que acontece ali no campo tem pouca ou nenhuma importância. Aliás, pensando bem e que mal tem, o jogo dentro do campo inúmeras vezes é a coisa mais chata do futebol. Há uma transcendência no jogo, uma esfera confusa, contraditória, maravilhosa, dolorida, alegre, efusiva, desastrosa. O gol na data do casamento, a derrota na véspera daquela prova de química, os cantos dentro do ônibus a caminho do estádio, o sanduba de mortadela, o pernil, a namorada que foi com você no jogo. O cantar da torcida, o frio absurdo do cimento do gélido Morumbi, você e mais quinhentas testemunhas numa quarta feira de noite infame e sem condução, tendo que andar até a Rebouças para encontrar algum jeito de ir para casa. Sim, tem o campeonato, tem a briga, tem o quiprocó, tem o erro da arbitragem, tem a pantomima dum chute horroroso. Tem nó tático, tem vitória nos acréscimos, tem derrota humilhante e tem tirar pontos do campeão invicto. Tem rocambole, pipoca doce de isopor, cerveja quente. Tem Nélson Rodrigues, tem "O drible" do Sérgio Rodrigues. Tem Luis Airão, Chico Buarque, Nick Hornby e até o Iron Maiden. Tem o grupo de amigos no uátizapi. Tem o não dormir porque o time perdeu, xingando técnico, jogadores, preparador físico, diretor de futebol e o presidente da república, com azia e má digestão. 

O diabo, e o mau diabo, porque o bom gosta de sambar, é que de uns tempos para cá resolvemos emprestar ao futebol os sentidos morais de uma vida cheia de virtudes. O futebol deixando de ser válvula, arte, música, brincadeira, para ser um simulacro das boas relações sociais, quase que uma reedição dos dez mandamentos. Não roubarás, não matarás, não simulará nem penal nem cusparada. E como nas relações sociais, na vida em concreto, a gente não consegue reproduzir a totalidade dos mandamentos sem dar uma escorregada no quiabo de vez em quando, resolvemos escolher o futebol como lugar do "justo".

Não, evidentemente que não. Não é lícito, legítimo, correto, desejado, vencer uma partida com um gol ilegal. Não vale tudo. Mas a linha onde se constata a má-fé, a blasfêmia, a injúria não é tão firme e resoluta assim. Temos mania de dar como exemplo de mau caratismo o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra. Um gol de mão, da Argentina contra a Inglaterra, cazzo! Esquecemos tudo o que ao redor daquele gol se encerra. E julgamos com nossas virtudes todas de quem nunca esquece de escovar os dentes. Mas o penalti que Nilton Santos fez contra a Espanha na copa do Chile e pulou para fora da área, para enganar o juiz, foi o que? A cotovelada de Pelé? Ou o esperar no vestiário, excedendo os quinze minutos entre um tempo e outro, deixando os ingleses debaixo de um sol asteca de mil deuses no cucuruto, na partida mais difícil de 70? A nossa dupla moral, que a gente veste conforme o calor que está lá fora: ora um terno modelinho básico de boa costura ora uma sunga de crochê.

Miranda foi empurrado pelo suíço? Aaaaaah.... por favor.... qualquer jogada de área tem destas. Tem juiz que marca, tem juiz que não marca, tem zagueiro que reclama e tem zagueiro que não dá a mínima, porque puxou o calção do centroavante no lance anterior. Aí, o vestal, lá da cabine com ar condicionado, decide chamar o juizão para lhe dar conselhos ou veredictos. Não sei, mesmo, se me convenço da utilidade disso. "Segue o jogo!".

O futebol é lugar para reminiscências, saudades, memórias, lembranças - muitas delas infantis. Mas me parece que, ao contrário de buscarmos nisso toda a beleza e a infinitude do jogo, estamos é infantilizando a disputa: não se tolera mais a frustração, não se pode deixar espaço para o dúbio, vamos aplicar um corretivo para quem fez feio, menino mau. E como crianças que precisam de distrações para não pensar e questionar a merda de escola que lhes é oferecida nós deixamos que todo o debate sobre o jogo fique nisso de juiz ladrão, gastamos horas e horas nisso, fazemos discurso, fincamos o pé, birra e mais birra. Estamos todos impedidos.  



18 de junho, 2018. Suécia e Coréia do Sul. Inglaterra e Tunísia. Bélgica e Panamá.



Para quem não conhece, ou para quem quer se lembrar, uma cena antológica do filme "Boleiros" do Ugo Giorgetti, com o magnífico Otávio Augusto:

https://www.youtube.com/watch?v=E2Q2icAoKrQ



domingo, 17 de junho de 2018

Zétti, De Sordi, Oscar, Mauro e Noronha. Rui, Bauer e Zizinho. Muller, Leônidas e Careca.



A camisa que tenho da seleção do Brasil é a branca, de 1950. Comprei numa dessas lojas que vendem camisa "retrô". Depois do Maracanazzo nunca mais o Brasil jogou de branco. Gosto de pensar que a minha camisa era a do Bauer, centrocampista que teve a alcunha de "Monstro do Maracanã", um dos poucos que se "salvou" da tragédia. Bauer faz parte de um dos poemas mais bonitos do ludopédio: Rui, Bauer e Noronha, linha média do São Paulo dos anos quarenta.

A camisa branca também podia ser também do Mestre Ziza, o Zizinho, o dez de cinquenta. O mestre foi o Zé Sérgio do Édson Arantes, li certa vez. Comparado a Picasso e a Da Vinci, Zizinho foi um jogador espetacular, capaz de proezas múltiplas. Vindo do Bangu, do estádio de Moça Bonita, que tem como nome oficial, de batismo, "Proletário Guilherme da Silveira" - só pelo nome do estádio o Bangu devia ser campeão todo ano -, Zizinho foi o maestro do time campeão paulista de 1957 e até hoje o Pacaembú nunca mais viu um time tão espetacular. Tinha o mestre mais de trinta e cinco em 58 e por isso, provavelmente, não foi cotado para compor o selecionado de 1958, o primeiro campeonato brasileiro da Jules Rimet, num time potencialmente impossível: Pelé, Garrincha e Didi. Fosse Zizinho um aninho mais novo e o menino Pelé talvez não fosse para a Suécia. 

Em 58, jogamos de azul. Ao menos a final foi de azul. Era a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida, segundo um dos dirigentes. Nos teipes, nas gravações de rádio, nas letras de Nélson, no Museu do Futebol, o time de cinquenta e oito é um estupendo avanço civilizatório, uma alegoria da imensidão que o Brasil poderia ter sido, entre acordes de bossa nova e a folha seca de Didi. O amarelo, portanto, vem depois. 

O amarelo tem causado muita crise existencial,sabemos, de uns tempos para cá. Houve uma apropriação indevida da camisa, da cor e da história e esta tristeza entope as coronárias. Mas quem nunca se emocionou com a mão levantada de Reinaldo e seu gol contra a Suécia? Ou no soco no ar de Pelé? Ou o Doutor, naquele lindo gol contra a Itália? O cacete da história é que a composição de narrativas contraditórias por vezes nos fazem esquecer das essências das cousas. Desde Fried, depois com Leônidas da Silva, da rádio Nacional, das narrações de Ari Barroso, o futebol e a seleção são nossos marcos de identificação cultural e de história, como definidor de nossa gente, como Pixinguinha, Tom Jobim, Milton Santos, Machado de Assis, o samba, os memes. Não temos as Ilíadas, por falta de idade e porque mataram nossos índios ancestrais. Mas temos o chapéu de Pelé no atônito zagueiro galês. Ou o gol de pé descalço contra a Polônia, do nosso Diamante debaixo duma chuva de dilúvio.

No sábado, Marco e Leonel, meus filhos, me pediram para comprar camisas da seleção. E ainda por cima questionaram a minha falta de simpatia, para ser eufêmico, com o time brasileiro. Não adiantou muito qualquer argumento. A simples lembrança do time de Telê e dos abraços que dei em meu pai durante os jogos de 82, me derreteram. Eu tenho direito de negar aos dois este picolé, este chicabon, esta groselha com gelinho na praia em dia de sol? 

Compramos as camisas, no museu do futebol, no mítico Pacaembu. Uma preta de goleiro, uma azul de treino. Sem patrocínios, nem oba oba. E vestimos hoje, eu com a velha camisa branca.

Durante a partida, lá pelas tantas, televisor com som desligado e rádio no talo, daquelas alegrias sem preço, depois de um pombo sem asa e sem direção de algum jogador do time de Tite: "Pai, tenho certeza que se fosse o Shaylon tinha sido gol". 

E concordamos de forma inequívoca que Sidão não tomaria nunca aquele gol de empate.


17 de junho, 2018. Brasil e Suíça. Alemanha e México. Sérvia e Costa Rica.




sábado, 16 de junho de 2018

Como sói acontecer



José Sérgio Presti, o Zé Sérgio, ponteiro esquerdo do São Paulo no fim dos setenta e começo dos oitenta - e que depois jogou no Santos, no Vasco e no Japão, foi o meu Pelé. De certa forma foi a partir de suas jogadas, de seus dribles e avanços, de seus gols, que comecei a ver o mundo com mais carinho pela esquerda do campo. 

Foi num natal entre 77, e aí deve ter sido Papai Noel, e 79, e aí devem ter sido meus pais, que ganhei os primeiros times de futebol de botão, meus grandes e saudosos camaradas, que me acompanhariam brincadeiras e vida adentro. Eram dois times de botão daqueles de acrílico, de prenda de festa junina, do São Paulo e do Santos. E junto aos times, o Estrelão, o meu Morumbi. Escalo o time que fez a partida inaugural, em voz de repórter de campo: "Valdir, Getúlio, Bezerra, Chicão, Neca, Serginho e... pela ponta esquerda, confirmado, Zé Sérgio, com a ooooonze!". No Santos, tinham Nilton Batata, Rubens Feijão e Juari. O jogo deve ter acabado com vitória tricolor, provavelmente por goleada. Mas, certamente, Zé esmerilhou: fez gol, passou, driblou, bateu lateral, escanteio, foi zagueiro e tudo mais. Eu tinha um caderninho que anotava os jogos e resultados das minhas partidas. Quando o caderninho se fechou, devia estar na faculdade já, o Zé devia ter uns mil gols.

Aquela jaqueta onze foi motivo de sonho. E de dores: Zé teve a carreira abreviada por contusões, por ter quebrado a perna e por um episódio de doping por causa de Naldecon ou dalgum tipo de antigripal similar. Odeio remédios,  abaixo a medicalização! Os zagueiros só paravam o Zé na porrada. Eu chorei quando o Zé, voltando do estaleiro, teve uma recidiva num jogo de meio de semana. Naquela época, na Record, durante o bangue bangue a italiana, os resultados dos jogos do campeonato paulista eram mostrados por pequenos tipos na parte inferior da tela. Os faroestes espaguetes e o Zé Sérgio. Memórias, sempre elas. E trilha do Morricone.

Não importam os analistas econômicos dizerem todos os sacrossantos dos dias que para a economia ir bem temos que ter austeridade, equilíbrio fiscal e aquele monte de discursê sobre competitividade, eficiência, gestão privada e lufts. Para mim, o fato, o dado concreto, o calor do asfalto, Zé Sérgio foi o maior craque que vi jogar. As vezes eu acho que estes comentaristas esportivos, a tal crônica especializada, repete uma série de numerozinhos e obviedades para encaixar realidades em suas teses, para dizer que um  time ou um jogador são melhores que outros. Mas é o bolsa família que tira as pessoas da miséria, que inclui famílias e famílias no tal mercado, é o SUS que possibilita algum tipo de atendimento quando a saúde falha. Planilha boa é a do excel, quando resolve teu dilema ou quando preenche as classificações dos grupos automaticamente depois dos palpites no bolão.

Cristiano Ronaldo é um Zé Sérgio, desconfio. Mas é, em sua intensidade e objetividade, uma aula de economia. Dizem das vaidades de Cristiano, de sua soberba de quem sempre anda de queixo erguido, de seus gols de penal e até dos cremas que passa na face. Mas ali, no petardo, no cotidiano, nos diversos e rotineiros mísseis que viram golos, sempre o vejo abraçando os camaradas de time e sorrindo para algum guri que vive no Tejo...

Uma última notinha, antes d´ir: Hoje, no meu Estrelão, provavelmente o Zé estaria a tabelar com o Cavani, procurando algum jeito de retribuir o Dario Pereyra, o Pablo Forlan, o Lugano e o magnífico Pedro Virgílio Rocha, um Sérgio Leone das quatro linhas. 

16 de junho, 2018. França e Austrália. Argentina e Islândia. Peru e Dinamarca. Nigéria e Croácia.


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Spaciba!



É inevitável lembrar da União Soviética quando a gente está a viver uma copa do mundo na Rússia. Para os do século vinte, a URSS é mais do que memória e história. Os soviéticos foram durante quase todo o século que passou a metade da laranja, muitas vezes a mais gostosa e por vezes a mais sinistra.

Uma das digressões que sempre faço como os meus botões é imaginar um título mundial dos soviéticos numa copa do mundo e se, com o caneco, Gorba teria feito o estrago que fez. A URSS teve o Pelé e o Zico dos goleiros: Yashin, a aranha negra, e Dasaev. Com bons times, em 66, podia ter tido mais sorte. Em 82 - que saudade do naranjito - sucumbiu num grupo de segunda fase que tinha a Polônia dos geniais Boniek, Lato e Deyna. De fato, portanto, os soviéticos nunca tiveram a grande chance do caneco, nem a Jules nem a atual. Mas será que? 

No mundo ingênuo da Guerra Fria, numa luta de caubóis em escala lunar, as nossas percepções de mundo eram quase sempre referenciadas na disputa entre o mundo livre americanos e os tiranos comunistas soviéticos. Um verdadeiro Fla Flu.

Talvez, entre as propagandas possíveis, a vitória no futebol tivesse uma importância fundamental, porque os soviéticos ganhariam a disputa no jogo que o mundo todo adora. Os americanos tem esportes próprios, sabemos, como forma de manter uma hegemonia num campo onde não há disputa. São digressões estupidamente simplificadas, simplificantes, pueris. Mas são. Aliás, penso se o fim da Iuguslávia teria sido menos sangrento se os excelentes times iuguslavos tivessem ganho alguma das copas em que seus times eram realmente fortes, assim como o Marechal. E se a Tchecoslováquia seriam duas.

É óbvio solar que as cousas do mundo são muito mais complexas. O mundo está mais para as explicações da Mafalda de Quino do que para Chuck Noris. Somos teias. Mas o futebol como metáfora ajuda nos botecos. No campeonato de seleções dos meus estádios imaginários, do campo de futebol do botão ou dos tabuleiros de jogos como o Escrete, o Brasil podia sempre ganhar com gol do Zé Sérgio no final, driblando a defesa alemã como faca quente em manteiga fora da geladeira. Mas Cuba chegaria em algumas finais, os soviéticos também e Moçambique seria imbatível depois de ler Mia Couto.

Ontem, por instantes, imaginei um engenheiro de som doidivanas invadindo a torre do estádio e colocando a "Internacional" no lugar do hino russo. Um violino de Jorge Mautner ao fundo e o povo da Rede Globo em parafuso. E o Misha, o urso mais simpático de todos, a mascote das Olimpíadas de Moscou, dando o pontapé inicial. Acordei, caminhando pelo centro de São Paulo, cada vez mais parecido com cenário de filme de apocalipse zumbi: "Aluga-se". 

A Mafalda temia os soviéticos, os americanos, os chineses, o imperialismo ianque, o imperialismo soviético, as autoridades em geral, colocava esparadapos em seu globo de brinquedo. A Mafalda, argentina, certamente estava nas ruas de Buenos Aires comemorando a vitória das mulheres do mundo no dia 13, na votação na Câmara dos Deputados portenha, sobre a legalização do aborto. É inevitável, durante a copa, pensar num outro mundo possível, onde Irã e Marrocos despertem a mesma atenção que um Barcelona e Manchester. E que as ruas possam estar ocupadas com festas. E sorrisos.


15 de junho, 2018. Uruguay e Egito. Irã e Marrocos. Espanha e Portugal.



quarta-feira, 13 de junho de 2018

"Apiiiita o árbitro e rompe-se a inércia do universo"



Pensei muito se deveria ressuscitar este campinho. Por aqui, na última copa, a do Brasil, escrevi pequenos textos, crônicas e observações durante todos os dias do certame. Foi prazeroso e, de certa forma, me reconciliou com o mundial. Há tempos, e muitos, que acho que o futebol é um local de afetos, de reminiscências, de pequenas memórias. Pouco ou nada tem a ver com a seleção. Tem a ver com algo outro, aqui dentro, que faz parte de mim: o menino que ainda chora esperando que a bola do Oscar cruze a linha, que Zoff não alcance a pelota,um abraço do Seu Nilto e que aquele Sarriá seja meu Estrelão.

Minha primeira memória ligada a uma copa do mundo é distante, longinqua. Quintal de minha vó, o rádio da ave maria ligado nas transmissões esportivas e minha torcida pela Argentina, quando todos na casa diziam que devia ganhar a Holanda, que a coisa andava braba pelos lados de nossos vizinhos. Evidente, o menino queria era ser o Kempes e pouca pelota deu para os conselhos alheios, dos mais velhos. Engraçado, que tempos depois eu seria um apaixonado por laranjas mecânicas: Para mim, o gol de Berkcamp contra os argentinos é a prova mais do que suficiente para comprovar a existência de um tempo paralelo, feito só de belezas. 

Mas é em 82, século passado, na única copa que realmente existiu, que algumas cousas me chamam pelo nome, me abraçam, me encantam, me fazem chorar. A eliminação naquele jogo contra a Itália, mas mais. Lembro de um radinho de pilha, cor vermelha, que ganhei dos meus pais para ouvir os jogos do São Paulo quando ia ao estádio - o rádio era o melhor tradutor dos fatos. E de levar o rádio escondido na mochila escolar de quarta séria do primário para poder ouvir Espanha e Honduras numa aula de matemática da Tia Meire. Da goleada da Hungria num perdido selecionado de El Salvador, dez tentos a um. E das minhas narrações imaginárias dos jogos imaginários. A Rádio Popular AM fez a melhor cobertura daquela copa. E Renato Pé Murcho, o oito do Tricolor e reserva do Sócrates, marcava o gol do caneco.

Escrevendo aqui pondero se tudo isso realmente aconteceu.... se não foi tudo resultado de minha imaginação, esta mesma que me ajuda agora. Sei que o radinho naquela aula de matemática, entre uma carta de amor nunca respondida da primeira paixão e o caderno de artes, provavelmente só foi escutado baixinho e durante a aula porque a professora tolerou - o menino tirava boas notas e gostava muito de futebol - e não porque tenha sido uma imensa transgressão infantil. Sei também que depois de 82 nunca mais tive uma seleção como aquela, não só porque cresci e perdi interesse, mas, essencialmente, porque minha relação com o futebol passa pelo São Paulo, pelo time que torço e que sem jogadores do meu time, perco tesão. Sou daqueles que acha impossível explicar porque o Zetti não foi titular em 94 e que ainda comemora o gol de penal, de Raí. Nunca entendi Mazinho, nem Taffarel. 

A copa é este local, de afetos. Os jogos mais inusitados são sempre poéticos e trágicos, como um Dinamarca e Uruguay, como um Colômbia e Camarões, como um frenético França e Alemanha decidido nas penalidades, depois de viradas heróicas e fantásticas. O gol da Espanha contra a Austrália... que golaço. Mas são nas minhas narrações. Reconciliar-se com a copa é conversar comigo. Me faz bem.

Outro dia lembrei que, na última EuroCopa, procurava ouvir os jogos, no escritório, em estações de rádio dos países que estavam jogando. Ouvi empolgado a alegria de galeses pela BBC e noutra peleja, não entendi nada, mas entendi tudo, uma narração croata na vitória destes contra a Espanha. Quem nunca ouviu um golo de Cristiano narrado pelas rádios portuguesas nunca comeu pastel de belém. 

No fundo, o surrado radinho vermelho, sempre ligado nas transmissões da Rádio Popular... AM. 

Voltei.

14 de junho, 2018. Rússia e Arábia Saudita.