domingo, 26 de janeiro de 2014

"O problema é muito olho gordo no menino..."



O fato é: Cristiano Ronaldo está contundido. Grave a lesão. Sabe-se lá se jogará a copa. Um desatre de proporções bíblicas. Porque alguns gostam, outros não, mas é absolutamente inegável o talento do gajo. Até para torcer contra, espesinhar, fazer, fazer mandinga. O inexorável é que o portuga tinha que jogar, teria que jogar. Uma copa sem craque é como aquela pratada de macarrão a bolonhesa sem um cadinho de queijo. Ou cerveja sem álcool. Vou mais longe: dor de cotovelo, sem Lupicínio.


Estávamos todos cabisbaixos. Numa tristeza profunda. Afinal, Salvador não é uma cidade para desamores. Lá só nos cabe viver e isso não é pouco. Alemanha e Portugal era o jogo mais esperado daquela primeira rodada.


A Alemanha, pelo favoritismo, pelo futebol plástico, talvez até mais sulamericano que os times de cá. Muito embora saibamos que a Alemanha não ganhará a copa, algo que todo o monumento do Pelourinho sabe. O dia que a Alemanha ganhar uma copa no continente americano, fecharemos o bar. Não sobrará mais nenhuma verdade absoluta, nem Eva, nem Adão, nem manteiga. Será o triunfo da margarina.


E Portugal, se favorita não é, tem o melhor jogador do mundo. O cara que tem a média de um gol por jogo, assombrosa. Sim, tem lá seus isso e aquilo, e cabelo, e luva, e comercial, e shampoo, e cínico, e... mas deixemos esses “e”s de lado. O cara é estupendo. Sem contar que Portugal, nossa madrasta, sempre conta com alguma simpatia brasileira... Sabe-se lá.


E foi quando eu, o Deco, o Zécons e o Ogro tivemos a grande ideia. Só o Chico foi contra, que ele não gosta mesmo do Cristiano Ronaldo, de jeito algum. Naquela beberagam camarada perto do farol, num calor de assar, enquanto confabulávamos sobre a copa, a vida, o cinema e sobre a última pesquisa DataFolha que indicava a vitória de Chico Alencar já no primeiro turno, Dequinho, sempre ele, solta a cousa: “Pai Vavá.” Todos entenderam, na hora.


Quem assistiu ao filme “Boleiros” do Girgetti sabe do que estamos falando. A mística toda foi muito lógica: levaríamos o CR7 para uma benzedeira no caminho para Porto Seguro, indicação do Pedrão. O plano era simples: Usaríamos nossas credenciais de imprensa, entraríamos na concentração lusitana. Zecão ficaria no carro, um Samara branco soviético todo mexido. Enquanto o Chico ficava na espreita na vigilância – ele só aceitou esta singela participação no episódio porque temeu que os amigos fossem pegos pela polícia e enquadrados em alguma lei de segurança nacional que resultaria num forró danado, gente presa e aquela parafina toda -, o Ogro fingiria uma entrevista com o craque. Durante a entrevista, soltaria a pérola: “Rapaz... não queria incomodar não. Mas conheço uma senhoura que tem uma babosa milagreira para cabelo... Nunca mais vais ter que se preocupar com o ph.” E coçaria o cavanhaque, que era a senha. Deco, com uma peruca lindíssima, entraria em cena. Eu, que fingia ser o cara das filmagens, soltaria a pérola: “Ronaldo, olha o cabelo daquele cara. É a babosa.”


Nem preciso contar. Cristiano Ronaldo deu um jeito de fugir das tramelas da concentração e nos encontrou no Samara. Rumamos para a benzedeira. Não preciso explicar mais nada.


Alemanha 2x0 Portugal. Cristiano Ronaldo não jogou. Um bafafá tremendo na imprensa internacional, mas desconfiavam que ele estava tomando todas e mais algumas num boteco perdido em Caraíva, defronte à “Fonte dos Mentirosos”. Joelho curado. Cabelo impecável. E no coletivo na praia fez trinta e dois gols, em quarenta e sete minutos de pelada.


E foi o Chico, cético, quem soltou a frase: “Portugal tem muito mais chance agora. O cara se benzeu de verdade....”.


Alemanha 2 x 0 Portugal (Ozil e Pepe - contra).
Fonte Nova, 16/06/2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

"Queiram ou não queiram os juízes"


Dizem que uma copa do mundo só existe mesmo quando a gente é guri. Bom... quem disse isso fui eu mesmo...

O fato é que a Arena Pernambuco, nome patético que andam a dar a estádios de futebol, é bonita. E só. Parece um teatro de shopping, uma anedota de cinto, uma coxinha de frango só de massa. Mas que é bonita, é. Nada, obviamente, da beleza da Ilha do Retiro, dos Aflitos ou do Arruda. Mas a gente se acostumou a destruir picadeiros para construir varandas gourmet. Bem... o mundo é isso mesmo.

Mas esqueceram, mesmo, mesmo, mesmo, de avisar para Honda e Drogba que este mundo de crianças não existe nos mercados globais. Esqueceram de esquecer. Porque ambos meninos destroçaram castelos, avançaram continentes e foram até Marte. Tudo num jogo só. O Santa Cruz de Fumanchu, Pio e do Cabelo de Fogo, Nunes, totalmente vingado. O Sport campeão brasileiro no campo e na raça de 1987. E o Náutico nunca mais terá que rever as tragédias dos Aflitos, pois foi um gol clássico de Bizu. Isto tudo num mesmo jogo. Sem contar o Central de Caruaru, totalmente alforriado dos regulamentos capengas. Até o Íbis, senhoures e senhouras, apareceu em campo.

Drogba é daqueles pedaços de mundo que não cabem nele mesmo. Alguns dizem arrogância, mas depois do primeiro gol de ontem nada mais há que se escrever. Nada, repito. Foi Milla, sem tirar nem por. Foi a Zâmbia. Foi Gana. Foi Nigéria. Foi tudo numa jogada só. Os japoneses só aplaudiram. E nisso, neste ato, os japoneses deram um tapa na cara do mundo, com luvas de pelica. Foram os aplausos do goleiro inapelavelmente derrotado pela pintura de Drogba e do zagueiro, que nunca mais terá a mesma coluna depois do drible africano, que empataram a peleja. Sim, um gesto nobre desses despenca qualquer sentimento de superioridade, desperta a simpatia mortal, desfaz os traços de guerra.

E só isso explica a partida deste Honda. O japonês com nome de motoca foi muito mais que o próprio motorzinho asiático. Foi dele a obra que consagrou de fato o empate, num giro mortal que deixou a todos um gosto de pé na areia da Boa Viagem para uma pelada no fim de tarde.

Apesar das arenas, frígidas, impotentes. Os meninos da Costa do Marfim, naquele que é o uniforme mais bonito da copa, aplaudiram os meninos japoneses no fim da partida. E uma faixa enorme era desfraldada na arquibancada: “FIFA GO HOME: HELL”.

Até que a Arena Pernambuco ficou bonita ao fim da partida. Passada meia noite, lua linda no céu. E cantavam frevos e sombrinhas coloridas surgiram por todos os cantos: “E se aqui estamos cantando esta canção... viemos defender a nossa tradição.... e dizer bem alto que a injustiça dói... nós somos madeira de lei que cupim não rói!”.

Costa do Marfim 1 x 1 Japão, na Arena Pernambuco - 14.06.2014

sábado, 4 de janeiro de 2014

O sorriso de uma moça



Eram quinze minutos do primeiro tempo e já tínhamos farta matéria para os botecos. Para conversas daqui até Paris. Muito embora sabíamos todos que o destino da partida seria a maçã de Newton cair logo logo ao invés de ficar levitando como a conjurar demônios e a divertir por meio de metáforas: o gol de Davi contra Golias, logo aos cinco minutos. Mas depois do gol, o encanto e a maravilha: três ataques e três defesas espetaculares, milagrosas, meticulosas, espalhafatosas, sensacionais, redundantes até.


Lembro da única copa que houve de fato, a de 1982. Levara um radinho de pilha para a escola e auscutava, silenciosamente, pelejas durante as aulas. Uma delas, um soberbo Espanha 1 x 1 Honduras. Arzú, o goleiro hondurenho, um deus maia, fechou a cidadela centro americana e vingou a colonização nefasta, defendendo tudo e pensamentos. E só houve empate naquele dia porque alguém marcou uma penalidade ao fim do jogo, um desses imperialistas nojentos vestidos de preto.


Seria novamente Arzú? O fato é que aos vinte minutos ainda da primeira etapa a sucessão de milagres fazia a plebe acreditar piamente que um único gladiador poderia derrotar um império todo. As defesas de Zetti contra a Católica, todas, uma a uma. Rodolfo Rodrigues contra o América, uma obra de arte. Marcos e aquela partida inenarrável contra o Corínthians. E aos vinte e sete, duas penalidades. Duas. Dida, contra Raí. Era fato: o goleiro.


Mas a pressão era tanta e tamanha, armadas, fragatas, navios, submarinos, caças rasantes e seus mísseis. Acreditar que não haveria empate, virada, lógica, crua e nua, era acreditar em besouros que falam ou em vingança divina. Acreditar no impossível.
Mas era assombroso. E até de Rogério, sim, do mitológico arqueiro, contra o Liverpool – Gerard, no canto alto, espaaaaaaaalma o goleiro.


No intervalo, frisson. Até os pedregulhos, se filosofassem, teriam assunto de monte. O burburinho era incessante. Tive, por momentos, a certeza de que algo de sublime estava a acontecer. O homem pisando na Lua. A invenção da cerveja. O ar condicionado. E eu estava lá. Logo no começo do segundo tempo, cruzamento na área, o bola de ouro da Fifa e que tais, cheio de dólares, francos, suiças, flashes, cantigas, matérias de relógios, namoradas e de confusões nos periódicos da metrópole, sobe alto e testa firme. Pelé e.... Banks: queixo caído. E poderia descrever, logo depois, Oscar e Zoff, na mais terrível defesa de todos os mundos. Era incontroverso: assistíamos a maior exibição de um ser humano a defender balisas em todos os tempos, memoriais ou não, de Zamora à Barbosa, de Gilmar à Buffon, de Taffarel, de Valdir Peres, de Cassilas à Nkono. Arzú.


As faces de desolação, de derrota, de submissão dos jogadores adversários. Os rostos maravilhados. O treinador arrancando os cabelos. A elétrica certeza do estádio todo: Estávamos presenciando a história, Pearl Habor, a batalha da Normandia, o Riachuelo, Waterloo, Stalingrado, Bill Gates, Santos Dumont.


Mas um senhor ao meu lado assistia a tudo estranhamente desolado... e me diz, com a tristeza dos tesouros roubados por Cortez e Pizarro, em tom fúnebre: “Não posso mais suportar...”.


A história era assim: O arqueiro só fechava o gol quando estava triste. Muito triste, então, era um Yashin. Desde pequeno, descalço, o guri só conseguia fechar o gol depois de tragédias. Perdeu o pai, assassinado numa briga de gangues, catou até raio num joguinho de quarta série. A mãe, enferma, campeão do ginásio numa partida colossal contra um time repleto de repetentes, gigantes e malvados. O rol de infortúnios, as defesas miraculosas. Mas... era estar feliz e pronto: pinimbas em série. Frangos e uma coleção inteira de pássaros e vexames em finais de campeonato, em jogos no exterior, em eliminatórias. Só estava ali porque o goleiro titular estava suspenso e muitos não o queriam. E o senhor, firme, lágrimas: “tenho medo de saber o que será que está passando por aquela alma neste instante... deve ser amor.”


Suspenso no ar. Faltava me fôlego. Não sabia se podia acreditar naquela história, por demais fantástica, um conto de Cortazar, uma imagem da Amazônia de Pantaleão, Bolivar e Martí tomando um rum numa praia pirata. Mas o fato é que aos quarenta e oito minutos, o estádio em êxtase e o imperialista de amarelo, sempre eles, a lei, a marcar penalidade indiscutível. Cal. Silêncio.


No telão, um rosto de mulher. Sinto a tragédia, quando vejo o senhor ao meu lado, um Gabo, com seus bigodes trêmulos, chorar: “é ela...”.

A multidão e eu, todos os olhos do mundo, no arqueiro imenso. Que sorri ao rosto da mulher, riso farto, contente, contundente, de senhor do mundo, Quincas Berro D'Água.

Correu...... bateu.........”.


Para fora. Para a imensidão.


Honduras 1 x 0 França – (gol deBonieck Garcia)
Em Porto Alegre, Beira Rio, 15.06.2014