segunda-feira, 14 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Finito


O fato é que no rocambole todo, na receita do pão de ló, o jogo foi bom, muito bom. Tons dramáticos, um time que resolveu ocupar a Baviera com bem postados e um Sabella cuspindo fogo na lama da vergonha dos sete a um, mostrando aos anfitriões que um time pode, sim, ser time e não um catado no milharal. Um outro time que tem a posse da bola como recheio, num avance uma casa o tempo todo, o tempo todo. Como estratégias, jogo, brinquedo, uma beleza. Uma boa final para uma copa, que ao fim de tudo, no campo, foi diferentemente boa. 

Uma arbitragem no limite entre o vacilante e o equívoco notável, mas acertando sempre, conferindo aquele ar de tango para o samba todo. Pontapés graciosos, disputas de bola aos tapas e corações. Talento. Toque e recebe. E Messi, sempre aquele esperança de resolução. E Neuer, um goleiro que impressiona pelo fato de transpirar uma certa intransponibilidade atemporal. E toque e recebe. Tocar e receber, tocar e receber, tocar e receber. Avance uma casa. 

O mundo, redondo como ela, precisava de uma copa menos tíbia. As seleções estavam com muito medo, muito medo, muito medo. Era um deus nos acuda, saravá, põe gente pra marcar. O medo nauseabundeava as seleções, que iam murchas. Os jogos chateavam. Um ou outro inspirava alguma admiração, mas só. Mas aqui em 2014, por uma série de fatores terrenos e astrais, humanos e espirituais, os times resolveram que o medo de amar não faz ninguém feliz. Há a exceção do Brasil, infelizmente, que foi incapaz de entender sinais e nossas próprias canções - ficamos nas marchas militares e nas preces para um deus só, que, ocupado com outras tarefas, obviamente nos negou auxílio. O Brasil foi premiado pela sua teimosia e auto suficiência - arrogância e prepotência em futebolês clássico -, com um olé nas fuças, nas ventas todas. 

E na finalíssima tivemos todo o enredo. Apesar do jogo estudado, a Alemanha parecia querer o gol, tinha apetite e não medo. E a Argentina, gato na espreita, só na espera. E foi na manha. E quase que fizeram o gol... E aí a bola é alçada e nina no peito do menino alemão, preparando-se para o desfecho fatal, pintura. Gol. Campeões. Mais uma vez. Com toda a justiça, esta improvável.

Os mundos estão a comentar as injustiças do prêmio de melhor jogador para Messi e de Oscar, juro pelos sacrossantos todos que Oscar foi escolhido como um dos melhores do mundial, enquanto em alguma dimensão paralela, uma que é redonda é não galhofa, redonda como ela, o menino que nasceu ontem, ao término do jogo, foi batizado simplesmente de "Bastião". Uma corruptela daquele nome repleto de esses e dablius e cês, camisa sete - sim, camisa sete, sete para não esquecermos, não podemos - da seleção alemã.

Valeu, Bastião. Inté a próxima.








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Nota rodapé: Obrigadão, para quem acompanhou as Amaraladas na Copa. Foi muito legal. Foram trinta e três textos. Há tempos não escrevia tanto, nem nas milongas em formas de petição. Quem sabe, voltamos em 2018. Ou nalguma edição extraordinária da equipe de esportes da Rádio Popular....



E sobre a tal Rádio Popular, o texto é este: http://copanofiodobigode.blogspot.com.br/2014/06/amaraladas-na-copa-14-sete.html)

sábado, 12 de julho de 2014

Amaralas na Copa 14 - A bela ruiva

Brasília, a capital federal, é uma cidade de muitos segredos. Alguns, pouco importam, mas nos fustigam a vida, dia a dia, numa trapaça repetitiva e nauseante. Mas outros segredos...

Há um pequeno restaurante no sudoeste com uma cozinha muito boa. Os almoços são concorridos, esquema buffet e ó, uma beleza. Mas pouquíssima gente sabe do segredo que aquele lugar alberga... Um segredo capaz de mudar mundo, rumo, prosa, cantiga, amor, bicuda e tudo. Um segredo guardado originalmente a onze chaves. Mas que hoje, só pelo que me recordo, já tem umas quinze, desesseis.

Era dois mil e cinco e qualquer cousa. Na verdade, se for ser fiel mesmo aos fatos todos, o que sempre é impossível, era antes disso, era noventa e fins. Era copa. Era um bolão, desses que se aposta em resultado de jogos, entre amigos. Nada ilegal, só razão para saber quem vai pagar a rodada. Mas o bolão gerava conversas, cervejas, paria correspondências eletrônicas com tirações de sarro, narrativas, samba, rock e muita marmelada. Virou blogue... Chamaram na época de "Bolonistas", um trocadário com bolõesnistas e botão, futebol de botão.

O fato é que eram amigos, amigos de amigos, que ficaram amigos. Aquele papo lousa de moleque, sacanagem concurso de piroca, futebol. Pataquadas, opiniões sobre tudo e lá se vão razões e razões para mais um chope. A copa de 2006 alguém teve ideia: "Vamos escrever a nossa Copa". E foi, e foi, e foi. Todos os jogos foram relatados, sumulados, cronicados, antes deles mesmos. O resultado foram delícias, cremes, pão de ló, torresmo, linguiça calabresa e mais, cerveja, chope e até umas branquinhas. Toda a copa. E ouso dizer, com o pecado da imodéstia, que aquela copa foi deveras melhor, mas um deveras tipo presidente - minto, um deveras tipo imperador Palpatine, super máximo deveras - que a copa original. A final do certame foi um Brasil e Portugal, mágico. O time do Parreira, sabemos, foi um fiasco bíblico, com toques do Sodoma e Gomorra.

Pois bem... o segredo é que naquele restaurante existe uma espécime de santuário, que se abre apenas poucas vezes, pouquíssimas, em verdade, em que os Bolonistas, mais uns outros cabras de um outro blogue, se reúnem para discutir como dominar o mundo. O problema é que na primeira parte da reunião o tema futebol acaba sempre por adiar a conquista global, o que infelizmente mantém a ONU como uma mediadora ineficaz de conflitos, e potências globais desmoralizadas. Mas sabemos todos que a canjica não vai ser doce no Brasileirão.... Um futebol de maracutaias e de qualidade técnica assaz perturbadora, com viés de baixa.

Bom escrevi essas linhas todas para dar um abraço virtual na confraria. Com gosto de saudade, não só da copa que finda. E com vontade de espumar a guela em breve.

Meninos, amo vocês tudo.




Amaraladas na Copa 14 - Trinta e Um


Leônidas da Silva é o meu Pelé. Sim, não tenho nenhuma dúvida em afirmar que o Diamante foi o melhor, mais assombroso, mais gigante, mais espetacular, mais Pelé jogador de futebol de todos os tempos. Alguns vão dizer que ele nunca ganhou copa e aquele mesa toda, no que replico que antes do teipe Leônidas fez gol descalço, em Copa. Em Copa! A de 38, um dos melhores escretes nacionais de todos os tempos, que além de Leônidas tinha Domingos da Guia, outra legenda.

Leônidas jogou no São Paulo. Sua estreia foi durante anos e anos o maior público de futebol de uma partida de futebol no planeta onde se joga futebol. É muito emblemático este episódio. Chamaram o craque de bonde, porque chegava ao Mais Querido já velho e cousas do gênero dos beócios. Leônidas arrebentou com o jogo. E depois cansou de ganhar canecos. Foi cronista esportivo, da Pan, na década de sessenta. Tinha fama de ranzinza, mas entupiu a estante com prêmios Roquete Pinto, o Oscar, Emmy, Juca Pato, do rádio nacional em décadas pretéritas.

"Mas você nunca viu o Leônidas jogar!". Este argumento é de um estupor de ausência espiritual, material, sobrenatural. Os fatos divinos, senhoures, senhouras, prescindem de provas. Não é dogmatismo, religião, misticismo, política, groselha ou macarrão com queijo, é a bicicleta, o gol impossível descalço, é a copa de 38, o título magistral de 43, o título épico de 45, o magistral bicampeonato de 46, o caneco espetacular de 48 e o fantástico bicampeonato de 49. E voltando a 38, foi eleito pela crônica mundial, numa copa na Zoropa e tudo, o melhor daquela Copa. O melhor. 

Um dos lugares mais legais da cidade de São Paulo é o Museu do Futebol, que fica ali no Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu. Lá temos um memorial de histórias do nosso futebol, das copas, dos jogadores, dos clubes. Leônidas está lá. Na galeria dos imortais. E logo na entrada há umas cabinas com locuções de rádio de diversos gols. Lá é meu canto preferido do museu, porque tem uma locução do Geraldo José de Almeida de um gol de Leônidas, de "bicicleta", o "bonde num gol gol de bicicleta". É de uma lindeza aquilo... 

Hoje fui ao Museu. Levei os meninos. Passeamos. O Pequeno me perguntou de Zizinho, o craque que Pelé idolatrava quando menino, o Pelé do Pelé. E todo feliz mostrei pra ele que Mestre Ziza jogou na copa de 50, que perdemos, e fez parte do time maravilhoso do São Paulo de 1957. Aquele do gol do Maurinho. Mostrei para o grande o genial Didi da Guiomar, contei que foi Didi o Pelé da Copa de 58, embora o menino rei tenha feito os gols mais espetaculares daquele certame. Os dois se encantaram por Mané, nosso mais genial Pelé. Com um pai babão que mostrou que o time deles teve seu Mané, canhoto: Canhoteiro. Tem gol de Rogério no museu. Não foi a primeira vez que fomos. Os meninos sabiam que na sala escura tinha o silêncio do Maracanã, logo depois do gol de Friaça. Sabiam que o pai mostraria Leônidas. E que falaria do lançamento de Gérson como parábola de uma viagem à Lua, Gérson, o Pelé da copa de setenta.

O que eles não sabiam, sequer desconfiavam, foi que desta vez foi muito triste, muito triste, sair daquele museu... Por mim ficava lá, virava Canal 100.
A dor mais dolorida na derrota de sete não foram os gols, os erros, o vexame no campo, que os números dizem ser a maior piaba na história de todas as copas. A maior dor, a que machuca mais, e que infelizmente tem pouco de novidade e pouco a ver com o jogo dos sete foram as declarações de Parreira, de Luis Felipe, dos dirigentes, as explicações da pane, do acidente, a maldita conversa "vazada" entre o treinador e o zagueiro capitão que não jogou contando uma verdade paralela para amainar o sono bovino, a entrevista de Neimar... 

Porque para essa gente não há Leônidas nem Domingos, não há Zizinho nem Didi, não há Mané tampouco Canhoteiro. O lançamento do Gérson é só uma imagem velha de videoteipe... Não há nem Pelé.

Quando a gente diz e luta e afirma que é preciso abrir os arquivos da ditadura militar, para recontar, conhecer e compreender nossa história, que é preciso, sim, julgar torturadores, agentes de estado e financiadores de um sistema macabro que matou e desapareceu com homens e mulheres, estamos querendo compreender quem somos, nossa história, nossa sina, nossos caminhos a percorrer e os a evitar. Negar ou esconder a história, condenar ao esquecimento, nos diminui como estado, como país, como civilização.

Não é a toa que Marin é o presidente da CBF. Herzog também devia gostar de futebol.

Hoje foi triste. E nem tinha sido o jogo com a Holanda...



sexta-feira, 11 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Trintézimo


São pequenos rituais que por muitas e inúmeras vezes fazem a vida da gente ter uma dimensão gigante, maior que tudo. Moramos, quem sabe, na contradição.

Tomo café no mesmo local. Na verdade em três locais. Vou mudando conforme a vontade da broa ou do pão de queijo, se chuva ou se sol, se chegada, almoço ou partida. Tomo mais de um expresso por dia. Esta rotina faz com que em dias funestos, quando aquele prazo horroroso, aquela notícia ruim que terei que dar para um cliente, aquela falta de vontade de ver e ler processos, eu consiga respirar, encontrar calma, apreço pelas cousas. É este apreço, desconfio, que mantém outras rotinas possíveis.

Gosto de fazer minha loteria, minha fézinha, todos os dias. E se não faço fico mal, passado, injuriado. É como não tomar café da manhã ou como deixar de dormir do mesmo lado da cama - só faz bem se foi esbórnia. Quase sempre na mesma lotérica, perto do escritório. Os mesmos jogos, mesmos números, mesmo bicho. Na contravenção deixei de apostar, muito pela preguiça de aprender o milhar e muito mais por uma pseudo culpa militante, quase cristã, das consequências do negócio ilícito. Mas ainda hoje sei o nome da apontadora, a mesma, há anos, no mesmo local, na frente escancarada da galeria. Na lotérica sabem o meu nome, fazem fiado, apostam por mim nos bolões que sempre pago, conhecem o Grande e o Pequeno, sabem que fui casado, que me divorciei, que casei ajuntado de novo, que time torço, quando é segunda feira maneiram nas conversas e quando é sexta me desejam "juízo", algo que recomendo todos os santos dias para elas. São mulheres, exceto o filho do dono, que trabalham na lotérica.

Tem um louquinho que sempre converso. Um homem elegante, negro, forte, com aqueles cabelos lindos que só os negros tem. Veste trapos, mas sempre bagunçadamente em ordem e com uma estranha combinação, sempre melhores e mais bonitas que as minhas gravatas de protozoário. Mora em algum lugar do centro, dizem que num estacionamento, dizem que ficou assim por causa de uma desilusão amorosa e sei que o filho dele, um rapaz também bonito, as vezes pergunta por ele e que respeita a opção do pai - mas isso ouvi dizer, não sei. Gosto dele, do louquinho. Também não sei se ele sabe quem eu sou, se lembra de mim, se me reconhece. Mas me chama toda vez de doutor, eu o corrijo, digo que doutor é médico, ele sorri, se diz de escorpião e joga na quina, sempre o mesmo volante amassado - como os meus. É amável, nunca o vi numa descortesia ou numa brabeza, apesar das gentes que desviam dele, que o olham torto, medo ou repulsa. Carrega milhares de tranqueiras em sacos de lixo, com papéis, formulários, embalagens e lembranças de um tempo distante, talvez. As vezes pago um café, quando o encontro não na fila da lotérica, mas no balcão do cafezinho, mas ele sempre está com pressa e sorrindo. Veste sempre calças coloridas, pelos retalhos diversos: "Ele mesmo que costura", já ouvi dizerem.

Ele sabe que os bancos não recebem mais contas de luz de quem não é correntista e diz isso com aflição, a única que percebo em sua voz: "aumenta a fila aqui na lotérica." Nunca conversamos de futebol. Mas hoje, depois do habitual "deus te abençoe" e "boa sorte no joguinho" - no que retribuo, "no seu também" - ele mandou de bate pronto: "perder de sete é muito, muito ruim". Sorrimos.

Já tinha tomado meu café e caminhando de volta ao escritório, entretanto, matutei sozinho e falei diverso: "Não sei, depende se virar rotina...".



quinta-feira, 10 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XXIX


Odeio esse negócio de clubismo. Acho um saco. Já disse isso aqui e como sou um cara obsessivamente repetitivo, repito.

Acho o fim da picada esse negócio de analisar seleção pensando no clube. Se tem alguém do time, vermute, limão e gelo no copo. Não tem, aquele azedume azedo e cara feia e mau humor. Que coisa...

Mas tem um "clubismo" piorado quando a gente fala de copa e de seleção. É aquele que define quem é quem na copa, nas infindáveis listas dos melhores e eteceteras e tals. Porque aí, mesmo um time moribundo, porque é o nosso país e cousa e lousa, tem sempre um queridinho da seleção do torneio. Um prêmio de consolação para as mágoas. Acho isso o fim da goiabada, cascão e com muito queijo. E neste caso, sem beijo da mulata.

A derrota de sete tem lá suas virtudes, neste vesparéu todo. Ninguém vai colocar ninguém do time brasileiro na esquadra do mundial. Quando a gente perde o rebolado, melhor perder de vez as vergonhas todas, mas mantendo a classe.

Nossos zagueiros podiam estar na lista, alguns resistentes ainda dirão. No que respondo que um sacode de sete, cabal e cabalístico, não permite galhofas. "Mas e o Tiago?". Ora pro nóbis, Tiago tomou o amarelo mais bunda da história dos amarelos. "Mas o juiz foi rigoroso, ele não viu o goleirão Ospina." Bom, duendes existem e ele empurrar a menina pelota para o gol vazio, jogada parada, vale o amarelo só de pirraça. 

Feitas estas observações singulares e sempre isentas - um traço de personalidade feroz deste que vos escreve - escalo minha seleção do mundial de 2014. Antes da final, que quem escala depois da final é um pouquinho como comentarista de arbitragem depois do décimo vetê tira teima leima leiba.

Anotem os clássicos.

Na defesa: Navas, da Costa Rica no gol. O alemão e capitão multi funcional Lahn na lateral direita. O zagueiro, também germânico, Hummels, de um lado. E o costa riquenho Gonzales na outra. Na lateral esquerda, um indiscutível Álvaro Pereira do Uruguay. Aliás, tivesse o Uruguay ido mais longe o lateral sin duda ninguna era candidatérrimo à bola de ouro.

Na linha média, onde o agrião deveria ser cultivado: Mascherano, da Argentina. Tony Kross, da Alemanha. Lionel Messi, de todos nós. E James Rodrigues, da Colômbia.

No ataque, onde o agrião é zona: Robben, da Holanda. E Muller, da Alemanha. Opa... goool da Alemanha.

O melhor do torneio? Putz... divido o prêmio em dois, que sou chegado numa confusão de conceitos: O jogador mais importante do torneio, Mascherano. Por razões óbvias. E o melhor jogador da copa, o Kross da Alemanha. O que ele fez na terça foi só a cereja.

É isso. E... Vou ao sal de fruta... deu uma azia leve aqui. De novo.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Vintoito


Resolvi que hoje era dia de vestir cinquenta. Sim, a camisa branca e azul da seleção de 50. A do Maracanazo. A camisa de Bauer. Bauer, para quem não sabe, fez parte da linha média mais soberba da história de todos os torneios de futebol de todos os tempos, sem exageros. A linha média era um poema assim: Rui, Bauer e Noronha. E estava naquele time de cinquenta, ao lado de Zizinho, um outro desses nossos deuses.

O Grande me perguntou, meio estupefacto, porque vestir uma camisa do Brasil logo hoje. "Porque hoje é necessário."
Quando o Grande chorou ontem, chorou chorado choroso lágrimão, depois do quarto tento, a única cousa que queria era encontrar palavras que servissem de abraço. Para além do abraço, do cafuné, de dar as mãos. Porque sei que frustrações assim serão inevitáveis. E apesar de reconhecer a dimensão mágica do futebol, também reconheço que decepções existem, perambulam, assombram. Dar tratos a bola, como diriam os antigos. Cuidar da gente e de nossos fantasmas.

A reação do Pequeno ao choro do irmão foi imediata. Se assustou, amuou, ficou no meu abraço. Ficamos assim. Nós três. E a Rerrê, que também precisou de acalanto. Quatro a zero era, de fato, demais.

Esbravejei com o time. E com Felipão. Me perguntei quantas e quantas vezes aquele time tinha treinado junto, com o agravante de ter trocado o zagueiro de lado, justo o zagueiro que era esteio do time. Era semifinal, poxa... Mas logo logo desisti de explicações. Pouco ia mudar a moviola e todos iriam buscar suas explicações. Mas a derrota já era inexorável, incontestável, acachapante. Fiquei então pensando neles. E agora?

A resposta veio rápida. Os dois foram bater bola no quintal junto ao primo mais novinho. Chutes nas paredes. Toques. Suores. Provavelmente ali tratavam do jogo, de encontrar um empate. E embora o assunto tenha sido o jogo, ontem e hoje, as mirabolantes discussões do porquê, as milhares de alternativas para outros desfechos, a bola chutada contra a parede foi a melhor das melhores respostas. Devia ter ido lá no segundo tempo, com eles e a Rê.

E hoje eu era o Bauer. O "Monstro do Maracanã", apelido dado por suas partidas memoráveis no mundial de cinquenta. Há tragédias, há vexames, há cousas horríveis. Mas tem a bola no quintal. E quem tem Bauer no time, mais o Zizinho, não precisa e não deve ficar a sofrer infinitos: lamber as crias, lamber feridas, tratar a bola, que rola, até o apito final.





 


Nota de rodapé: E recomendo vivamente o Sesc Pompéia, que tem uma exposição sobre músicas de futebol até o próximo domingo, data da final desta nossa bela copa. Tem até narrações de gols brasileiros de outras copas.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Vinte e Sete


É... o fato é qualquer bobagem que escrevamos - e já dissemos, pensamos e brotamos porque o jogo findou desde muito - será exagerada. Agora, agorinha ainda, que nada esfriou, haverá muita mágoa e ressentimento. Muita. Nestas horas, sei lá, o silêncio nos faz cafunés e é possível apaziguar, acalmar, serenar. Refletir.

Muito se falará da trombada. Haverá um apocalipse e não há racionalidade possível nesta hora. Simplesmente, não há. Há fragmentos. Pequenas construções que podem virar algo mais bonito. Mas hoje, hoje são só pecinhas daqueles brinquedos de montar, que quando a gente pisa neles soltos dói até fio de cabelo mais remoto.

Há certas obviedades: da escalação, da falta de treino, da obtusidade do treinador, da preparação inadequada. Há os erros no campo. Há o fracasso. Sabemos. Provavelmente escolhemos já nossos culpados, o treinador, o centro avante, o beque. É provável. E este canto, infelizmente, já conhecemos. Não termina nunca. E não é bonito.

Quando o São Paulo tomou de sete da Portuguesa, numa partida memorável de Leandro Amaral, morri. Os sete goles, um a um, como adagas feriam. O fim do domingo, daqueles martírios agonizantes, ganhava proporções de histeria. Não durmi. Não comi. E se comi, passei mal. A segunda feira, cruz em credo e tudo, ao aguentar as gozações, as pilhérias, os infortúnios. Era como a pior das ressacas: nunca mais quero futebol. Nunca mais. Este drama. No domingo seguinte estava lá, como se nada tivesse acontecido, xingando de novo o maldito zagueiro. Perdemos depois para o Corínthians, anos depois, de cinco, num Pacaembú em festa. Perder para a Portuguesa é uma cousa, perder para o Timão é outra. Bem pior. Mais dor. Mais morte. Mais drama. E naquele dia, para piorar o impossível, teve falha do Rogério, nosso capitão. Para o sãopaulino uma falha do Rogério, ainda mais porque ele tem dificuldades como todos nós mortais em admitir cagadas, tem o mesmo efeito que uma dor de dente na alma, na raiz do dente. É tanto sofrimento, tanta humilhação, que sentimos inveja dos avestruzes. É assim.

Sim, usei "morte". Uma morte figurada evidentemente. Porque no domingo seguinte, estávamos lá, ou no estádio, ou no rádio, ou na tv. Seleção, felizmente, é diferente. Nossa ligação com o clube é mais ao fígado e quem acha o contrário, desculpe, não sabe a dimensão que tem uma derrota de cinco, de seis, de sete. Vai ficar no tanto faz.

O problema da seleção é que ela ataca ou age num sentimento coletivo, um ser anômalo, uma estima. Num país tão novinho como o nosso a seleção é a que fez glórias, conquistou mundos, nos deu voz, altivez, história. A derrota de ontem - e já é ontem, notem - é um golpe duríssimo nesta história. Perdemos um pedaço de nós que nos orgulhamos, que nos molda, nos define. Nos? Nós, brasileiros. É necessário entender um pouco estas dimensões do futebol e reconhecer como temos sido negligentes com isso. Como temos deixado, impunemente, que canalhas administrem a seleção. Como pudemos, em tão pouco tempo, desmontar elos, pontes, carinhos. E não falo desta seleção, por favor. Vamos olhar no tempo. Vamos reconhecer este distanciamento cada vez mais enorme - uma relação circunstancial que aparece de quatro em quatro anos. Circunstancial e perversa, porque a seleção não é clube. A seleção é história, com agá de povo, povo com pê de cultura. E não há, miseravelmente, gloriosamente, o próximo domingo, aquele que nos ensina que no jogo de futebol se perde e se ganha, se ganha lindamente algumas vezes, se ganha mais ou menos em muitas, se ganha por acaso e se perde, se perde até de forma vexatória, horrível, se morre.

Morremos um pouco, um muito hoje. Seria talvez um próximo domingo que, ao invés de cuspir marimbondos em nossos jogadores, nosso treinador - e não que alguns não os mereçam, por favor, de novo - escolhêssemos esta gente inútil que administra o nosso futebol para dar nossas catarradas.

Acabo de ler que Marin, o seboso, não deixou que Cafu ficasse no vestiário dos jogadores brasileiros depois da tunda. A alegação é a de que não queria estranhos no vestiário. Marin já elegeu seu sucessor na CBF, a dona desta seleção, e ele se chama Marco Polo Del Nero. O domingo está aí, senhoures e senhouras, bem ali...



segunda-feira, 7 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XXVI


Talvez a beleza desta Alemanha e desta Holanda, nas semifinais do Mundial, esteja numa leveza estranhamente inquietante para nossos padrões chauvinistas no trato com o ludopédio.

Carregamos, brasileiros e argentinos, uma culpa infinita nas costas. E por isso inventamos as concentrações, com suas regras, seus pactos, suas futricas. Carregamos a responsabilidade de sermos um time, mas uma nação. Convenhamos, esse caldo desandar é mais fácil que creme de leite passar do ponto na hora de esquentar o estrogonofe. Basta escapulir atenção e pronto.
Deixamos fazer crer e acreditar que uma vitória no futebol - e, em especial, num mundial - é uma efeméride ainda maior que nossas próprias civilizações. O futebol redimirá nossos pecados. 

Já alemães e holandeses desfilam suas alegrias pelas praias da Bahia e do Rio de Janeiro. Tiram fotos. Cantam hinos de clubes brasileiros. Dançam. Trazem crianças para o campo de jogo. Se divertem. Sorriem. Estripulias. Cantam. Há uma alegria ali, que provavelmente um dia foi nossa, pela disputa em si, como num jogo de traves improvisadas. Sim, devem estar pressionados e o futebol, essencialmente na Alemanha, é, sim, uma questão de estado. Mas o futebol é mais um elemento no caldo. Um tempero. Para nós, não. 

Por mais que Gaal seja arrogante, prepotente, há uma diferença com as bigodadas de Scolari. Felipão trata a questão como um problema de estado, os traidores, os desgraçados, os do contra. Gaal é só chato, mas trata do futebol, espinafra a fifa, coloca o pingo no i, briga com os jornalistas, mas não temos a pátria em questão. Há um limite. Um limite interessante se conseguirmos observar de longe. As diatribes do treinador holandês dentro do campo do jogo tem um tipo de cálculo em que é o jogo que importa, tabuleiro. Nossas peripécias são outras: não nos esqueçamos, nunca, da bola arremessada pelo nosso banco de suplentes em direção ao campo do jogo, para atrapalhar uma jogada, para ter duas bolas em campo. Não podemos perder, em hipótese alguma.

A Alemanha, sisuda, sorri. O Brasil, que dizem alegre, sofre um calvário digno de um dramalhão, intenso, mas perverso. Sim, os hermanos estão no nosso barco também. Talvez esta intensidade seja um segredo e nos faça produzir outros tipos de combinações orgânicas estranhas aos demais praticantes do desporto que redundem em paixão no campo, aquela dedicação que trará um gol improvável, a superação, a vaga nas finais. Mas deveríamos aprender com os terceiro e quarto colocados do Mundial e buscar esta leveza. Com paixão e leveza poderíamos flutuar, voar e nunca mais perder um mundial. O problema é saber quem terá esta receita antes, se brasileiros ou argentinos... E, porque não, os uruguaios.

Não cogito a hipótese de ser outra final que não a de Brasil e Argentina. Há um enredo desenhado que exige sofrimentos, agonias, dores. A única pulga que me azucrina é que Alemanha e Holanda estão em campo com doces lascividades, tão belamente inspiradoras. 

O perigo é este feitiço: o lúbrico sempre e sempre pode produzir encantamentos...



domingo, 6 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Vinte Mais Cinco



Talvez a grande função mítica do domingo seja a de discutir o futebol. Uma imensa mesa redonda. Sim, é verdade que escolhem os domingos para festas pagãs, como dia disso, dia daquilo, dia daquilo outro. Também é verdade que as forças do atraso escolhem o domingo para infestarem aparelhos de televisão com aleivosias, bundas, peitos, machismos todos. E tem a visita aos parentes, no domingo. E tem também o jogo das quatro da tarde – menos na Copa que esse negócio de fazer tabela e olhar para as escrituras não combina com "fifa standards". Mas, deitado no jardim, olhando as belezuras todas, aposto e guardo: O homem estava pensando se vale a pena jogar com ou sem pontas de ofício.

Dito isso, mais uma verdade máxima, queria fazer pequenas digressões sobre o time nacional. Gosto dos poemas, das histórias outras que envolvem o jogo e tenho cá com meus botões que o jogo no campo, lá embaixo, é só uma grande desculpa para o resto. E por isso costumo ser péssimo em avaliações táticas, em quatro quatro três, quatro três dois um zero. Erro a conta, sempre. Mas gosto de bancar algum entendimento, como todos, aliás. Para mim o futebol mais simples do mundo – e eficiente – é aquele que tem gente certa no lugar certo. Tipo Valdir, Getúlio, Oscar, Dario e Marinho, Almir, Renato e Everton ou Heriberto ou Assis, Paulo César, Serginho e Zé Sérgio. Com o Zé ganhando o motorádio. Simples, bonito e batata.

Mas vamos ao esférico. No campo fizemos jogos regulares, e só. A primeira partida foi bem razoável se pensarmos que era estreia e teve Oscar fazendo uma boa exibição. Pela ponta, no ataque. E no meio, compondo, marcando, sendo. Foi naquele jogo a diferença e o parceiro para Neimar, que fez uma partida tranquila, mas chamando a responsabilidade. Se Paulinho não foi bem e Daniel, idem, se a impressão deixada é a de poderíamos melhorar, o fato é que contra os croatas mostramos credenciais: sorte, talento e alguma esperança. A nota fatídica, e se mostraria fatal durante o torneio, foi a apitada amiga do juizão na penalidade de Fred, cônico no mais. Depois daquele trinar as arbitragens foram nossas piores inimigas, para o bem e para o mal.

Contra o México tivemos uma exibição pífia e medrosa. Mas Neimar destilou aquele veneno da confiança e seu talento ficou ali nuzinho da silva como o acalanto: uma hora ele decide. Contra os Camarões tivemos uma exibição... fugaz. O time camaronês era de uma ruindade cósmica e qualquer resultado que não fosse uma boa vitória seria frouxidão. Passamos por cima, com sustos – porque o empate africano ainda teve bola na trava na sequencia. Mas com Neimar fazendo dois goles e assumindo o tal protagonismo. Mas a verdade é que Paulinho, Daniel e Oscar desapareceram. E Fred, que fez gol inclusive, passou mais uma vez a impressão de espectador.

A partida contra o Chile foi nossa pior surpresa. Um time perdidinho e um treinador completamente atônito. Não foram os choros, não, senhoures e senhouras, o fato denunciador de nossas dificuldades. Foi o restante todo, principalmente depois do primeiro tempo, principalmente depois do gol. Neimar tomou uma entrada dura e manquitolou. Com dores, não foi o mesmo. E aí apareceu a dificuldade atroz do time: a bola não dialogava mais na meia cancha. E o desaparecimento de Oscar foi definitivo. Mas a camisa este lá e Júlio César resolveu. Adiantou-se como Rogério, mas como é copa, amigos, tudo vale... Júlio foi bem e pronto.

Já a Colômbia nos divide. Alguns consideram grande a exibição. Entre eles um estranho PVC na ESPN Brasil (de longe a cobertura mais correta, interessante e bonita da copa), que resolveu ser escudeiro do treinador qualquer que fosse a dança. Outros destacam as dificuldades do fim do jogo. E Neimar, fora. O time fez um bom primeiro tempo. A Colômbia medrou, respeitou a camisa do outro lado e na sombra não foi capaz de reeditar outros feitos na copa. O time brasileiro, então, se firmou. A bola voltou a dialogar no meio. Oscar, sim, Oscar, voltou para a copa. Fernandinho e Paulinho, sim, Paulinho, trocaram passes, tempo e cadência. E Maicon no lugar de Daniel Alves foi a chave para dar segurança para a defesa e ajudar na composição rítmica do time. A exceção, Neimar. A partida do nosso dez era ruim, fraca. Sim, se apresentou, chamou o jogo, não se omitia. Mas não jogava. Algum desconforto. A pancada no jogo anterior talvez tivesse lá, doendo. Mas o time abusou da violência, um fato típico dos times de Felipão, com a complacência do árbitro. Faltinhas aqui, ali, acolá, daquelas que irritam. O juiz, nada, não amarelou ninguém. Os colombianos também subiram o tom e mesmo medrados batiam também. É verdade que nenhuma falta grosseira, mas o fato é que os marmanjos se estranhavam. Não ia acabar bem aquilo...

No segundo tempo, o pavor colombiano arrefeceu. Mas não oferecia perigos. Aí, saiu um gol que seria o de empate. A coisa desandou. Houve um impedimento, desses que só o vetê do vetê pode atestar, marcado pelo bandeirinha. Alívio. E logo depois, David Luís mandou um balaço, numa falta batida com esmero improvável, e caixa. Dois a zero. A vaga, o caneco.
Mas aí Felipão mostrou todas as suas limitações, evidentes. Poderia ter tirado Neimar, para poupar o jogador que visivelmente estava incomodado em campo. Poderia ter tirado Fred e testar um Hulk centralizado, para contragolpes. Poderia. Poderia. Mas fez os óbvios e Ramires no lugar de Paulinho ou Hulk, para “fechar” o jogo. Deixou Neimar lá, por medo talvez de ser criticado em caso de um empate – naquela hora absolutamente fora das probabilidades. 

O resto, sabemos. Um gol colombiano, de penalidade. Pressão, ainda que mais na base do bumba meu boi do que efetiva conquista de espaços, e aumento da violência colombiana, já que a rispidez acaba sendo sempre a muleta nessas horas. Neimar, estivesse bem, tinindo, talvez pressentisse o choque e se protegesse. Não saberemos nunca. O fato é que uma jogada maldosa, mas infelizmente corriqueira, resultou no inesperado. Neimar fora da copa. 

Para o próximo jogo, semifinal de copa, precisaremos de técnico. Precisaremos mudar o esquema de jogo. Talvez aí resida nossa grande chance e oportunidade. A bola precisa dialogar ali pelo meio. Oscar é fundamental para que isso funcione. E notem, tenho tanta simpatia pelo Oscar como tenho por um café gelado e ultra doce. Fred só faz sentido se a bola chegar. Já que não temos como fazê-la chegar, por falta absoluta de um Ganso, um Alex ou de um Neimar, talvez deixá-lo lá entre as cobras e lagartos da torcida e da imprensa seja inútil. Um cone, como foi até aqui. Talvez seja a hora de quadrados no meio, de triangulações, de conquistas de espaço pelo meio alemão, com calma. A correria é germânica. Nossa escola é outra e toque, recebe, Hernanes, Paulinho, Fernandinho e quiçá Willian. E Oscar, sim, Oscar. Lá do CT de Cotia os fundamentos, que vieram antes das traições. E Maicon. E treinar a pontaria do Hulk, que está mais descalibrada que pneu de bicicleta de criança. E uma rezasinha que ninguém é de ferro. Uma reza, macumba, quizumba, quizomba.

Eu jogaria de azul, também. Questão de gosto.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Vinte e Quatro



Muito se falará de Brasil e Colômbia. Muito. Da classificação. Da camisa. 

De um árbitro péssimo, frouxo, conivente, cretino. Tivesse pulso e amarelado, desde o primeiro tempo, as ríspidas disputas de bola entre os times talvez não perderíamos Neymar. A entrada imprudente e maldosa do zagueiro colombiano poderia, sim, ter sido evitada. E o pior, feita, sacramentada, não teve nenhuma sanção. Cagalhão, o juiz.

Falaremos da zaga brasileira. Falaremos do bom primeiro tempo. Sofreremos pelo camisa dez, um sofrimento sofrido, mesmo para quem possa ter sei lá quais diferenças com o craque. Me incluo aqui. Mas perde o futebol, perde muito. Mais do que o Brasil. Muito mais. Que se recupere bem. Com a calma necessária. Se estamos na semifinal muito e muito se deve ao menino.

Mas quero relembrar outro momento do jogo. Trinta e poucos minutos. Primeiro tempo. Na tevê o jogo seguia, já um a zero. No rádio, a bola rolava. Saiu para a lateral.

Nada no mundo tem mais gosto de bala suprasumo, de futebol no intervalo entre aulas, de sorriso, do que a voz de José Silvério. Nas minhas memórias, Silvério é um trunfo. Gosto de imaginar os jogos que não vi na voz do locutor da Pan, com comentários de Orlando Duarte, o eclético, reportagens de Vanderlei Nogueira e Cândido Garcia. Era assim, assim mesmo, que eram meus domingos, minhas quartas a noite. "A bola pedindo me chuta, me chuta, me chuta... ele veio e encheu o péeeeeeee!". Sim, Osmar Santos e a gorduchina, o balão de Fiori. Mas a narração no meu radinho sempre escolhe o Silvério, depois é que buscamos o São Paulo noutras emissoras.

Silvério está na rádio Bandeirantes. A equipe de transmissão é outra. A voz também. Mas ele ainda narra o jogo em cima da bola, como diria o Chacrinha. Por causa dele levo o rádio para ouvir os jogos. A tevê ligada e a voz dele lá, zunindo o lance e soltando a voz. O rádio está sempre um cadinho na frente do lance da tevê, porque o rádio está sempre na jogada, em pleno estádio. A imagem necessita de umas mágicas para virar onda e entrar em tubos, buracos, fios, parafernálias e cousas deste tipo. "Pra fooooora!". No rádio o jogo é. Na imagem, foi.

Aos trinta e pouco minutos, a voz faltou. Aos trinta e poucos minutos Silvério pediu permissão para deixar outro narrar, porque a rouquidão implacável o marcava, agonia, a voz não saía. Fiquei ali esperando ele voltar, até o final do jogo. Não voltou. Provavelmente um chá de limão, algum descanso, alguma mandinga e ele volta. Mas hoje, hoje, não voltou. Por mais que isso possa parecer bobo, diante de todo o resto, do jogo, da bola, do trem todo, me atacou as nostalgias, as lembranças, os carinhos todos. E quis muito e mais uma vez o mundo parar. 

"Booooola rolando no Morumbi."


Amaraladas na Copa 14 - XXIII


Há um problema em exorcizar fantasmas de forma transversa. Porque fica pairando no ar, como espírito sem cabeça, o malogro da sorte.

Desclassificamos a Itália de Paolo Rossi logo na primeira fase. Tá certo que fizemos um descarrego na copa de noventa e quatro. Mas foi nos penais. Sem querer ser chato,sendo, sempre, precisamos despachar a azzura num desses jogos de mata-mata, para poder colocar toda a nossa frustração num grito só, com xingo e tudo.

O Uruguay deixamos chegar nas oitavas, para colocarmos no avião de volta depois de uma tunda, na exibição mais plástica de uma seleção até aqui. A Celeste lembrará de James por anos. Sim, nós ganhamos do Uruguay em setenta, viramos o jogo, Clodoaldo bailou. Mas sempre e sempre tem aquele engasgo tamanho Maracanã na jaca. Podíamos ter ganho deles aqui, faria bem. 

Agora a França está em campo. Joga com a Alemanha e perde, findo o primeiro tempo: um a zero. O trasgo francês é mais recente e o fígado ainda se ressente daquela piaba de noventa e oito. E oitenta e seis. E dois mil e seis. Enfrentá-los seria divã puro e colocá-los num saguão de aeroporto com uma derrota traria paz, muita paz, nesses nossos corações em transe.

E a final contra a Argentina seria a coroação da despossessão. Não que os hermanos sejam alguma espécime de fantasma. Somos almas gêmeas. Mas seria lindo, naqueles exageros típicos da alma portenha, ganhar aqui, em casa, seis vezes e várias e várias canções de maldizer. Cantaríamos até o juízo final.

O problema do exorcismo transverso, me parece evidente, é que não tratamos os ectoplasmas - apud "Ghostbusters" - com esmero, deixando os vasilhames um tanto abertos. Qualquer falha, qualquer faísca e BUM!!!! Temos um país inteiro invadido por almas penadas de todos os tipos. 

Oxalá que não. 

De qualquer forma, já escrevi uns bilhetes para São Mané. Nenhum "joão" voltou do além até hoje, o que comprova a milagresa toda e toda desse santo protetor.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XXII


Calma com o andor que o santo é de barro. E, para variar, vamos aos fatos. A crônica de amanhã está pronta. Dupla face. Ganhando o Brasil, foi a vitória da superação, os meninos que se agigantaram, o choro maestro dos sentimentos, galhardia e opulência. Perdendo, bom, não valhem nada, time de frouxos e um rosário de infortúnios, evocando cinquenta, a tragédia, o complexo.

Mas haverá alguém a lembrar e escrever que o time "cafetero" é bom, muito bom. Joga sem muito compromisso com os fatos, só com a bola. Cuadrado é uma espécime de leveza, bailarino, ofegante inspiração. O toque de cabeça que ele deu para James Rodrigues no segundo gol contra os uruguaios foi de uma beleza monalisa, singular, mas de areia da praia, da sujeira da quadra da escola, com o gosto seco do asfalto da rua, com a imensidão dos treinos e treinos e treinos desde do infantil pé de moleque fraldinha e que tais. Notem, repetequem e considerem aquele toque sutil de cabeça como a prova definitiva da inteligência humana, da racionalidade, daquilo que nos distingue dos demais viventes: a possibilidade da poesia. A rima.

Haverá quem lembre de Yepes, com a idade dos anciões neste mundo que os homens ficam velhos antes dos quarenta, segurança, brigando, lutando, acompanhando atacantes que nasceram depois que ele já sabia ler, escrever, rimar e treinava em alguma rua de Cali. Haverá quem se recorde da simplicidade, da calma, da elegância de José Pekerman, o argentino treinador colombiano, duas nações que também amam esse trenzinho brincado com os pés.

Se a Colômbia perder amanhã - e acho provável, porque camisas jogam sozinhas, porque temos Paulinhos da VIola e alguma fonte de água pura que nos tira amarguras, bem nessas horas de exaspero - haverá um Amaral nascido em Bogotá que chorará, que lembrará de Paolo Rossi, de Zoff, de Scirea e do puto do Gentile que fez aquele penal no Zico que o maldito do juiz não marcou e da cabeçada de Oscar, no último minuto, o gigante Oscar, o melhor zagueiro da copa, para todo sempre. E escreverá nostalgias, sem saber que a poesia daquilo tudo é o que realmente importa quando vestir terno e conta pra pagar.

Espero que a crônica de amanhã não seja tão óbvia quanto às descritas no primeiro parágrafo. Ganhando, que busquemos algo além das obviedades da superação e reconheçamos que minimamente aqueles ali merecem estar ali, jogam por nós e por eles, com nossos erros monumentais mas não só. Mas, perdendo, que reconheçamos, de uma vez por todas, que há Cuadrados em outros lugares, mágicos como nosotros. Nada é mais parecido com o Brasil do que a Colômbia, nada.

Dá uma olhada no espelho e confere. Um café, por favor.



quarta-feira, 2 de julho de 2014

Amaralas na Copa 14 - Vinte e Um


Gosto muito de copa. Já disse, repeti, firmei, assumi. Pero...

Penso que pouco, ou nada, posso opinar sobre o time brasileiro em si. Não vou reinventar a roda, seleção é algo distante para mim. Bastante. Minhas impressões são sempre as mesmas: Teria levado o Rodrigo Caio, que é um bom dublê de volante e zagueiro. Teria levado Paulo Henrique, nem que fosse para jogar só os quinze minutos efetivos da ave rara em campo. Teria levado Luís Fabiano, para garantir o sururu. E, obviedade solar, o goleiro seria ele - e também, capitão. Minhas leituras do time são sempre equivocadas, porque não gosto do técnico, tenho por Neimar um profundo desgosto - embora reconheça como craque, um grande craque, capaz de quebrar recordes e paradigmas dentro do campo, tenho por Oscar aquela mágoa misturada com ceticismo do "não vai vingar". Reconheço tudo isso.

Mas como é véspera de jogo decisivo, vamos lá. Aos pitacos, que sempre aparecem nesses tempos de mesas redondas diárias, uatizápis, feiçobucos e tuítos. O problema do selecionado é sua imensa solidão. Nesses tempos modernosos, repletos de engenhocas e coisas que se desgastam facilmente, se tornam obsoletas num piscar dolhos, o time nacional esqueceu de cuidar das noções de pertencimento, de enraizamento, de sustância. Das arquibancadas não há um grito coletivo, há apenas uma somatória de manifestações individuais, para consumo instantâneo. O treinador, com fama de salvador da nação em perigo, como em 2002, acabou por assumir a tarefa incrível de dar liga para um amontoado sem identificação com o povo.

Sim, ok, admito, o conceito de povo é cacete, sabemos. Não há como definir isso sem digressões maiores, mas simplifico, que sou bocó mesmo: povo como identidade, como cultura, como lágrima, choro, novela, especial de natal do Roberto Carlos e palavrão, muito palavrão. Excetuando-se Neimar, o único do selecionado a ter um vínculo com o povo é Felipão. E Neimar tem este vínculo porque até outro dia desfilava por aqui seu imenso talento, quebrando esquemas e defesas, rompendo áreas e fazendo goles em profusão. Mesmo Fred não tem esta identidade - tem com os do Flu, como tem Tiago e Marcelo, como Paulinho tem com o Timão, como Hernanes conosco, sãopaulinos. O vínculo que quero afirmar aqui é aquele outro troço, difícil de quantificar, explicar, desenhar, mas Sócrates, Zico, Romário.

Felipão acabou por ser este elo, esta ponte, este ser. E vestiu a carapuça, como poucos, com a coragem que parece ter quase sempre. Assumiu um protagonismo militante. Não é a toa que o treinador passou a ser figurinha carimbada em vários e vários comerciais, na busca desesperada por um ídolo que ajudasse na venda nossa de cada dia.

O time não construiu esta identidade e não é porque tem muitos jogadores que lá nas Zoropa trabalham. Não construiu porque houve um erro brutal em sua preparação, que preferiu amistosos em outras paragens, sempre e sempre, em detrimento dos jogos aqui, locais. O milagre da tal copa das confederações não foi capaz de trazer a equipa ao coração. Na verdade fez acentuar um "problema na relação". Mantivemos distância: eles ganharam e são o Brasil. Diferente do nós ganhamos e somos o Brasil. Porque os jogadores se portam como extraterrestres, não opinam sobre nada, não falam nada, resumem as suas participações naquelas insossas entrevistas pós jogo ou em comerciais ou naquelas malditas entrevistas arrumadas: ai que lindo, olha a minha casa depois que venci e eletrodoméstico, carro e tal, olhai as dificuldades da minha vida e alguma benemerência. Os argentinos, jogam fora também, mas opinam sobre as mães da Praça de Maio,sobre eleições, sobre a Monsanto e o escambau. Pode se opinar groselhas, mas mesmo as groselhas criam, humanizam, trazem para perto. Os uruguaios, sofrem, antecipadamente, mas estão ali voltando sempre para Montevidéu em suas declarações. Nossos jogadores ficam no esteriótipo do venci na vida e pronto.

Felipão exagerou na dose. Ao perceber que ele tinha todo este poder, esta força, este símbolo, vestiu um manto que não lhe cabia. E que não cabe a ninguém neste tipo de relação, que no fundo no fundo é de mero consumo. A torcida da esquadra e que vai ao estádio, a imprensona e a sua cobertura diária, são também "consumidores". Este tipo de relação não é boa para ninguém, só para quem lucra. Porque o erro passa a ser um vício redibitório - um termo juridiquês para se dizer defeito de fábrica. Porque eu pago para ser feliz ou para ter uma relação que me satisfaça, do contrário você é uma peça para ser reposta.

A chave para sexta feira é reconhecer a natureza cruel desta relação - que não é desamor, não tem suor, nem sangue. E se transformar. Não é o hino, somente. Não é o empenho, somente. Não é o medo de errar e que irá nos paralisar. É aquela centelha outra, aquele Jardim Irene, aquele sorriso no rosto, aquela firula que antecede o cafuné, é o Anhangabaú, a festa junina, o Olodum, o pagode, a mãe dágua, o Enen, o SUS, a fila no posto, a polícia descendo o arreio, e não só a Arena.

Há algo de errado quando nosso escrete não consegue cantar nada que não seja a musiquinha imposta pelo patrocinador ou pela emissora oficial da pataquada toda.

Mais Zeca Pagodinho, gurizada. E bola pro mato, que o jogo é de campeonato.


Amaraladas na Copa 14 - XX



Quando as cartas diziam, fizemos de conta. Quando os búzios denunciaram, demos de ombros. Quando o mapa astral denunciou, simplesmente ignoramos. Mas o fato, mais óbvio que orégano na porção de queijo, e um cadinho de azeite, é que há muito tempo sabíamos que a realização de uma copa no Brasil teria um capítulo especial, uma página de esplendor, de vida e tragédia: Moacir Barbosa.

Barbosa era o nosso arqueiro na primeira copa realizada cá. E o destino do goleiro após o gol de Gigghia todos sabemos. O guarda metas foi responsabilizado pelo infortúnio, pelo colossal silêncio que incendiou nosso estado de espírito e carregou, anos a fio, nas costas, uma culpa infinda. Ainda que depois da copa tenha sido convocado e titular do time nacional por mais alguns anos, ainda que tenha sido titularíssimo do Vasco até bem depois do Maracanazzo. Moacir...

Todo ano tem uma matéria em algum periódico, alguma rede de tv ou rádio sobre o goleiro. Sobre a culpa. A culpa nossa, talvez uma das poucas que admitamos, do exagero em mil e novecentos e cinquenta. Já é fato que além de Barbosa, nós, os mortais, também carregamos a culpa de ter culpado. Talvez dos piores sentimentos que há. Moacir...

E nesta copa que segue seu curso, protegida por entidades que não tem relação com governos nem com autoridades, há uma revelação final. Barbosa virou um desses deuses que nos acalenta, quando desespero. Na redenção e na tragédia, na defesa impossível e na mão de alface, na segurança de uma reposição bem feita ao lamentável erro. Barbosa está nos campos. Porque mora em nossa alma.

Foram espetaculares os homens que defendem as balizas das cidadelas na copa. Eneyama, da Nigéria, das defesas impossíveis, improváveis, seguras, à saída ruim do gol, mão mole, gol e eliminação. Eliminação? No lance seguinte ao erro, o nigeriano vai buscar mais uma bola impossível, defende, faz um gol reverso - e se redime. Moacir...

Navas, da Costa Rica, quando eram dez contra onze, quando as pernas tinham acabado, o calor, a eliminação quase certa depois de um gol no último minuto. Se agiganta e pega uma penalidade de forma magistral, ímpar, divinal. Rais, da Argélia, talvez todo o Magreb, quase defendeu até os últimos pensamentos alemães, soberbo.

Neuer, o alemão que é beque. A muralha de Benaglio, o suíço que quase destroçou os nervos argentinos com seus milagres. Barbosa, lá. Em tudo, em todos, protegendo, acalmando, consertando a injustiça. Nenhum desses goleiros jamais serão os mesmos. Ninguém terá coragem de apupar, de apontar o dedo da culpa. Howard, o americano, foi mais um dos Vingadores na épica batalha da Fonte Nova, defendendo mais de quinze, repito, quinze chutes a gol numa única partida.

E Júlio César. As lágrimas e tudo aquilo. E Moacir cochichou, secretamente, segredos e sabemos o que aconteceu...

Nas próximas matérias sobre Barbosa poderíamos Moacir. E lembrar que que se a pior culpa é a de culpar, a melhor resposta é evocação de nossas histórias sagradas. Todas elas.





segunda-feira, 30 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dezenove


O salãozão do purgatório é uma dessas lojas de departamento, cheias, em dia de liquidação. Várias pessoas perambulando desesperadas, procurando por algo que não sabem, que não fazem a menor ideia do que seja, mas há lá um capricho da pechincha e da boa compra. O ar condicionado, pifou. E aquele cheiro do carpete subindo pelos ares, com os ácaros todos.

Todos sabem que o purgatório é a antesala. De lá partem as duas escadas rolantes definitivas, na versão clássica. Como sou um iconoclasta contumaz, mas que sabe das cousas, explico para vocês que são diversas escadas. Várias, múltiplas. E vão para vários lugares, quentes, muito quentes, frios, muito frios e alguns até tem quarto e sala com vista para a Baia de Guanabara. E tem sim um São Pedro, ou um sósia dele, um velhinho boa praça, mas estressado, com um molho de chaves do tamanho da arca, que comanda a bagaça toda.

No alto falante, vez por outra, uma voz chama os transeuntes para as suas entrevistas. Quando a voz é rouca, tipo a Demi Moore em "O primeiro ano do resto de nossas vidas" ou o "Sobre ontem a noite", pois bem. Mas tem vez que a voz é daquelas gravadas por computador para informar os passos para proceder uma reclamação numa dessas concessionárias de serviço público... dá até para sentir o cheiro de enxofre.

O fato é que há telões nas salas de espera das entrevistas do purgatório. Sim, imensos telões. Em todas passam jogos de copa do mundo, sim, de futebol. É espantoso acompanhar a reação das pessoas quando percebem a barca que estão. Mas não se enganem... a vida, ou o pós-vida, no caso, tem suas picuinhas, suas trapaças, suas puxadas de tapete.

Na salinha dos casos quase perdidos, a narração é do Galvão Bueno, num desses jogos do Brasil em que fomos eliminados, perdendo de virada. Com entradas e tiradas do Tiago Leifert nos intervalos, fazendo piadinhas e um comercial do Luciano Huck vendendo crédito de carbono. "Tuuuudo a ver.". São Pedro nem precisa dar muitas dicas aos arcanjos: a saída desta sala leva direto a uma sala de reunião do PMDB, numa discussão sobre cargos no governo e tempo de televisão na propaganda eleitoral.

Mas há outros cantos. Tem um lindinho e adianto o cenário, para quando chegar sua vez nos sintamos em casa: Você escolhe o narrador, e pode escolher o Fiori Giglioti, por exemplo. E escolhe o jogo pra assistir. E só jogões. Esta salinha, Pedro deixou sereias e sereios servindo canapés e tem até um vinhozinho maroto. Cheguei bem na hora que um dos orixás trouxe um vetê novinho em folha com um sorrisão no rosto. E ouvi a entidade bem feliz, informando a geral: "Chegou!!!! Chegou o Argélia e Alemanha da Copa do Brasil!!!!".

Os que estavam na salinha se alvoroçaram e até ouvi um "oba". Em pleno purgatório.



Amaraladas na Copa 14 - Dez Mais Oito


"Tia....". Tia, não. Professora.

Nessas minhas manias de reduzir as cousas numa linguagem que eu possa entender, gosto de imaginar as Copas como um imenso interclasses, aqueles nossos campeonatos da escola, na época do ginásio.

Quem nunca entrou numa quadra, porque os campeonatos interclasses costumam ser de salão, num torneio que reunia da quinta à oitava, quando os pequeninos, recém saídos do primário, nem beijo selinho ainda, eram obrigados a enfrentar por essas tabelas desalmadas, aquele time da oitava séria, todo mundo no fatorial, barba, gazeta, fura olho?

O time da quinta era até muito bom. Pelota de pé em pé, saída de bola bem feita, cada um marca um, pivô e eteceteras e tals. Goleava impiedosamente naqueles recreios com futebol qualquer time e até faziam chacotas quando colocavam na roda os demais. Era impossível não pensar que seria sempre assim e ter esperanças. O time é bom.

Aí chega o campeonato. O interclasses. Onde moram perigos. Onde há torcida. Há beijos de recompensa. Há craques, prêmios, olhares de inveja e cobiça. Bola rolando e...

O fato é que o timaço da quinta série ganha uma, dá show e todos comentam que os meninos são colossais. Vão vencer qualquer obstáculo. Até que naquela partida decisiva, intervalo entre aulas, todo o colégio assistindo a peleja, um a zero, o time da oitava empata. No finzinho. Depois do grandalhão ter dado uma cusparada feia no chão, depois de uma dividida mais ranheta, depois de uma discussãozinha com o professor que é o juiz, porque não marcou falta naquela jogada ali. E antes do sineta, óbvio, o gol evidente do time mais experiente. Feito com calma, quando tudo já era coração. E foi daquele menino lá, justo aquele que eu queria ser, justo aquele lá que já ia receber o melhor dos beijos...

México, Chile e Colômbia devem saber na alma o que é este sentimento. Brasil, Alemanha, Argentina, Itália também sabem que podem resolver situações improváveis antes da sineta. As vezes não funciona, é verdade, mas é muito raro não funcionar para todos os times da oitava série concomitantemente. Eles parecem, inclusive, combinar entre eles quem vai ser o responsável por extirpar o coração do romântico do momento, furará os olhos como já furaram uma Dinamarca, uma Hungria, uma Suécia, um Chile, um México... uma Colômbia. 

Mas e a Espanha? Bom, a Espanha é aquele time de sexta ou sétima série, que vez por outra belisca o caneco porque os times da oitava se mataram entre si. Mas depois, no outro campeonato, ficam lá na ansiedade entre o pega-pega, esconde-esconde e o gato mia...

E... acabou de sair um gol da França. Numa pipocada do goleirão.
"Tia........".


Nota do Feiceditor: Sabemos que por força da LDB o ensino fundamental vai hoje até o nono ano. Que antiga quinta é sexta, a antiga oitava é nona. Mas a memória é minha então mantenho no ferro velho.



domingo, 29 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dezessete


Devo ser uns trinta anos mais velho que o Felipe. Sou de 1972 e ele deve ser de 75, acho, creio, imagino. Camarada. Gosta de futebol como poucos e gosta de ler, o que torna nossa amizade fácil, porque eu escrevo como um desesperado querendo fugir um cadinho das ilusões, construindo outras. 

De humor fácil, torce para o Fluminense e tem aguentado bem as tirações de sarro sensacionais que estamos a lhe oferecer, aporrinhando por causa da meleca do campeonato do ano passado. Na nossa diferença de idade, o meu Fluminense de todos os tempos é o de Assis e Washinton. O dele, o de Renato Gaúcho e os times recentes, que ganharam alguma cousa, admito. Mas nossa maior diferença futebolística é a seleção.

Felipe é Romário. Para ele o escrete de 1994 reúne todas as condições para jogar no firmamento. Além do mais o técnico era Parreira, aquele do Flu de Assis. Já este velho senhor parou no tempo. A escalação é de um time que não ganhou uma copa. O treinador também jogou e treinou o Flu, num tempo imemorial de décadas e décadas anteriores à pisada na Lua. Esta diferença é, de certa forma, a peneira com que conseguimos analisar e olhar o futebol. Há aqui um encantamento diverso, que pode parecer só uma questão poética, mas sabemos que não. 

A nostalgia, e convenhamos que 1994 já se pode considerar nostalgia, é um sentimento que alimenta, apaixona, nos faz fazer músicas, canções e saudades. Saudade é a palavra de nossa língua que tem um sabor diferente, aquele cheiro de café sendo coado enquanto esperamos a fatia de pão. Mas ela também nos paralisa, em muitos aspectos. Ficamos muitas vezes ali naquela tampa de refrigerante Gini, chutando contra uma parede que não existe mais.

Por isso, mesmo tendo um outro time, um outro time, o mesmo Parreira, é verdade, os olhares e percepções - e a forma de torcer - tem uma cor diferente. As vezes antagônica, assustadoramente antagônica. As vezes complementar. Sempre uma cerveja, uma porção de colesterol e umas outras cervejas e estaremos ali, no eterno mesa redonda futebol debate de nossos eternos domingos a noite, mesmo sendo segunda feira.
O bom desse feiçobuco é que a gente pode dinamitar essas bobagens, explodir como biribinhas. Que se a falta da cerveja é um problema, aqui se dilui um cadinho. 

Mas copa é copa. E o Felipe é desses tarados compulsivos. Comprou zilhares de ingressos, torrou ordenados em passagens, quase não drome para entrar no sítio da Fifa e põe na pilha todo mundo: "Porra, é copa!". Ele quer, certamente que quer, que Alemanha, Holanda e Argentina (exceto a final, por razões de uma evidência solar), sigam no torneio. São as potências do futebol. E a copa é a hora do tira teima. E nosso time pode ganhar. Com Romário ou Neimar, temos chances sempre. 

Mas o que eu torço mesmo, pelo Felipe, sincera e honestamente, é ter um jogo da Argélia com ele lá na arquibancada. Ganhando ou perdendo, naquele canto todo de parece o comemoração de fim do mundo. Que o México todo cante e que voem bigodes, zapatas. Com o Sócrates batendo no cantinho de Zoff. E a Suíça, assim como naquele mundial para imberbes menores de dezessete anos, lá na Nigéria, já no nostálgico 2009. consiga o feito heróico de derrotar o time com Neimar, que no caso desta copa, o time de Messi.

Pode parecer pouco. E pode até ser que não. Mas é assim mesmo.

sábado, 28 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XVI


A bola não entrava. Nunca entraria era minha modesta opinião. Cricri, chatonildo, um lado perverso da minha alma ficava lá, flertando com a tragédia, namorando o infortúnio, quase um prazer. Senti ali uma novela já conhecida, estranhamente, em torneios anteriores. O time faz um bom primeiro tempo para cair na mais funda depressão, atados os ânimos no chão - assim como na derrota para a Holanda, assim como na derrota para a Argentina de Maradona. Era isso e estava escrito que seríamos eliminados. O Chile jogava melhor, cozinhava o galo como que esperando a hora para degolar os pescocinhos. Aquela gente ruim que vaiou o hino chileno, gente estúpida, merecia esse fim. Torcidinha de meleca, muito orgulho e amôooor. Nojo. E o Felipão e ....

Aqueles olhos de jaboticaba me fitavam. Queriam alguma resposta. Algum alento. "Um golzinho." "Só um golzinho, pô.". O Grande ali, no sofá, me lembrando enfim de uma outra cousa, de outros mundos, outras variáveis, códigos, valores. "O que você acha, pai?". Eu acho que esses éguas todos aí deviam logo marcar esse segundo gol, cascalhos! Que esse Felipão só pode estar de jeriquismo quando troca um segundo volante por outro: "Pimba!!! Um volante por outro? Depois vai pra prorrogação e perdemos uma substituição!". "Vai!!!! Cuidado, pombas!!!!".

Carambas, caçarolas, cacildas, frituras todas: a bola não entrava. O dez do time manquitolando, visivelmente incomodado com alguma dor. O time sem ele é, definitivamente, outro. Daniel, além de avenida, uma apatia toda de uma vida toda de uma lateral toda. E Oscar, um desaparecido. Puxa que puxa, a vaca e o brejo. "Filho... não está fácil." No fundo, bem no fundo, eu estava certo de que não ia dar...

O Pequeno se levanta. Vai para o quarto. Nem vê muito o jogo. Me abraça depois. Fica do meu lado. O Grande se levanta, bate bola com a bexiga verde. A casa parece perdida naquele futebol de devaneios. Os dois perceberam uma maracutaia paterna, com graça: não era que o pai sabia do jogo antes, era o rádio que estava uns três segundos na frente da narração da televisão. Ficaram colados no rádio. Silvério. E quando a casa se remoía indo pra frente da tv, um dos dois gritava: "Foi pra fora.".

A bola. E o Chile no ataque. Fim de jogo, fim da prorrogação, era o último lance. Depois, penales. Opa... sobrou livre pro chileno, ai, ai, ai, ai.... "Na traaaaaaaaaaaaave!!!!!!!". Foi na trave, pô! Saiu um palavrão, um ufa, uma benção. Os dois me abraçam. A loura nem mais falava. Só os olhos vidrados, numa estranha catarse. "Vai dar?". "Vai." A assertiva é minha, mais falada do que pensada.

Combinamos de desligar o rádio. Ficar só com a televisão. E combinamos tirar da tv a cabo e colocar na tv aberta, para acompanhar o resto da cidade. Não iríamos aguentar saber antes. E um consolo: "É.... iria tirar a emoção." Bah.... a emoção.

O quinto penal. A casa dá as mãos. Fazem cantos de "Júlio César" e eu, o chato, peço um coro de "Chuta pra fora, chuta pra fora!". Cantamos. Canto. Cantam. A pelota explode na trave. Correm pela casa, gritam na janela. Gritam muito na janela. E aquele abraço do Grande, funcionando como um obrigado.

Que venham as quartas de final. Que vai ter radinho, de novo.
 
 
 

Amaraladas na Copa 14 - Quinzão


Há certas cousas no mundo que deveriam ser tratadas com muito mais seriedade. Sim, digo dos programas de solidariedade internacional e das redes de proteção internacionais tentando mitigar o sofrimento de muitos, refugiados, expatriados, perseguidos. O combate intransigente contra a intolerância: de gêneros, de religiões, culturais, étnicos. E deveríamos cuidar mais, dentro desta lógica, de nossas identidades culturais, de nossas construções históricas - não só as construções com pedras, cimentos, argamassas, compasso, tijolo, cálculo, engenharia e tais - mas todas as construções que são fruto de nossa história: o samba, a valsa, o amor, a serpentina, a bola... o futebol.

Eu não entendo porque não é a ONU que organiza o futebol pelo mundo. Simplesmente não entendo. A ONU não é lá essas cousas, a gente sabe, tem muito mesmo o que melhorar, aprimorar, ser. Mas é uma construção importante, ao menos um indicador de que outro tipo de mundo seria possível, que outros mecanismos para resoluções de conflitos seriam necessárias, que não precisamos mais só de guerras. A ONU é um sonho. Mas é.

A FIFA é um balcão de negócio, principalmente depois que Havelange, aquele um que deveria ser esquecido pelo tempo e destinado ao ostracismo que nem o inferno é, é só esquecimento. Um pulha, com todo o perdão aos mais sensíveis e à família do cara. A federação deixou de ser o que Jules Rimet pensou um dia para ser só mais uma dessas multinacionais globais, cuja a pátria é só o crédito na conta de acionistas ou fedores assim. E o pior, a casa de tolerância monetária "organiza" uma daquelas paixões mortais que nos identificam como seres humanos - e, portanto, nos aproxima do sobrenatural, das deusas e deuses. Organiza e monopoliza um bem cultural da humanidade. E isso é lamentável, como processo histórico, político, econômico e cultural.

O futebol parou guerras e foi fundamento para outras. Mas não estamos falando só de um esporte que alimenta paixões. Estamos falando de nós. Estamos num Celtic versus Rangers. Estamos criando. Desde as regras simples do jogo, passando pelas inúmeras possibilidades que um time de onze jogadores, mais onze reservas, podem criar. Não é só para brutamontes, como vários outros desportos que necessitam da força física e do sobrepujar quase a morte o outro. Não é só talento e habilidade com os pés, senão não teríamos esta profusão de heróis cabeças de bagre, mas raçudos, onipresentes, volantes que desarmam e avantes que marcam com canelas, bicos de pé, púbis ou sei lá mais. Estamos a conversar e a construir, epopéias, vexames, desgraças, vitórias, derrotas, frangos, aritméticas, geometrias, sambas, livros, filmes, criação!!!!

A primeira fase da Copa no Brasil revelou muito disso. Que apesar dos fuínhas da federação, com suas echarpes no calor, com seu cheiro de colônia vencida, com seus arrotos, apesar dos cartões de crédito, dos bancos, das empresas de televisão, flui algo outro, que nos encanta. As histórias e as narrativas da copa de verdade, nas ruas, nos países, nos povos, no campo é fantástica. Sugiro aos mais incautos que persigam estas crônicas e relatos na copa em sítios como o Impedimento ou o Trivela. A história do garoto escocês que adora o atacante grego Samaras e o comovente depoimento do jogador sobre esta amizade. A façanha de Mondragon, o arqueiro cafetero que acaba de se tornar o jogador mais velho a atuar em um mundial, em três, na verdade. Drogba, que parou uma guerra em seu país. Eto se comparando a Obina e depois abraçando um moleque brasuca só pelo abraço. Das ruas de São Paulo, a cidade mais mau humorada do planeta as vésperas do mundial tomadas por uma intensa felicidade que se explica só e só pela bola, a esfera, a redonda, a menina, o balão. Do Maracanã, que vilipendiado, renasce num grito latino de chilenos,argentinos, uruguaios, colombianos e equatorianos. Do navio repleto de mexicanos. Das histórias de We Are The Bangladeshi Fans of Brazilian Football team, um país que não está na copa mas se reúne para falar, discutir, apreciar e se deixar encantar.

Do desespero dos conservadores americanos, porque lá nos States é o futebol que começa a despertar a multidão. Imaginem, no centro desta cultura mercantil, da vitória dos mais fortes, começarmos a apreciar o futebol como arte, como manifestação, como brinquedo e entenderemos as razões profundas deste temor. O futebol é outra cousa. E por isso mesmo não poderia ser tratado como simples mercadoria de gôndola.

Oxalá entendamos esta beleza e suas possibilidades, de fato infinitas... Merecemos. E muito.

A Fifa? Que vá a merda. Que é o seu lugar.

 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Quatorze


Eu sou advogado. Escolhi ser. Não gosto mais, é verdade. Mas me encanta a defesa do impossível, a boa tese, a justificativa plausível, o tentar explicar. Talvez seja um desvio de caráter: não sei punir.

Todo esse trololó acerca da punicção de Luisito me deixa acabrunhado e mais uma vez mergulho fundo nas minhas contradições, cada vez mais infinitas e "irresolvíveis".Por um lado a imagem está lá, para a via láctea toda acompanhar: Suarez desfere uma mordida no defensor italiano, daquelas fundas. A imagem fria e repetida, zilhares de vezes, espalha o pânico de todo pai e mãe com criança no jardim da infância - o pesadelo das mordidas. Fase oral, definitivamente.

Luisito é reincidente. Parece que pratica a mordida como se praticam as cusparadas na zona do agrião, os dedões nos fundilhos, as patoladas no saco alheio nas disputas dentro e fora da pequena área. A sujeira é imensa nessas horas de desespero. Um convento ficaria todo em claustro e penitência soubessem do que se faz ali no campo de jogo em nome do gol. O problema é que a mordida sempre será percebida. Não se escondem os dentes. E as marcas. De fato, a imagem fria estabelece a imposição da sanção. Não se pode fingir que aquilo ali não aconteceu, muito embora o juizão na hora do agá não tivesse visto nada ou reclamado de nada. Mas a imagem fria é fria, calculada e calculista. Qual palavrão saiu da boca do zagueiro, minutos antes? O que o cotovelo, esse ser de vontade própria, disse ao atacante naqueles átimos todos?

A utilização da imagem fria, depois do jogo, só para punir jogadores me parece um cadinho ofensiva no balacobaco todo. Porque se escolhem quais agressões merecem punições depois do jogo. Porque os escandalosos erros de arbitragem que resultam em gols ou em não-gols são coisas do jogo e não podem ser revistas. Porque o videoteipe é um remédio maravilhoso mas usado em demasia é cobardia inigualável. Um juiz mequetrefe que vê o lance oito vezes no teipe, com a ajuda do computador, do congela imagem, do recurso infinito fica a cagar regrinhas sobre o que está certo ou errado.... Ora, se vale para punir me parece que deveria valer, também, para reconstruir equívocos monumentais como aquele impedimentozinho maroto, aquele penalzinho cavado, aquela laranja toda limão cravo e tangerina. 

Sabemos que reconstruir lances seria matar o futebol. Porque essas pinimbas fazem parte do carnaval. Seria de bom alvitre estudarmos formas de correções destes eventos durante a partida. Mas, depois, finda a jornada, esfera inerte: acabou. 

Por outro lado, a mordida está lá. Fingir que ela não ocorreu e, no caso, que não é um caso de consultório, pois repetida, é passar a mão nas madeixas do craque e deixar pra lá, pobrecito ele não sabe o que faz. Sabe. E merece algum tipo de punição. Talvez devesse ser obrigado a se consultar, a ir a um terapeuta, uma mesa branca ou uma missa. Talvez um gancho de alguns jogos para se tratar. Mas, definitivamente, somente para punir é que vamos usar videoteipe é algo que não me desce. Nem com gelo e vermute. O exagero dos nove jogos, o banimento da copa e dos estádios, a retirada de credencial, tudo isso, de tão nojento, me abstenho de comentar. A FIFA é aquele figura ausente, que aparece para dar pito para justificar alguma síndrome de autoridade.

Agora.... atiçaram a onça. O Uruguay, na bola, no campo, no onze a onze, no banco - apesar do charme incomparável de Tabares, não assustaria muito, porque limitado. Godin e Cavani são pérolas, raras, mas talvez não fizessem verão. Mas atiçados, acuados, injustiçados - ok, ok, ok, sabemos que alguma punição viria, mas o excesso mata bem mais a planta - dão aquela adrenalina, aquele dopping psicológico, aquela serotonina mágica que faz o mortal sair pulando de viaduto, bancando o Buzz Lightyear...



quinta-feira, 26 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XIII


A primeira vez, sempre existem estas labaredas, foi num desses restaurantes de deixar todo o ordenado do mês. Acompanhava os quitutes que acompanhavam o café. Exótica. Uma fruta amarela, envolta numa casca seca. Um gosto gostoso como deve ser, daqueles que lembram pecados, pequenos amores. Ácida. Sabor.

"O que é esta fruta?". O garçom, solícito, mandou: "É uchuva. E é da Colômbia." Uchuva. Um nome bem diferentão e da Colômbia. Meu paladar afeto a histórias, cantigas, poemas e estranhezas adorou.

Depois de um tempo a frutinha tornou-se figurinha carimbada nos sacolões de classe média - essas feiras em locais fechados, no meio do caminho entre o mercado e a feira de rua, pequenos paraísos que nos fazem sorrir a alma e chorar bolsos. Mas aqui nesta nossa luta de classes, a espremida classe média, sofrida, aperreada, não gosta de sacolões e nem de uchuvas, são nomes que não condizem com nossas aspirações primeiromundistas, nosso complexozão de vira-lata de "europeu" nascido nos trópicos -todos temos sangue colonizador, ora pá - então inventamos os sensacionais "hortifrutis" e "physalis" para denominar sacolão e a pequena fruta. Assim, com ipsilone mesmo, que nós gostamos da letrinha com som de "i". Tá bem certo que o tal sacolão é basicamente um vendedor de hortaliças e frutas e que o nomezinho científico da uchuva é "physalis" mesmo. Mas isso tudo misturado e junto confessa muito de nossa amada raíz, dos patrícios e patriarcas - e matriarcas também, que gênero aqui ainda é um problemão sério que ninguém quer discutir - que habitam e nasceram e nascem na terra piratininga.

São Paulo é o máximo. A cidade pulsa, tem vida, coração, alma, noite, calor, frio. Uma mistureba dantesca. Tudo tem aqui. E há sim uma classe média espraiada pelos cantos e pelo centro da cidade. Sou um desses, desde sempre. Mas acho inevitável olhar para meu umbigo e dar risada, tentar aprender um pouco e sair da caixinha cômoda que o berço me deu, feliz. Vou no hortifruti e a caipirinha de physalis do Veloso, boteco que fica ali nas divagações da entre a estação Ana Rosa e a da Vila Mariana do metrô, pertim da caixa dágua da Sabesp, é de tomar de joelhos, rezando. Mas gosto muito de tratar a uchuva por uchuva, o sacolão por sacolão. Sou assim.

E escrevo todo este tratado para dizer que a Colômbia de Valderrama está prestes a um feito muito mais histórico nesta copa. Com o futebol mais alegre dos sudamericanos até aqui na copa, jogando com a leveza de James Rodrigues, está a um passo de nos empurrar uchuvas, para que não neguemos nunca mais que nossa cor também é preta, que fomos explorados pelo café, pelo ouro, pelo sangue, que mataram e escravizaram nossos índios, que matam e escravizam, que mataram e escravizaram nossos negros, que matam e escravizam, que se alimentam como abutres de nossa fé e tudo mais. Que o que nos une é o lamento e o sofrimento, mas a esperança e o caldo saborosíssimo da mistura. Que nossos complexos de vira-latas são parecidos - só um complexo do tamanho dos Andes explica Uribe. 

A Colômbia seguir no mundial, firme assim, bela assim, cantando assim, é a vitória dos nossos avessos. É a curimba que falta.

"Uchuva, por favor."