quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Em casa. Primeira parte.



O domingo me acorda duas horas antes do combinado com o despertador. Tento não fazer barulhos ao me levantar e dou um silencioso cheiro nas minhas meninas antes de vestir os óculos e trancar a porta ao sair. Sabia aonde tinha de ir. Acho que desde sempre.

Meu Tejo. Minha Macondo. Minha Tatooine. A 409 sul.

Dentre os presentes que recebi de meus pais, não há outro mais importante que uma infância em Brasília durante os anos 80. A quadra, então, era um mundo a ser explorado. Um mundo imenso. Um mundo de poucos perigos, de amizades diárias, de liberdade infinita à distância do assobio paterno.

E a 409 era a minha quadra. Minha. Cercada pela L2 a leste, pelos militares da 209 a oeste, pelos briguentos da 408 ao norte e pelos rivais, na bola e nos amores, da 410 ao sul.

A minha quadra. A corda bamba e a rede num mesmo lugar.

409 sul. Onde estou agora, sentado sobre o banco de concreto do Areião. Ali, sob aquele pé de jamelão, dei meu primeiro beijo, após pequena fraude em uma salada mista. Mais adiante, ao lado do Bloco D, saí na mão com um moleque. Mais tarde, no mesmo dia, era meu melhor amigo.

Os pés me guiam pela velha quadra, ampla como a generosidade de Lúcio: aqui jogava botão, meu primeiro time de galalite conquistado em um jogo à vera. Ali, a temível guia do G, a calçada mais alta da quadra, o troféu máximo a ser conquistado de peixinho sobre uma extra light. Só quem subiu de peixinho a guia do G, engolindo o medo da queda e do vexame, sabe o que é uma vitória.

Passo lentamente pelo Maconhão, o campo das peladas dos meninos e de outras diversões para os mais velhos. Está mudado: agora há parquinho e árvores, que certamente dificultariam – mas não impediriam – nossas pelejas. Vejo a Igreja Metodista onde pichei, sob um pânico nauseante e em trêmulas letras, algum pseudônimo. Sinto o cheiro da primeira namorada sob a flamboyant em que a aguardava voltar da escola. A mesma árvore.

Atravesso a fronteira para a 410 e vejo o antigo apartamento de minha avó, onde testemunhei o equívoco de Toninho e Júnior. Volto e gasto alguns minutos em frente ao Bloco C, onde – ao lado do meu Velho – acompanhei Galo perder o penal. Nesse dia, o Velho me garantiu que Zico não erraria. Não sei se já o perdoei.

As Copas de nossa infância forjam, em bruto ferro, nosso caráter. Definem. Amaldiçoam. Perseguem. Todos os meninos da 409 sul. De todas as 409 sul. Todos estão presos à dureza da derrota inesperada. À dureza da derrota do mais forte. À dureza da derrota da beleza.

É a nossa cicatriz. Nossa marca de nascença. Nosso troféu de guerra. Nossa bandeira.

É quase meio-dia quando os cacos da minha existência dão uma trégua e lembro que é bom me aprumar. O jogo é mais cedo hoje. Às 13.

Suíça e Equador, no velho Mané, onde vi Brasil e Alemanha Ocidental com meu Velho. Uma Copa na minha cidade. Uma Copa na 409 sul.

Senhores, isso não é pouco.

Demetrius Cruz
Brasília, 15.06.14, antes de Suíça e Equador.

sábado, 21 de dezembro de 2013

A FÚRIA, O CARROSSEL E A BAHIA DE TODOS OS AMORES





Tinham se conhecido na final da Copa do Mundo de 2010, 11 de julho, Soccer City, em Joanesburgo, África do Sul. Conhecido talvez não seja a palavra mais precisa – o máximo que conseguiram foi trocar, nem tão de longe, nem tão de perto, alguns olhares. Foram olhares generosos, é verdade, talvez de cobiça, desejo, e até esboçaram alguns sorrisos. Mas depois nunca mais se viram. O Espanhol e a Holandesa estavam atrás do gol defendido por Stekelenburg no segundo tempo da prorrogação, aquele onde Iniesta, num quase voleio, uma verdadeira chicotada de cima para baixo, mandou um foguete cruzado no cantinho da meta da Holanda, garantindo finalmente o tão almejado primeiro título mundial para a Fúria. O Carrossel amargaria o terceiro vice-campeonato. Quando o árbitro apitou o fim da peleja, o Espanhol, eufórico e sem saber muito bem o que fazer, saiu correndo sem rumo pelas arquibancadas (não sei se esse setor existe nas arenas FIFA, mas também não sei outra maneira de chamá-las), embrulhado na bandeira vermelha e amarela, pulando e gritando como criança. A Holandesa saiu cabisbaixa, ‘perdemos de novo, por pouco de novo, sempre o quase’, sem pudor de esconder as lágrimas sentidas, caminhando lentamente na direção contrária. A bandeira azul, vermelha e branca tinha sido dolorosamente enrolada. Quando se deram conta, se procuraram. Em vão. Na multidão, não se acharam.


************


Salvador mora no meu coração. Cidade querida, tantas cores e lugares incríveis, onde minha esposa guarda raízes e onde viveu boa parte da infância. O Pelourinho, o Rio Vermelho, o Farol da Barra, a Universidade Federal. Em minha primeira passagem por lá, no já longínquo 1999, além de sofrer com a ensolação braba, compreendi com uma pontinha de inveja saudável o jeito inteligentemente malemolente de ser e de viver do baiano. Passamos o dia na praia de Stella Maris ou de Itapoã (a memória não é precisa) - e por isso o inevitável arcar com as consequências das horas de sol implacável na cachola. Até às onze da manhã, a barraca mais próxima esteve fechada. Foi então que o barraqueiro chegou tranquilamente, sem pressa. Vendeu sucos, refrigerantes, cervejas, porções diversas, água de coco. Até às três da tarde, quando baixou a porta e foi embora. Estranhei – já vai fechar? Me explicaram – já tinha vendido o que precisava para dar conta daquele dia. Amanhã seria outro dia, resolveria depois, no tempo certo. Sem estresse. É isso. Trabalhar para viver, não viver para trabalhar. Lições sábias dos soteropolitanos. 
 

Estava mais uma vez na capital baiana, sexta-feira, 13 de junho. Mau presságio? Tinha chovido no dia anterior, aquela chuvinha fina e chata, típica da cidade nos dias de inverno. Mas a manhã da sexta – pulei da cama cedo, ansioso – já anunciava céu azul limpinho e calor de fritar ovo no asfalto, uns 40 graus na sombra. Não foi fácil chegar à Fonte Nova – trânsito intenso nas proximidades do Dique do Tororó, orixás a dar as boas-vindas aos torcedores, além de passeatas que exigiam Saúde e Educação padrão FIFA que tinham saído de diferentes pontos da cidade, para se concentrar no entorno do estádio. Havia cordão de isolamento. Um clima tenso, ar sufocante, politicamente pesado. Manifestantes de um lado da rua, policiais militares de outro, frente a frente. Sensação de que qualquer aviãozinho ou bolinha de papel que fosse atirado, por brincadeira, poderia fazer estourar reação em cadeia e saraivada de cacetadas e “passou, levou”, pancadaria generalizada. Só podia atravessar o ‘batalhão da segurança’ quem tivesse o ingresso em mãos (agora, chamam de tíquete, bilhete, sei lá...). Passei. Não levei. Entrei. Estádio arena é mesmo diferente, bonito, pomposo, imponente. Se valeu o investimento? É discussão para outro texto. Procurei meu lugar. Bom. Ótimo. Bem no meio do campo. Visão privilegiada. A adrenalina bateu níveis estratosféricos e o corpo chacoalhou quando as duas seleções entraram em campo. O relógio marcava três e quarenta e cinco da tarde, em ponto. A Espanha vestia camisas e calções azuis; a Holanda vinha toda de laranja. Exatamente como na final da última Copa. Clássico do planeta bola. Reedição da final da África do Sul. Eu estava lá.


******


Desde o primeiro minuto, o que se viu foram duas orquestras afinadíssimas e com fome de bola em campo. Espetáculo único. Jogo ofensivo. Futebol arte. Tique-taca versus carrossel. Tabelas e lançamentos de deixar incrédulos e boquiabertos até mesmo os torcedores mais velhos, aqueles que tinham visto Pelé, Garrincha e a inigualável Seleção Brasileira de 70 a bailar nos gramados nacionais. Pep Guardiola, técnico espanhol, aprendiz da escola holandesa, já disse: “estamos apenas resgatando e colocando em prática o que os brasileiros nos ensinaram”. Troca rápida e milimétrica de passes, quase todos de primeira, entre Xavi, Iniesta e Xabi Alonso, a reproduzir os famosos triângulos barcelonísticos, e Diego Costa saiu na cara do gol para abrir o placar. Camisas vermelhas na arquibancada pularam. A festa ficou mais bonita ainda quando, depois de uma meia-lua – o popular drible da vaca – no zagueiro adversário, já dentro da área, Fábregas tocou para Iniesta, que devolveu com açúcar e com afeto para o meia-atacante do Barcelona, já quase na linha do gol, goleiro batido. Fábregas só teve o trabalho de empurrar a bola para dentro.


Lindo! Aplausos! 2 x o Espanha. Fatura garantida? Goleada anunciada? Era só a primeira meia hora de jogo, que correu vivo até o final do primeiro tempo, com as duas seleções ignorando solenemente o calor abafado. O segundo conseguiu ser ainda mais eletrizante. Depois de uma bola na trave e de outras duas que passaram raspando, Van Persie aproveitou um cruzamento da direita na medida e saltou sozinho para marcar de cabeça. Alívio dos camisas laranjas nas arquibancadas. Esperança. A explosão veio dez minutos depois, quando novamente Van Persie, oportunista, aproveitou bola espirrada pela defesa e emendou de primeira, no ângulo. Sensacional. Plasticamente perfeito. Com dois gols e o empate, já seria o nome do jogo. Mas o atacante do Manchester United, ex-Arsenal, talvez quisesse ser alçado à condição de um dos nomes mágicos da Copa. Quando faltavam cinco minutos para o final, arrancou da intermediária, driblou três espanhóis (o primeiro levou no meio das pernas, o último ficou com dor na coluna), deixou Casillas com a bunda no chão, corte seco, cruel, e ainda olhou para a arquibancada antes de soltar o pé maroto e fazer a bola morrer lentamente no fundo do gol espanhol. Gritos em êxtase e bandeiras laranjas tremulando. Final de jogo. Holanda 3 x 2, de virada.


Levantei para aplaudir, encantado, ainda embriagado pela beleza sublime do que tinha acontecido em campo. Percebi então que vinha em minha direção um Espanhol, feição triste, macambúzio. De repente, ele parou. Arriscou um sorriso, primeiro envergonhado, rapidamente efusivo. Sorriso de redescoberta. De reencontro. É comigo, pensei? Conheço esse cara? De onde? Tentei acionar a memória. Mas ele foi mais rápido, passou por mim como um raio e correu por mais uns dez metros. Parou. Ficou ali, esperando. A Holandesa, que comemorava a vitória, a revanche, ainda não tinha percebido. Ele se aproximou e soltou o fatal ‘hola, que tal?’. Certeiro. Fulminante. Ela sorriu. Quatro anos depois, no Brasil, um pedaço da África, na negra Salvador, na Bahia de todos os santos e amores, voltaram a se encontrar. Saíram juntos do estádio, abraçados. Ele, bandeira da Holanda nas costas; ela, bandeira da Espanha enrolada na cintura. 

Espanha 2x3 Holanda (Diego Costa, Fábregas e Van Persie -3) 
Salvador, Fonte Nova, 13.06.2014
 
Chico Bicudo.

(Nota do Amaral: O Chico? Grande escritor, literato, jornalista. O Blogue dele? Supimpão, aqui: http://oblogdochico.blogspot.com.br/)
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Las cosas cambian




Uma festa de arromba sempre é povoada por uma fauna composta por tipos diversos que compõe a história final que vai ser contada, por muitas gerações, sobre aquele pequeno espaço de tempo. Dos eternos candidatos a reis e rainhas do baile, àqueles de quem pouquíssimos lembram a presença, existe toda uma constelação de tipos improváveis, belos, extravagantes, enfim marcantes.

Chegando à capital potiguar, terra do monumental Câmara Cascudo e do guerreiro time do Alecrim, percebi que os meus 20 anos afastado dessa boa cidade tinham me transformado num alienígena. Então saquei uma anotação do bolso e rumei para a barraca do carangueijo na Ponta Negra.

Em folhas de papel manchadas pelo óleo do peixe frito comecei a esquadrinhar algumas linhas: o México, paixão minha desde moleque, parecia dotado de uma bendição que no fundo era uma maldição; vamos lá: com quinze participações em Copas (fato que a torna a quinta seleção que mais participou do certame), o México era aquele cara da turma que jamais furava, não ameaçava ninguém (os expoentes-mór Hugo Sanchez e o longevo Carbajal não me deixam mentir), sempre trazia a seleção mais animada e agradável de cada Copa e nas duas vezes que tratou de organizar o certame, o fez no mais lindo dos palcos, o Azteca e elevou definitivamente Pelé e Maradona ao grau mais alto de suas carreiras. O México era o cara mais legal da turma.

Por outro lado, Camarões não merecia uma nota menor; em sua sétima participação, Camarões inaugurou nas nossas cabeças o encanto e o temor de que todo um continente cor de ébano estava chegando com suíngue, malícia e habilidade e que o futuro do futebol jamais seria como era até então. Isso em 1990, quando o esquadrão do vovô Milla derrubou, de cara, os argentinos, bateu a carteira do histriônico Higuita e fez o mundo sonhar por muitos dias.
Enfim, se o México é eternamente o cara legal da turma, Camarões é um daqueles novatos ousados, abusados do grupo, daqueles que todos sabemos que um dia pode virar o rei do baile.

Rumo para o salão de bailes, digo, a Arena das Dunas e a frente do estádio é uma festa só; sombreros mexicanos, perucas e buzinas fazem um torto arranjo musical com tambores africanos de camaronenses e outros africanos que se juntaram à festa, enquanto a população de Natal vibra generosamente o sonho aguardado por muitos anos.
Começa o jogo e o panorama para os mexicanos é muito menos festivo do que parecia há instantes atrás; classificada graças a dois goles sobrenaturais dos gringos, que os mandaram para a repescagem, a “Tri” era hoje um time cheio de marcas, retranqueiro, brigado com seus maiores craques, Chicharito e Giovanni dos Santos. Os Camaronenses, depois de terem começado a sua caminhada com uma manobra “fluminística” que eliminou o Togo e terem se reconciliado de vez com Eto´o jogava com leveza, logo arrebatando os corações potiguares.

O jogo travado em seu meio de campo e cheio de faltas parecia rumar para o fim, quando ele, Samuel Eto´o achou um espaço após uma finta desconcertante no veterano Rafa Márquez e fuzilou; Camarões 1x0 México. Fim do primeiro tempo.
Intervalo de jogo e foi anunciada a entrada do mascarado Chicharito. Poucos aplausos entre os mexicanos.

Começa o segundo tempo e o que se vê é uma partida de um ataque versus uma defesa. Os africanos avançam como guerreiros, enquanto os mexicanos totalmente retraídos tratam de evitar o pior. O travessão mexicano é impiedosamente alvejado, mas pela Nossa Senhora de Guadalupe, permanece inexpugnável. O calor castiga as duas seleções.
Aos 28 minutos do segundo tempo, num rápido contra-ataque, Paul Aguilar toca para Raul Jimenez, que avança e tabela com Peralta, que bate sem defesa para o goleiro camaronense. Empate em 1x1.

Reiniciado o jogo e reiniciado o massacre camaronense, impiedoso. Idrissou, Eto´o, Emanah, parecem gladiadores arremetendo contra uma defesa mexicana perto da exaustão, até que aos 42 do segundo tempo, o inacreditável.....Peralta tocou para Pena, que viu Chicharito livre e lhe mandou um passe açucarado....la “arvejita” passou batido por Song num lapso de segundo e tocou na saída do goleiro Assembe, para de maneira fantasmagórica virar o jogo para México 2x1 Camarões. Estava finalizado o jogo.
Imparcial é o raio que o parta e eu que já não conseguia conter as minhas lágrimas, fui prontamente acolhido por um bando de mexicanos incrédulos, exaltados, também com lágrimas nos olhos, ao que disse a um deles: “ustedes no decian siempre que “jugavan como nunca y perdian como siempre”, bien, hoy ustedes no jugaran nada y ganaran como nunca”. Abracei fortemente a todos e me fui. Arriba México Cabrones!!!

Resultado final : México 2x1 Camarões (Peralta, Chicharito e Eto´o) . Arena das Dunas. 13.06.2014

Álvaro Larrabure Costa Corrêa

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

UM CORPO QUE CAI


Fuga espetacular de Paulo Henrique. Carro do suposto assassino de Oscar no meio do Tietê, vazio. Vivo ou dissolvido nas águas do rio? Ausência do técnico na coletiva. Paradeiro desconhecido. Presidente da Confederação estatelado na Rua Victor Civita. Internado.
Os acontecimentos prenunciavam uma partida sob clima pesado no Castelão. Daí minha surpresa ao ver a seleção jogar de forma tão leve e prazerosa. As ausências acrescentaram muito ao time. A torcida uma festa só. Contra todas as probabilidades, até eu estava feliz e sereno. O México tampouco ficou de fora do clima alvissareiro. Conjunção tão inusitada de fatores levou a um não menos inusitado placar: Brasil 5 x 5 México. Vaga, só no terceiro jogo. Veloz para o aeroporto. Bom-humor em Fortaleza não dura muito.


___________

Ps: Notas de rodapé, por Amaral.

 Brasil 5X5 México - (não temos a ficha técnica dos goles... foi tão fantástico que ninguém anotou) - 17.12.2014 - Castelão, Fortaleza.

Alguém, um dia, escreveu sobre o Zécons, o autor deste relato surrealista do prélio da canarinho...:
http://osbolonistas.zip.net/arch2005-11-01_2005-11-30.html#2005_11-17_17_46_48-100696263-29

Alguém impedido ou a vaca foi para o brejo?


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Se foi só isso... tá bom...


Estou aqui. Quarto de hotel. Olhando a espátula do ventilador. E aquele barulhinho.... trac...trac...traaaac....trac....traaaac... turk. E de novo. Não sei como vou sair daqui, confesso. Tudo o que eu comi de torresmo, tudo o que eu tomei de Salinas e afins, tudo o que eu gritei, dancei, pulei. Sim, até sambei ao fim da noite quebrando pratos. Pratos...

No canto, nestas cômodas que tem bíblia, jaz um copo de sal de fruta. Quando o resto do pó fica ali a te denunciar. A golpear com lâminas de retrogosto. Só sei que quando percebi encontrei o tíquete do bolso, o tíquete do jogo. Tinha ido a Beagá para Grécia e Colômbia. Tinha ido, a bem da verdade, rememorar idas e vindas. Tinha ido ao torresmo, santo. Confesso outra cousa: assim como Gil e Dominguinhos, não sei amar sem torresmo. E quando esses exageros se misturam, ainda mais numa copa do mundo, há que dar relevo ao óbvio: algo sairá em ressaca. E cerveja gelada...

Quase perco a hora. Também, que raios duplos fazem alguém imaginar um jogo as treze horas, treze horas... E estava eu numa conversa boa, de bar, que fui ficando, ficando, ficando. Mas, repentinamente, sei lá como, Mineirão. Estava lá. Lotado. 

O de sempre: Vaias para todas as autoridades presentes. E uns gritos mais pesados aqui e ali contra um outro que aparecia no telão. Mas o estádio foi literalmente sacudido – e, sim, o bom Mineirão voltou a tremer como nas tardes de Reinaldo ou de Nelinho – quando a cabeleira santa de Valderrama surgiu nas telas. Valderrama descobriu que sua popularidade por aqui é capaz de muito. Do melhor sítio da internet sobre futebol, “Impedimento”, que tem ele estampado nas logos. E de centenas de camisetas espalhadas pelo estádio. Alias, do lado de fora, camelôs vendiam a camiseta por módicos reais. E os mineiros, daquele jeito deles, souberam fazer o espetáculo: do lado de fora, derrotada a Fifa, as lanchonetes de comida rápida, os refrigerantes, os patrocinadores, o diabo a quatro. E dentro do Mineirão.... um trem doido.

A torcida colombiana era maior e mais ruidosa. Poucas bandeiras da Grécia. Evidências geográficas e econômicas. E a Colômbia tinha Falcão Garcia, candidato a craque da copa. E ele foi logo dando as credenciais: Bola na área e num sem pulo de cinemascope um petardo varava a cidadela grega. Um a zero. Não deu tempo para nada, um golpe no fígado.

Mas a retranca grega era digna. E o tik-tak dos colombianos... daquela beleza que não leva a nada... enjôo. Sono. Toque daqui, toque dali. Samaras, empate. Sempre ele, numa bola que sobrou de um chutão da defesa. Falcão, outro golaço. Desta feita, senhoures e senhouras, o cidadão conseguiu desvencilhar-se de Sócrates, Platão e todos os filósofos juntos, com um toque de letra. No ângulo. Fim do primeiro tempo e o gol espetacular deixou todos de queixo. Caídos.

Volta o segundo tempo e aquele filme de sessão da tarde, repetido, mas em castelhano ou portunhol brabo. E Jackson Martinez, do Porto, acabou fazendo um gol espírita, marcando o três a um, quando a retranca grega dava sinais de cansaço. A impressão é a de que os colombianos vão passar de fase. Sem muitos sustos. Muito embora, no finalzinho da peleja, o espanto: a Grécia faria o segundo gol, de penalti. E o jogador grego, na comemoração, fingiu quebrar uns pratos na cabeça do treinador português. Foi a senha para o estádio virar uma cantoria louca...

Andam a dizer que o tal jogador pode até ser penalizado pela Fifa. Porque a comemoração desencadeou uma algazarra de proporções colossais... pratos...trac...trac...traaaac....trac....traaaac... turk....

Colômbia 3 x 2 Grécia (Falcão Garcia - 2, Jackson. Samaras e Karaugonis)
Mineirão. Beagá. 14.06.2014 

E quem não conhece, conheça: Impedimento - http://impedimento.org  
 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Os calouros e as meretrizes idosas.




Descendo as escadas de meu avião no Santos Dumont, o mais charmoso aeroporto do mundo suspiro e me pergunto pela centésima vez se aquela é a primeira jornada até a realização de um de meus maiores sonhos: testemunhar uma final de Copa do Mundo entre o escrete canarinho e nuestros hermanos argentinos?

 
Sem tempo para perder, me mandei para o velho Adonis, afinal de contas, o Rio, mesmo no frio é quente. O Benfica, onde o Rio é mais português, fervilhava de gente naquela tarde, e eu, trajado com a minha camiseta do meu querido Rosário Central tratei de me perder numa mistura de carregadores da CADEG (um deslumbrante entreposto de secos e molhados) de folga, velhos frequentadores e um grupo de peladeiros do São Cristóvão, campeão carioca de 1926. Caldeiretas, bagaceiras e bolinhos de bacalhau eram consumidos e eu tentava me lembrar que a minha razão de estar lá era cobrir a estréia da poderosa Argentina contra a estreante Bósnia e Herzegovina, no fim de tarde, no templo-mor do futebol.

 
Com o torpor causado pelo engasgagato português que bebia, flashes vinham à minha cabeça sobre esquadrões argentinos repletos de heróis que eu já tinha visto em outras copas, que tinham me emocionado e que num lapso de segundo.....tinham naufragado. Maradona, Caniggia, Redondo, Verón, Saviola, Aimar, Simeone, Batistuta, entre outros, sempre eram soberbos, divinos, até serem derrubados por algo aparentemente inexplicável.

 
O panorama agora era bem menos alentador; Messi era basicamente toda a esperança de um time que tinha o inseguro Romero no gol, a defesa sendo sustentada pelo jurássico Coloccini, um meio de campo razoável com Mascherano, Gago, Di Maria e Pastore e no ataque, ele, Lionel e o vascilante Kun Aguero.

 
Quando o cheiro da bagaceira já era insuportável, tomei o rumo do velho Maraca com direito a uma paradinha na Salete para comer uma empadinha de camarão e tirar a nhaca. Entrando no bar escuto uma saudação “canalla cagón”, bradada por um argentino imenso com a camisa do Boca no meio de um bando enlouquecido. O susto foi aquietado por um largo sorriso e um abraço caloroso. Agora eu era parte de uma trupe que ia junta para o estádio.

 
Uma massa humana bizarra se formava e se transformava numa mancha imensa na frente do Maraca. De todas as partes surgiam camisetas e adereços de Boca, River, Independiente, Racing, Quilmes, Vélez e muitos outros times, criando um mosaico humano fabuloso, que cantava musicas como mantras.

 
Dentro do estádio, uma curiosidade natural com a seleção da Bósnia e Herzegovina, a única seleção caloura deste mundial; a seleção de um país surgido após uma guerra genocida ainda na década de 90 e que por isso povoa mais o imaginário de todos com sua dor do que com a sua beleza.

 
Começa o jogo e o que se vê é uma seleção Bósnia marcando de maneira muito forte a seleção Argentina, que permanece encurralada por 20 minutos em seu campo de jogo até que em uma troca de passes entre Messi e Gago, Messi deixa Di Maria livre para fazer Argentina 1x0. Mal recomeça o jogo e, numa arrancada brusca, Lionel sente uma forte fisgada e tem que ser substituído por Lavezzi. Pressão fortíssima da Bósnia até que num cruzamento perfeito, Dzeko sobe mais do que Zabaleta e empata o jogo, 1x1. Comemoração tímida da maior parte do estádio, brasileira e uma centena de bósnios.

 
Rola o segundo tempo e a Argentina, mesmo sem Lionel, com o alento de sua torcida, toma conta do jogo. Mascherano marca duramente Pjanic e a bola rola de pé em pé no meio campo platino, evocando por alguns instantes os espíritos de Lousteau, Di Stéfano e Pedernera. Faltava, entretanto o gol, a finalização, o cara. Nessa hora, num lance apoteótico, recebendo a bola de Lavezzi, Aguero entortou dois defensores e fuzilou a meta bósnia marcando 2x1 para a Argentina. Quatro minutos mais tarde, aproveitando uma bola mal espalmada pelo arqueiro bósnio, o mesmo Kun tocou com tranqüilidade para sacramentar o resultado final de 3x1 e, em seguida se dirigiu para a tribuna em que estava seu ex-sogro e desafeto Maradona, fazendo sinal de silêncio. O jogo, no fundo tinha sido mequetrefe, mas a ordem natural dos fatos não tinha sido mexida.

 
Final do jogo e a torcida cantava a plenos pulmões, parecendo nem se lembrar mais da tíbia situação de seu maior ídolo, Messi. O mantra tomava conta do Maracanã e, enquanto os brasileiros iam embora, acabei me encontrando com o meu desconhecido amigo com a camisa do Boca e sua turma. Descobri que se chamava Juan Domingo e combinamos de ir festejar na feira de São Cristóvão.

 
A noite já corria, o forró tocava com força, os argentinos cantavam, bebiam e enfiavam a cara na cachaça, quando eu percebo a chegada de dez sujeitos vestidos com a camisa do Vasco da Gama que, pasmem, se juntaram à bagunça e conosco festejaram. O mundo, meus amigos, tem jeito sim.



Resultado final : Argentina 3x1 Bósnia e Herzegovina 
(Di Maria, Aguero, duas vezes e Dzeko) . Maracanã. 
15.06.2014

Álvaro Larrabure Costa Corrêa
(Um dia poemaram para nosso Ogrito, lá nos Bolonistas... Um cordel tão lindo quanto o cara: http://osbolonistas.zip.net/arch2005-11-01_2005-11-30.html#2005_11-18_16_52_04-5048921-29  

Anotações em Guardanapo sobre Escretes Possíveis


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Sobre caranguejos e vitórias.



Sobre caranguejos e vitórias.

Cheguei ontem em Fortaleza, capital que não conhecia, um curto discurso bem ensaiado contra a pergunta do taxista:

“Para qual hotel, senhor?”
“Nada de hotel: caranguejo”.
“Opa, qual restaurante, senhor?”
“Algum bom, barato e feio”.

Não me arrependi: passei minhas primeiras horas em terras de Iracema no Marcão das Ostras, atacando a golpes de martelo infortunados crustáceos.

Porque, senhores, comer caranguejo é a ação mais brutal, constrangedora e prazerosa que podemos fazer vestidos. Marretinha em punho, desferindo pauladas e lançando rubras cascas pontiagudas contra vizinhos de mesa; sugando feito um tamanduá disfuncional a parca e deliciosa carne branca do interior de perninhas cabeludas; abrindo a cabeça do bicho e devorando, misturada à farinha, uma gosma marrom, meio gordura meio cocô. É talvez a única refeição em que temos de matar – com crueldade indescritível – o animal depois de cozido.

Acredito que se os extraterrestres, ao invadirem a terra em busca de tesouros escondidos, toparem com um camarada atacando um caranguejo, voltam imediatamente, aterrorizados.

Mas não é pelos caranguejos que estou aqui nesta linda capital, onde todos os nativos – à exceção dos comediantes profissionais – são engraçadíssimos. O que me traz aqui, senhores, é a peleja entre Uruguai e Costa Rica, válida pelo inacreditável grupo D desta Copa.

A euforia que cerca a seleção celeste, sensível em cada boteco, em cada banca de jornal, em cada padaria, na calçada que beira Iracema, ultrapassa a maiúscula campanha de 2010 ou a fase atual de Cavani. A euforia ultrapassa esta Copa e o próprio futebol. Ultrapassa o fantasma de 50. A euforia, senhores, chama-se Mujica.

A simples possibilidade de Pepe comparecer ao jogo, anunciada com alarde pela imprensa, fez a cidade ferver. Todos querem conhecer o velho guerrilheiro, tocar aquela aura que une a bravura desmesurada à doçura dos que já sabem o caminho certo. O homem, que vem transformando de forma tão linda seu pequeno país, também tem mantido vivas as hortinhas de sonhos de que há muito não cuidávamos.

Entonces, no dia do jogo, lá estava eu, a caminho do Castelão: uma leveza unia a multidão que caminhava a pé. Jovens senhores esquerdistas de camisetas vermelhas; jovens felizes de camisetas coloridas de amarelo, verde e preto; senhores austeros de camiseta azul. Uma leveza nos unia.

E o jogo não decepcionou.

Suárez e Cavani experimentam de fato um momento mágico. Diego, um capitão que empresta coragem à equipe a cada grito, chutão ou botinada. Do lado costarriquenho, a dignidade do coadjuvante que entende sua situação e só almeja não aprontar na festa alheia. Ruiz não jogou mal, assim como Bolaños ou Saborío. Jogaram bem, mas não alcançavam a dimensão de sonho que aquela partida exigia.

E enquanto procurávamos por Pepe na audiência, a Celeste marcava seus três primeiros gols nesta Copa. O craque do Liverpool marcou um; o do PSG, os outros dois - desde já se inscrevendo para o título de artilheiro da competição.

A Celeste poderia ter marcado outros tantos. Poderia, teve chances. Mas não o fez. Os 3 X 0 foram suficientes para mostrar que Itália e Inglaterra têm com o que se preocupar.

E mostraram ainda mais: que é importante avançar. Que é fundamental a vanguarda. Mas que também é importante dosar o ritmo da luta, de forma a garantir cada conquista com a benção popular. É a única forma de não acabar cedendo ao atraso e comprometendo as vitórias que importam. O avanço inegociável. A benção da rua.

Soubemos mais tarde que Pepe não compareceu à partida. Soltou uma daquelas suas curtas e mortais tiradas sobre o preço dos ingressos. E foi visto, com sua adorável Lucía, jantando na Palhoça do Caranguejo. Não usava o martelo, mas aquele alicate que permite dosar cuidadosamente a força.

Demetrius Cruz

Uruguai 3 X O Costa Rica (Edinson Cavani, duas vezes, e Luis Suárez)
Fortaleza, 14.06.14