sexta-feira, 11 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Trintézimo


São pequenos rituais que por muitas e inúmeras vezes fazem a vida da gente ter uma dimensão gigante, maior que tudo. Moramos, quem sabe, na contradição.

Tomo café no mesmo local. Na verdade em três locais. Vou mudando conforme a vontade da broa ou do pão de queijo, se chuva ou se sol, se chegada, almoço ou partida. Tomo mais de um expresso por dia. Esta rotina faz com que em dias funestos, quando aquele prazo horroroso, aquela notícia ruim que terei que dar para um cliente, aquela falta de vontade de ver e ler processos, eu consiga respirar, encontrar calma, apreço pelas cousas. É este apreço, desconfio, que mantém outras rotinas possíveis.

Gosto de fazer minha loteria, minha fézinha, todos os dias. E se não faço fico mal, passado, injuriado. É como não tomar café da manhã ou como deixar de dormir do mesmo lado da cama - só faz bem se foi esbórnia. Quase sempre na mesma lotérica, perto do escritório. Os mesmos jogos, mesmos números, mesmo bicho. Na contravenção deixei de apostar, muito pela preguiça de aprender o milhar e muito mais por uma pseudo culpa militante, quase cristã, das consequências do negócio ilícito. Mas ainda hoje sei o nome da apontadora, a mesma, há anos, no mesmo local, na frente escancarada da galeria. Na lotérica sabem o meu nome, fazem fiado, apostam por mim nos bolões que sempre pago, conhecem o Grande e o Pequeno, sabem que fui casado, que me divorciei, que casei ajuntado de novo, que time torço, quando é segunda feira maneiram nas conversas e quando é sexta me desejam "juízo", algo que recomendo todos os santos dias para elas. São mulheres, exceto o filho do dono, que trabalham na lotérica.

Tem um louquinho que sempre converso. Um homem elegante, negro, forte, com aqueles cabelos lindos que só os negros tem. Veste trapos, mas sempre bagunçadamente em ordem e com uma estranha combinação, sempre melhores e mais bonitas que as minhas gravatas de protozoário. Mora em algum lugar do centro, dizem que num estacionamento, dizem que ficou assim por causa de uma desilusão amorosa e sei que o filho dele, um rapaz também bonito, as vezes pergunta por ele e que respeita a opção do pai - mas isso ouvi dizer, não sei. Gosto dele, do louquinho. Também não sei se ele sabe quem eu sou, se lembra de mim, se me reconhece. Mas me chama toda vez de doutor, eu o corrijo, digo que doutor é médico, ele sorri, se diz de escorpião e joga na quina, sempre o mesmo volante amassado - como os meus. É amável, nunca o vi numa descortesia ou numa brabeza, apesar das gentes que desviam dele, que o olham torto, medo ou repulsa. Carrega milhares de tranqueiras em sacos de lixo, com papéis, formulários, embalagens e lembranças de um tempo distante, talvez. As vezes pago um café, quando o encontro não na fila da lotérica, mas no balcão do cafezinho, mas ele sempre está com pressa e sorrindo. Veste sempre calças coloridas, pelos retalhos diversos: "Ele mesmo que costura", já ouvi dizerem.

Ele sabe que os bancos não recebem mais contas de luz de quem não é correntista e diz isso com aflição, a única que percebo em sua voz: "aumenta a fila aqui na lotérica." Nunca conversamos de futebol. Mas hoje, depois do habitual "deus te abençoe" e "boa sorte no joguinho" - no que retribuo, "no seu também" - ele mandou de bate pronto: "perder de sete é muito, muito ruim". Sorrimos.

Já tinha tomado meu café e caminhando de volta ao escritório, entretanto, matutei sozinho e falei diverso: "Não sei, depende se virar rotina...".



Um comentário:

  1. Que o louquinho ganhe na loteria. E você na Mega Sena. Gostei!

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