Mostrando postagens com marcador Grupo D. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Grupo D. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 7 de março de 2014

Os contrarrevolucionários


Quem ama futebol assiste a centenas de jogos por ano procurando um chapéu no zagueiro, seguido de um chute certeiro no meio do gol, como aquele na final da Copa de 58. Ou uma corrida desenfreada rumo à área adversária em que volantes, beques e laterais vão sucumbindo, um a um até o próprio goleiro cair no chão e ver a bola entrar, como aconteceu na Copa de 86. Ou tentam encontrar o time do século em meio a camisas laranjas na década de 70 e amarelas em 82. Alemães e italianos podem ir para tantas finais e ficar com quantos títulos conseguirem, mas os protagonistas daquela Copa das Copas foram o meio-campo de Cerezzo, Falcão, Zico e Sócrates. Afinal, foram eles que mostraram uma nova visão de mundo a partir do futebol. Um mundo em que a criatividade é a regra e cada jogador é um universo de infinitas possibilidades. Laterais podem ser atacantes e também zagueiros. Zagueiros podem ser pontas e armadores. Armadores também podem ser volantes e centro-avantes. E atacantes podem ser meias e laterais. O meio-campo se dissipa, adquire várias formas. Ora, é quadrado; ora, é triângulo ao lado de uma reta. Pentágono assimétrico. Losango reto. Trapézio isósceles. Um time assim é imprevisível. Tanto que pode até perder.
 
Vim até Manaus para um imprevisível jogo de coadjuvantes. Vão me repreender e dizer que Itália e Inglaterra sempre chegam com alguma pinta de favoritos, de medalhões, de times de ponta. Mas, para mim, são coadjuvantes, pois não revolucionam o futebol, a não ser naquelas ocasiões em que eliminam justamente os que tendem a revolucioná-lo. São times do grupo da contra-reforma. Ao lado do Uruguai, outro pródigo nesse quesito.

Nessa Copa, ambos foram escanteados até Manaus, longe dos grandes centros urbanos. Enquanto os italianos estão hospedados num barco no meio do Rio Negro, os ingleses contam com Mick Jagger, o maior pé frio do último Mundial.

Quando o jogo começa, ambas as equipes tentam trair as minhas ideias. Os italianos abandonaram o catenaccio – aquela irritante formação defensiva feita especialmente para travar os adversários e, em consequência, o próprio jogo. Os ingleses deixaram de lado o tradicional chuveirinho na área. Agora, as jogadas britânicas são minuciosamente trabalhadas pelos meias Gerrard e Lampard em passes rasteiros para Rooney e Walcott. Logo no primeiro lançamento rasteiro de 20 metros, Walcott corre atrás do zagueiro de azul e desvia a bola do goleiro Buffon. Ela bate na trave e toca na rede do outro lado, o que tiraria o primeiro zero do placar se o bandeirinha tunisiano não marcasse impedimento.

Os ingleses reclamam, assim como um insatisfeito Mick Jagger. Você não pode ter sempre aquilo que você quer.

Os italianos respondem com pragmatismo. O zagueiro Chielini dá um chutão da defesa. A bola bate uma vez no chão e outra nos pés de Montolivo que manda um “chapéu” para Balotelli. Sozinho, na pequena área, ele testa de ombro. Bola na trave.

O “Ohhh” no estádio só vira gol aos 42 minutos do 1o tempo. Até lá, o que se vê é um jogo pegado em que as duas potências da bola querem a glória a qualquer custo.  Dois cartões amarelos para cada lado e pedidos de disciplina do árbitro tailandês, após uma sequência de carrinhos no círculo central.

Jogo truncado, alguém tem a luminosa ideia de arriscar de fora da área. Lampard manda um balaço rasteiro, Buffon se estica e defende. A bola fica solta, quicando na perpendicular da pequena área. Rooney se antecipa ao zagueiro Barzagli  para tocá-la de joelho rumo ao fundo do gol. 1 a 0.

Foi preciso o segundo tempo para os coadjuvantes de 82 alcançarem alguma condição de protagonistas.  E o fizeram através de Pirlo, o único jogador sem posição em campo. A ordem de Pirlo é ir onde a bola está, pedí-la aos companheiros e distribuir passes certeiros, armando jogadas para a Azzurra.

Pirlo serviu Giacherinni e ele bateu por cima do gol. Depois, lançou para El Shaarawi e ele mandou no ângulo da ambulância da Samu que fica atrás da meta inglesa.

Então, Pirlo desistiu de passar. Pegou a bola no meio-campo e partiu em diagonal rumo à área adversária. Driblou Milner com certa facilidade, pois esse não resistiu ao Xis-Tucumã que serviram na visita ao Rio Negro. Já Carrick foi humilhado e ficou de bunda no chão, quando Pirlo fingiu que lhe daria a bola para, em seguida, recolhê-la aos seus pés. Na sequência, um desesperado Gerrard se esticou todo no momento em que Pirlo ia chutar. O italiano recolheu a bola novamente, fazendo o adversário deslizar até a linha de fundo. E quando todos pensavam que Pirlo ia mesmo dar um chutão para o gol, ele mandou uma cavadinha. A bola foi alta, fazendo o goleiro inglês Joe Hart se esticar todo. Os dedos rentes ao travessão onde ela quica caprichosamente. O goleiro vai ao chão e vê, desesperado: Balotelli pronto para pegar o rebote. Novamente, Balotelli poderia testar a bola para o gol, mas não o faz. Poderia mandar de ombro, mas deixa essa ideia para lá. Poderia dar um chutão furando a rede, no entanto, evita. Mario estica o umbigo e leva o estádio ao delírio.  Mick rasga o seu ingresso e o jogo termina 1 a 1.
 

Manaus, 14 de junho de 2014.
Inglaterra 1x1 Itália
(Rooney de joelho aos 42 minutos do 1o tempo e Balotelli de umbigo aos 42 minutos do 2o tempo)

Texto do jornalista Juliano Basile. Jogador de botão. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Perfume de Gardênias


Desde janeiro deste ano, este caos. A média de temperatura é de trinta graus. Trinta. E se é média, teve dia de quarenta graus na sombra. Ou mais. São Paulo derrete a céu aberto. E o pior, anos de incúria, alguma desorganização, muita falta de planejamento e um azar monstruoso fazem a cidade, a região metropolitana, o estado, viverem o racionamento de água constante. Como não chove, não há nos reservatórios mais nada além de pó. E terra. Um calor tenebroso, nauseabundo. As ruas cheiram perfumes vencidos. As pessoas se jogam em piscinas de clubes, de motel, de casas para tomarem banho. Nunca se vendeu tanto cloro, as lojas já acusam falta de mercadoria e o medo, o pânico, o transtorno é faltar ainda mais higiene nesses novos banhos públicos.


A prefeitura comprou água de estados vizinhos e vez por outra abastece, aos esguichos, ruas e praças da cidade. Até a praça Buenos Aires, no cheiroso e limpinho bairro de Higienópolis, recebeu uma dessas duchas públicas. O ex presidente FHC conclamou os pares do bairro para o banho, com medo de baixa adesão. Porque simplesmente não há mais água nas torneiras quatrocentonas. É o caos. O presidente vestiu sunga e junto com o prefeito, numa inédita união entre petistas e tucanos, tomou uma duchona alegre. E o calor, continua. Intenso, inclemente, sufocante. E o cheiro de mijo pela cidade se espalha e está natural, aceito, brisa.


É neste clima que a copa chegou. Sim, é verdade que tentaram adiar os jogos, jogar sal nas nuvens, encher o sistema Cantareira com água transposta do mar, do Rio Paraguai, do Pantanal. O medo, justificado, era a fedentina tomar conta da cidade de forma que a imagem internacional da cidade, do estado e do país fossem para o buraco. Iam, de fato. Mas havia solidariedade internacional: chegavam galões de água de todo mundo com destino a paulicéia.


As autoridades resolveram manter os jogos da copa. Afinal, é o Brasil ame ou deixe-o, a nova pátria mãe gentil. Os protestos de junho de 2013? Sinceramente, em fevereiro, até o carnaval, foram intensos. Mas a falta dágua deu um cecê monstro a qualquer tipo de manisfestação coletiva. O calor abrasivo impedia multidões. Vendia-se mais e mais daqueles guarda-chuvas chineses, para virarem sombrinhas. As pessoas ficavam em casa, quase sempre nuas. A cidade vivia um boom de gente pelada pelas ruas, o que atraía multidões de novos turistas. Mas era triste o contraste se pensarmos que não havia mais água na cidade. Era uma nudez fora de erotismos. Pensando assim, a cidade estava até mais humana, solidária, sem máscaras.


Era este o clima para Uruguay e Inglaterra no estádio do Corínthians. Os ingleses eram apupados em todas as esquinhas, desde a chegada ao hotel na marginal. O motivo? Eles trouxeram água inglesa e só comiam produtos lavados ou feitos com esta água. Imagina o quiprocó, o nacionalismo brasuca... era como se os ingleses voltassem a ser a metrópole usurpadora de outrora e não a tia senil dos Estados Unidos. Por isso os uruguaios deitavam e rolavam. Muitos brasileiros vendiam ingressos no câmbio paralelo, porque pouca gente tinha coragem para enfrentar mutidões nesse calor horrendo e sem água na cidadona. E foi uma invasão oriental. Camisas do Peñarol, do Nacional, do Danúbio, do Cerro, da Celeste. Os uruguaios, de banho tomado, estavam em casa. Itaquera era Montevidéu.


Aos dois minutos de jogo, Forlan. Aos oito, Suarez. E nas comemorações o uruguaio fez troça, bebendo uma garafinha de água brasileira como a dizer para os ingleses “imperialistas de mierda”, “não solidários”. Aos dezoito, a iminência de uma goleada cósmica: Cavani.


O fato é que os esnobes ingleses, em campo, iam sendo derrotados. A premier league não poderia conviver com aquele furdunço. De repente, chove. Uma chuva de anos. Pela cidade pipocam rojões, saramaleques, há danças da chuva. Há gentes peladas nas ruas, dos Jardins aos mais distantes bairros da periferia. As notícias davam conta de alagamentos, mas que as pessoas se banhavam, de sabonete e tudo, nas águas torrenciais. O jogo foi paralisado.


Voltaram a jogar no dia seguinte, só. Sim, a copa de todas as copas já tinha sua página de Noé. Na continuação do jogo os ingleses fizeram um gol, mas Lugano calou a rainha numa cabeçada monumental.

O calor? Desaparecera, por completo. Agora temiam neve.... 

Uruguai 4 x 1 Inglaterra, Itaquerão, 19/06/2014 (Forlan, Suarez, Cavani e Lugano; Gerrard) 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Sobre caranguejos e vitórias.



Sobre caranguejos e vitórias.

Cheguei ontem em Fortaleza, capital que não conhecia, um curto discurso bem ensaiado contra a pergunta do taxista:

“Para qual hotel, senhor?”
“Nada de hotel: caranguejo”.
“Opa, qual restaurante, senhor?”
“Algum bom, barato e feio”.

Não me arrependi: passei minhas primeiras horas em terras de Iracema no Marcão das Ostras, atacando a golpes de martelo infortunados crustáceos.

Porque, senhores, comer caranguejo é a ação mais brutal, constrangedora e prazerosa que podemos fazer vestidos. Marretinha em punho, desferindo pauladas e lançando rubras cascas pontiagudas contra vizinhos de mesa; sugando feito um tamanduá disfuncional a parca e deliciosa carne branca do interior de perninhas cabeludas; abrindo a cabeça do bicho e devorando, misturada à farinha, uma gosma marrom, meio gordura meio cocô. É talvez a única refeição em que temos de matar – com crueldade indescritível – o animal depois de cozido.

Acredito que se os extraterrestres, ao invadirem a terra em busca de tesouros escondidos, toparem com um camarada atacando um caranguejo, voltam imediatamente, aterrorizados.

Mas não é pelos caranguejos que estou aqui nesta linda capital, onde todos os nativos – à exceção dos comediantes profissionais – são engraçadíssimos. O que me traz aqui, senhores, é a peleja entre Uruguai e Costa Rica, válida pelo inacreditável grupo D desta Copa.

A euforia que cerca a seleção celeste, sensível em cada boteco, em cada banca de jornal, em cada padaria, na calçada que beira Iracema, ultrapassa a maiúscula campanha de 2010 ou a fase atual de Cavani. A euforia ultrapassa esta Copa e o próprio futebol. Ultrapassa o fantasma de 50. A euforia, senhores, chama-se Mujica.

A simples possibilidade de Pepe comparecer ao jogo, anunciada com alarde pela imprensa, fez a cidade ferver. Todos querem conhecer o velho guerrilheiro, tocar aquela aura que une a bravura desmesurada à doçura dos que já sabem o caminho certo. O homem, que vem transformando de forma tão linda seu pequeno país, também tem mantido vivas as hortinhas de sonhos de que há muito não cuidávamos.

Entonces, no dia do jogo, lá estava eu, a caminho do Castelão: uma leveza unia a multidão que caminhava a pé. Jovens senhores esquerdistas de camisetas vermelhas; jovens felizes de camisetas coloridas de amarelo, verde e preto; senhores austeros de camiseta azul. Uma leveza nos unia.

E o jogo não decepcionou.

Suárez e Cavani experimentam de fato um momento mágico. Diego, um capitão que empresta coragem à equipe a cada grito, chutão ou botinada. Do lado costarriquenho, a dignidade do coadjuvante que entende sua situação e só almeja não aprontar na festa alheia. Ruiz não jogou mal, assim como Bolaños ou Saborío. Jogaram bem, mas não alcançavam a dimensão de sonho que aquela partida exigia.

E enquanto procurávamos por Pepe na audiência, a Celeste marcava seus três primeiros gols nesta Copa. O craque do Liverpool marcou um; o do PSG, os outros dois - desde já se inscrevendo para o título de artilheiro da competição.

A Celeste poderia ter marcado outros tantos. Poderia, teve chances. Mas não o fez. Os 3 X 0 foram suficientes para mostrar que Itália e Inglaterra têm com o que se preocupar.

E mostraram ainda mais: que é importante avançar. Que é fundamental a vanguarda. Mas que também é importante dosar o ritmo da luta, de forma a garantir cada conquista com a benção popular. É a única forma de não acabar cedendo ao atraso e comprometendo as vitórias que importam. O avanço inegociável. A benção da rua.

Soubemos mais tarde que Pepe não compareceu à partida. Soltou uma daquelas suas curtas e mortais tiradas sobre o preço dos ingressos. E foi visto, com sua adorável Lucía, jantando na Palhoça do Caranguejo. Não usava o martelo, mas aquele alicate que permite dosar cuidadosamente a força.

Demetrius Cruz

Uruguai 3 X O Costa Rica (Edinson Cavani, duas vezes, e Luis Suárez)
Fortaleza, 14.06.14