segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Perfume de Gardênias


Desde janeiro deste ano, este caos. A média de temperatura é de trinta graus. Trinta. E se é média, teve dia de quarenta graus na sombra. Ou mais. São Paulo derrete a céu aberto. E o pior, anos de incúria, alguma desorganização, muita falta de planejamento e um azar monstruoso fazem a cidade, a região metropolitana, o estado, viverem o racionamento de água constante. Como não chove, não há nos reservatórios mais nada além de pó. E terra. Um calor tenebroso, nauseabundo. As ruas cheiram perfumes vencidos. As pessoas se jogam em piscinas de clubes, de motel, de casas para tomarem banho. Nunca se vendeu tanto cloro, as lojas já acusam falta de mercadoria e o medo, o pânico, o transtorno é faltar ainda mais higiene nesses novos banhos públicos.


A prefeitura comprou água de estados vizinhos e vez por outra abastece, aos esguichos, ruas e praças da cidade. Até a praça Buenos Aires, no cheiroso e limpinho bairro de Higienópolis, recebeu uma dessas duchas públicas. O ex presidente FHC conclamou os pares do bairro para o banho, com medo de baixa adesão. Porque simplesmente não há mais água nas torneiras quatrocentonas. É o caos. O presidente vestiu sunga e junto com o prefeito, numa inédita união entre petistas e tucanos, tomou uma duchona alegre. E o calor, continua. Intenso, inclemente, sufocante. E o cheiro de mijo pela cidade se espalha e está natural, aceito, brisa.


É neste clima que a copa chegou. Sim, é verdade que tentaram adiar os jogos, jogar sal nas nuvens, encher o sistema Cantareira com água transposta do mar, do Rio Paraguai, do Pantanal. O medo, justificado, era a fedentina tomar conta da cidade de forma que a imagem internacional da cidade, do estado e do país fossem para o buraco. Iam, de fato. Mas havia solidariedade internacional: chegavam galões de água de todo mundo com destino a paulicéia.


As autoridades resolveram manter os jogos da copa. Afinal, é o Brasil ame ou deixe-o, a nova pátria mãe gentil. Os protestos de junho de 2013? Sinceramente, em fevereiro, até o carnaval, foram intensos. Mas a falta dágua deu um cecê monstro a qualquer tipo de manisfestação coletiva. O calor abrasivo impedia multidões. Vendia-se mais e mais daqueles guarda-chuvas chineses, para virarem sombrinhas. As pessoas ficavam em casa, quase sempre nuas. A cidade vivia um boom de gente pelada pelas ruas, o que atraía multidões de novos turistas. Mas era triste o contraste se pensarmos que não havia mais água na cidade. Era uma nudez fora de erotismos. Pensando assim, a cidade estava até mais humana, solidária, sem máscaras.


Era este o clima para Uruguay e Inglaterra no estádio do Corínthians. Os ingleses eram apupados em todas as esquinhas, desde a chegada ao hotel na marginal. O motivo? Eles trouxeram água inglesa e só comiam produtos lavados ou feitos com esta água. Imagina o quiprocó, o nacionalismo brasuca... era como se os ingleses voltassem a ser a metrópole usurpadora de outrora e não a tia senil dos Estados Unidos. Por isso os uruguaios deitavam e rolavam. Muitos brasileiros vendiam ingressos no câmbio paralelo, porque pouca gente tinha coragem para enfrentar mutidões nesse calor horrendo e sem água na cidadona. E foi uma invasão oriental. Camisas do Peñarol, do Nacional, do Danúbio, do Cerro, da Celeste. Os uruguaios, de banho tomado, estavam em casa. Itaquera era Montevidéu.


Aos dois minutos de jogo, Forlan. Aos oito, Suarez. E nas comemorações o uruguaio fez troça, bebendo uma garafinha de água brasileira como a dizer para os ingleses “imperialistas de mierda”, “não solidários”. Aos dezoito, a iminência de uma goleada cósmica: Cavani.


O fato é que os esnobes ingleses, em campo, iam sendo derrotados. A premier league não poderia conviver com aquele furdunço. De repente, chove. Uma chuva de anos. Pela cidade pipocam rojões, saramaleques, há danças da chuva. Há gentes peladas nas ruas, dos Jardins aos mais distantes bairros da periferia. As notícias davam conta de alagamentos, mas que as pessoas se banhavam, de sabonete e tudo, nas águas torrenciais. O jogo foi paralisado.


Voltaram a jogar no dia seguinte, só. Sim, a copa de todas as copas já tinha sua página de Noé. Na continuação do jogo os ingleses fizeram um gol, mas Lugano calou a rainha numa cabeçada monumental.

O calor? Desaparecera, por completo. Agora temiam neve.... 

Uruguai 4 x 1 Inglaterra, Itaquerão, 19/06/2014 (Forlan, Suarez, Cavani e Lugano; Gerrard) 

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