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quarta-feira, 11 de julho de 2018

Yuri Gagarin


Acho que foi na TV Cultura de São Paulo - que saudades da TV Cultura... - que acompanhei aos jogos das copas de 70, 74 e 78. Sim, eu nasci em 72, mas o videoteipe é um pouco mais antigo. Eram os jogos transmitidos na íntegra, um pouco antes da hora do macarrão de domingo. Aquele time de 70 era fabuloso, mesmo. Não é lenda, história da carochinha. O homem pisou na lua e a terra, de fato, é redonda.

Clodoaldo, Gérson, Pelé, Tostão, Rivelino e Jairzinho formam uma espécie de absurdo. Os lançamentos, a precisão, a recomposição de jogo e os chutes de Gérson, e se tivesse um prêmio de bola de ouro ou qualquer coisa do gênero na época tenho convicção leonina de que Gérson seria o super trunfo daquela copa, são espécimes de elementais, para quem gosta de estudar o divino no futebol. E Pelé, bom, é Pelé. 

Mas mesmo este timaço, que ganhou todos os seus jogos, não pode ter uma narração absolutamente retilínea, do campo ao caneco. No jogo contra os ingleses, talvez contra o melhor time inglês de todos os tempos, suamos sangue, numa batalha feroz. Banks, o arqueiro inglês, defendeu um testaço de Pelé que faz parte da galeria de imagens para mostrar para extraterrestres para provar as capacidades do engenho humano. Tostão faz um balé na defesa dos saxões antes de achar Pelé no meio da área que merecia feriado, no lance do gol de Jairzinho. E tem a história, pouco contada por aqui, do intervalo, que entre um tempo e outro, num calor de rachar mamona, o time brasileiro esticou sua presença no vestiário até o limite antes de punições, deixando Bobby Moore e companhia debaixo dum sol de escalda pés. Os ingleses choram pelo fair play que não tivemos em todos os documentários até hoje.

Nas semifinais, viramos um jogo contra os uruguaios, o primeiro e último jogo em copa entre as duas seleções depois do Maracanazzo, com direito a uma cotovelada de Pelé, um revide, mas uma cotovelada, que fosse o mundo de hoje com VAR teríamos problemas. Ou não, porque se tivesse VAR não teria a cotovelada, num dilema tostines para discutir em boteco.


E, no jogo final, contra a Itália, pegamos um adversário totalmente destruído por uma semifinal de cinema, que italianos e alemães fizeram dias antes da finalíssima. Quem gosta de futebol tem que assistir aos jogos da copa de 70, mas se tiver que escolher algum jogo que não os do Brasil teria que ser aquela semifinal, num jogo que teve uma prorrogação absolutamente doida, magistral, colossal: jogo normal, 1x1. Prorrogação, Alemanha 2x1. Empate. Virada italiana. Empate. E quando caminhava-se para o fim do mundo, Itália 4x3. Com Beckenbauer jogando toda a prorrogação com uma tala no braço, depois de ter machucado a clavícula! A semifinal exauriu a Itália. Que, provavelmente, não ganharia o jogo final mesmo descansada. Mas não tomaria de quatro, desconfio.

Escrevo estas linhas para desenvolver a tese da semifinal renhida. O time que faz a partida mais dura nas semifinais acaba se desgastando fisicamente, embolando nervos, desgastando-se e, invariavelmente, perde a finalíssima. Lembremos de 82, do jogo entre alemães e franceses em Sevilla, na seminal. Um confronto épico, um 3x3, em partidas lendárias de Rumenigue, pelo lado alemão, e Tresor, pelo lado francês. A Alemanha ganhou nos penais e depois seria derrotada pelos italianos. Lembremos de 98, na semifinal entre Brasil e Holanda, uma partidaça que também foi aos penais fatais, com Taffarel sendo nome de santo. 98, Zidanaço. Na final, França 3x0.

As semifinais são espeto. Os jogos costumam ser feios, burocráticos, cheios de medo, como o Brasil e Suécia de 94 ou o Brasil e Turquia de 2002. Jogos estudados. Quando se tem grandes jogos, não necessariamente pela técnica, a semifinal costuma machucar o vencedor além da conta, tirando o enganche para a partida final...

Nesta copa, ao que tudo indica, é melhor a França colocar as barbas e os moustaches de molho.... Apesar da prorrogação, a Croácia fez a partida onde a diferença técnica entre um time e o outro foi mais evidente desta fase final. Sobrou, num jogo de semifinal. Sim, enfrentou prorrogações, contra dinamarqueses e russos, times que não propunham nada mais do que o empate, mas sobrou nos jogos onde o outro time supostamente se propôs a jogar para vencer. Foi assim com argentinos e foi assim hoje. O jogo croata encaixa nesses jogos. O desgaste físico, evidente. 

Mas, do outro lado, um time que teve que enfrentar argentinos e uruguaios, equipes que tem grau de dedicação ao jogo sanguínea, e os belgas, talvez os de melhor repertório técnico do mundial, não pode se considerar plenamente descansada. E há um certo elixir que sempre surge nesses momentos, que entorpece a razão e infla o salto.


11 de julho, 2018. Croácia e Inglaterra.



  

terça-feira, 10 de julho de 2018

Cruzamento na área


Talvez uma das grandes belezas da vida é rever situações, momentos, vivências e colocá-las em perspectiva, a partir dum ponto depois. Milton Nascimento e Beto Guedes diriam que "nada será como antes, amanhã". E, Cláudio Coutinho, treinador brasileiro em 1978 e muito responsável pelo trio Andrade, Adílio e Zico, no Flamengo dos anos oitenta - o único Flamengo que realmente existiu - criou num linguajar próprio a ideia de "ponto futuro", onde o jogador desenhava a jogada e o passe pensando na posição futura do companheiro de time, jogava a pelota para um lugar no espaço, mas num ponto mais adiantado da história, mudando as possibilidades do jogo e mudando o passado, porque o êxito desta jogada dependia essencialmente da leitura feita a posteriori. A vida, a vida tem o ponto futuro e, o mais bonito, é que este futuro reconstrói, "renarra" e, até, revida.

Olhando para a copa daqui deste fim de terça feira, primeiro jogo das semifinais encerrado, as partidas de Brasil, Bélgica, França, Uruguai, Argentina e México ganham outras cores, outras análises. A partida de hoje, que muitos vão dizer, escrever, beber, repetir, que se tratou de um jogão, uma batalha técnica e tática, foi, na verdade, um jogo infernalmente chato entre duas equipes que ficaram se estudando durante noventa anos, com obviedades de lado a lado, a estagnação das surpresas belgas e a confirmação do amadurecimento do time francês, quase o mesmo que perdeu da Alemanha aqui no Brasil em 2014 e conseguiu a proeza de perder em casa para Portugal, sem Cristiano, uma Eurocopa. Resta, portanto, um gosto amargo. Tivesse o Brasil tido um pouco mais de rebolado contra a Bélgica teríamos chances de bom jogo contra franceses.

Tite falhou no jogo com os belgas. Apesar das escolhas corretas do técnico espanhol do selecionado dos diabos vermelhos, das boas partidas de Kompany, Lukaku, Hazard e De Bruine, Tite errou na manutenção de um esquema de jogo excessivamente compartimentado. A insistência com Gabriel Jesus, como que para provar que era coerente, justo, monogâmico, levou o time a perder uma das três substituições no segundo tempo do jogo. Ao tirar Willian e botar Firmino, o treinador brasileiro teve que trocar Gabriel por Douglas Costa antes dos quinze minutos porque o time não reagia. A manutenção de Willian, a troca de Gabriel, seria a troca mais óbvia. Willian tinha sido peça chave na vitória contra o México, trocando de posições com Neymar, fazendo ações pendulares que tanto faltaram ao time em outros jogos. Gabriel destoava, porque não treinou para ser este jogador pelos lados. E, como centroavante, fez uma copa aquém de suas possibilidades. E, a partida de Neymar e de Coutinho contra os belgas era ruim. Douglas Costa poderia ter entrado no lugar de Neymar, por exemplo, para confundir o time adversário que certamente apostava na manutenção custe o que custar do astro brasileiro. Ou, tirando Coutinho e recuando Neymar para aquela função. Ou, num bumba meu boi final, colocar Douglas, Neymar, Firmino, Coutinho, Lula, Willian, todo mundo para tentar o empate.  Sem contar Paulinho e Fernandinho, que desde o primeiro tempo davam sinais de um desentrosamento perigoso e que o setor precisava de ajustes, ou de Renato Augusto ou de alguma outra opção ali pela volância, essa área nobre do campo que as vezes a gente esquece ou acha desimportante.

Olhando em perspectiva, também, a partida contra o México não foi a beldade que muitos, quase todos, eu incluso, vimos. O México tinha os méritos de ter ganho da Alemanha na estréia, mas tinha o colapso de ter tomado três gols dos suecos... Ou seja, em perspectiva nossos pontos futuros não deram certo.

Isso não quer dizer que foi tudo ruim. A Bélgica escolheu bons caminhos, mereceu a vitória. A partida brasileira poderia ter sido mais inspirada, mas foi uma partida disputada e sem dúvida muito melhor que outras eliminações mais recentes. Neymar fez uma boa copa, não excelente como prometia aquele jogo contra o México. Assim como Coutinho que se apagou na fase eliminatória. Já Miranda e Tiago, mais Tiago, fizeram um copa exemplar. E Casemiro, que tomou um amarelo bocó, é um jogador que se mostrou essencial. O trabalho de Tite foi ruim? Óbvio que não. Mas é evidente que equívocos na convocação, equívocos de leitura de jogo, erro no trato com suas "coerências" não podem ser colocados no escaninho do arquivo morto. Sem contar a chatice napoleônica.

A defesa que Lloris, o arqueiro francês, fez numa bola de um dos belgas no primeiro tempo da partida de hoje ganhou a vaga. Assim como a defesa no jogo do Uruguai. Pode parecer que o imenso goleiro belga contra o Brasil tenha sido decisivo para a eliminação. Talvez. Mas as duas defesas de Lloris, em momentos absolutamente chave dos jogos franceses, mantiveram a cidadela francesa em pé quando o gol definiria outra realidade menos morta para uruguaios e belgas...   

Sem contar que o mesmo Coutinho tinha a jogada imortalizada do "overlapping", quando lateral descia trocando de posição com o ponta, jogada que fez uma falta cascuda para os brasileiros e belgas nesta copa: Jorge Wagner, pela esquerda em profundidade, recebe o passe do Hernanes, vai no bico da grande área e cruza para o gol de Borges.

10 de julho, 2018. França e Bélgica.





  

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Maldito cartão que afastou o Casemiro...


Não adianta querer escapar. Quando se é eliminado de uma copa, o assunto, evidentemente, deve ser a eliminação. Vamos escolher nossos culpados, vamos descer a ripa aqui e ali. Uns serão racionais, extrairão do contexto as boas planilhas e levantarão os problemas, pontuais. Outros, descerão o porrete no treinador e no craque do time, que, a rigor, refugaram num jogo importante. Outros insistirão, ainda, na caça à bruxa, com Fernandinho e Gabriel Jesus com postos bem firmes na fogueira da inquisição. O melhor é, sem dúvida, tentar esfriar a cabeça, abrir uma gelada e fazer a mesa redonda futebol debate, necessária para espiar culpas, desopilar fígados e lembrar que só daqui a quatro anos teremos chance de ganhar de algum europeu em fase eliminatória.

A questão central, porém, será quase sempre deixada de lado. Temos um futebol local de lagarta e queremos uma seleção borboleta. É uma equação difícil de ter alguma boa resolução que não seja a desilusão. É preciso mexer no vespeiro. É absolutamente necessário intervir na organização, estrutura, comando da seleção e, sobretudo, do futebol brasileiro. Que se dane a fifa: Por decreto, por ato de governo, fusionar a CBF no ministério da Cultura e reinventar o barco. Notem, o futebol como elemento cultural, nada de ministério de esporte para fingirmos alguma lógica. Não há lógica, há Zizinho, Didi, Mané, Garrincha e Pelé. Há Canhoteiro e Dener. Há Leônidas da Silva.

Vamos insistir, porque temos a convicção histórica dos acordos de acomodação, em manter treinador, jogadores, planilhas, planos. Tenho certeza que o mote agora será um "projeto para 2022". Vão destilar um zilhão de planilhas, conceitos, teorias. Vão querer criar um padrão em todas as seleções, vão ter o discurso do planejamento. Tudo fundamental, é verdade, mas haja rococó. O problema é de estrutura. 

Não interessa, mesmo, mesmíssimo, que o treinador seja fulano, ciclano ou beltrano. Se não revirarmos de ponta cabeça a CBF, se não mandarmos ao ostracismo necessário todos - todos, repito - os atuais dirigentes, não temos como sair deste imbróglio. A seleção devia ser dirigida por um Joel Santana, por um Givanildo, ou por um desses meninos novos que ainda usam fraldas. E devia jogar todo mês numa cidade do Brasil. Sim, um time padrão podia ser trabalhado. Mas alternando nas convocações, sempre, este time padrão com jogadores locais, dos times daqui, que disputam o rame rame daqui. Devíamos tirar o monopólio de transmissões dos campeonatos de uma única emissora, permitindo uma saudável disputa de mercado contra a concentração, alternando emissoras, dando possibilidades para outras linguagens e abordagens. 

Jogadores que estão no exterior deveriam participar de aulas em escolas públicas. Deveriam ser instados a comentar os assuntos do dia, por mais alucinante que fosse a opinião. Este rebanho de ovelhas não nos serve. O proselitismo religioso deveria ser punido com cartão amarelo ou pontos negativos na caderneta, afinal se uma entidade divina é a que guia determinado jogador, time ou resultado esta entidade certamente fará a punição ser desimportante e irrelevante. Ou, melhor ainda, devia ser amplamente liberado sem que se enchesse o saco de quem prefere o curupira à virgem ou ao filho dela. 

Não preciso mencionar que tais medidas não impedirão novas derrotas da seleção em outras copas vindouras. O futebol pressupõe que só um time vença e avance para a fase seguinte. Tais medidas só nos darão é o resto que importa. E, inapelável, a propaganda do Itaú da seleção deve ser retirada do ar, para todo sempre, a não ser que nos transformemos todos em acionistas preferenciais do banco, com a distribuição dos lucros devida a todos e em partes iguais.

E Casemiro? Prometi aqui não falar das obviedades solares, mas tivessem levado o Araruna, tinham alguém para jogar de volante ou de lateral...


06 de junho, 2018. Brasil e Bélgica. Uruguai e França.





domingo, 1 de julho de 2018

Amores em tempos de cólera



Talvez uma das maiores injustiças de todo universo, este em que escrevemos e lemos este texto e em muitos dos zilhares de mundos paralelos existentes desde a primeira história para dormir contada pela primeira vó, é o fato de Messi e Cristiano nunca terem jogado no mesmo time. Faz tempo que imagino esta possibilidade e fico estarrecido como nenhum dos dois resolveu bancar esta aventura. Os dois estão com a vida ganha e merecem, definitivamente, se divertirem, juntos. Imaginem, só por exercício, um arco e uma flecha, Lionel e Ronaldo. 

Os dois foram eliminados no mesmíssimo dia na copa do mundo. Rivais, passaram a ser tema dos mais diversos colóquios sobre fracassos, sobre não terem ido mais longe, sobre terem refugado nos mundiais que disputaram. Deviam os dois sair para tomar umas, num boteco nas proximidades do aeroporto de Moscou, encher a cara e combinarem de darem bananas para todos e a granel, para todo o sempre. E acertarem de jogarem juntos no São Paulo, o Clube da Fé, da moeda em pé, do bonde de Leônidas, para disputarem o fim desse Brasileirão de 18. 

Messi e Ronaldo são dois dos jogadores mais refinados que a bola já amou. Um é um artista sublime e o outro o cara mais objetivo de todos os tempos, uma objetividade tão intensa que vira o fio e o transforma na própria subjetividade da bola. Deve ser estranho explicar como um time absolutamente rocambolesco como este da Argentina conseguiu marcar três gols na França e imaginar um empate, tamanha a diferença técnica e tática entre as duas equipes. Mas nesta estranheza, a única explicação possível passa pelos pés do número dez, do chute a gol no tento da virada portenha e no lançamento para o último gol contra os franceses e, essencialmente, na matada de bola, no domínio, na passada e no arremate para o gol contra a Nigéria. E, é impossível imaginar Portugal sem Euzébio e sem Cristiano, é como matar a Camões.

Todos sabem da existência de mundos paralelos, espero. Há uma sofisticada teoria da física que explica o universo por feixes paralelos, contínuos, infinitos. Me parece cada vez mais óbvio que eventos como a chicotada que deu o zagueiro Pavard na redonda no gol de empate francês é um desses fenômenos que abre uma fenda definitiva no universo. Olhar o lance e escutar o barulho do chute e do emaranhar nas redes, a trajetória da bola é nítida: há um outro universo ali, começando, um big bang. 

A bola, ela, sempre, escolhe seus afetos. O gol de cara que Cavani fez, depois das parábolas vividas e vivenciadas por ela nos passes - lançamentos - entre ele e Suarez, e o segundo gol, do mesmo Cavani, num arremate de cinema três dê, levaram este nosso velho universo em guerra a uma nova dimensão. Ficou evidente ali uma bela relação de amor. 

Assim como ela tem com a nossa Marta e a infinita Formiga, que também não ganharam mundial...


30 de junho, 2018. França e Argentina. Uruguai e Portugal.





quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contos de Leiteria


Devo ter organizado uns mil campeonatos de botão quando era moleque. A maioria desses campeonatos joguei sozinho. O Estrelão no meio da sala, times espalhados pelo tapete. Até a mesa de jantar era estádio, abrigava finais de Maracanã. Obviamente, por razões absolutamente evidentes, o São Paulo costumava faturar muitos torneios. Eram raras as derrotas do tricolor. Mas houve uma Portuguesa de Desportos, de Enéas e Wilson Carrasco, que numa tarde, entre o Speed Racer e o Savamu Demolidor, produziu um milagre para erguer catedral.

A finalíssima do torneio tinha que caber no tempo entre os desenhos. A história de Savamu estava empolgante, ele devia enfrentar algum gigante tailandês depois de ter sido derrotado numa primeira luta e treinado sozinho numa floresta para a revanche. O famoso chute no vácuo foi treinado contra árvores e o lutador saltava e caia numa fogueira que ficava no relvado. Ou seja, não dava para perder. O fato é que Portuguesa e São Paulo entraram no campo logo após o Corredor X salvar pela enésima vez o pescoço do irmão. A campanha da Lusa tinha sido excelente. Enéas estava literalmente possuído. Acho que na semifinal destroçou o Corinthians de Palhinha e Geraldão. Se não foi o timão, a vítima deve ter sido o Palmeiras, de Beto Fuscão e Polozzi. Já o São Paulo teve uma vida mais tranquila, vencendo a Ponte Preta de Dicá, o Guarani de Zenon e triturado o Fluminense de Edinho e Pintinho. Lembro de tudo. Arrepia contar o que aconteceu depois...

Na partida, numa saída de bola, eu literalmente escorreguei a palheta que comandava as ações do volante Almir. A bolinha chata de jogo de War resvalou no Wilson Carrasco e foi parar no fundo do gol do Valdir Peres. Inacreditável. Eu quase invalidei o gol, não tínhamos árbitro de vídeo, meu irmão devia estar no quarto, meus pais trabalhando. Ninguém ia saber de nada. Mas a consciência, sei lá porque, pesou. Gol. E pronto. Tinha tempo para virar. O que se sucedeu foi um massacre. O São Paulo bombardeava a defesa da Lusa. Eu jogava usando uma regrinha de cinco toques para cada time em cada jogada. Nas saídas de bola da Lusa, misteriosamente, as bolas batiam nos botões do tricolor. Mudava a posse da bola, então. O relógio correndo. Os comerciais da groselha Milani e do DD Drim, "nesta festa preciso por um fim", indicavam que em poucos minutos começaria a luta do século. Dei uma porrada num jogador do São Paulo, dentro da área. Expulsei o zagueiro da Lusa. Marca da cal, penal, bateu, o goleiro Moacir pegou. Palavrão. Na tela da TV, a música do Savamu: "Ele se julgava o demolidor, ele se julgava o demolidor". 

Mas o assombroso, o sobrenatural, ainda estava para acontecer. Da defesa do goleiro a pelota foi parar nos pés de Eneás. Ou seja, bola com a Lusa. Displicentemente eu toco com a palheta no botão. A bola ganha uma força sobrenatural e cai na gaveta do Valdir, encobrindo Oscar e Dario antes de morrer no fundo da meta. Dois a zero. Depois daquele dia nunca mais duvidei de fantasmas e que espíritos comandam por vezes as partidas de futebol. Confesso que remoí todos os lances e quase que me estraga o desenho, inconformado que estava. Anos depois, lendo Nélson Rodrigues, reconheci na leiteria o Castilho que morava no Enéas do meu jogo de botão da Portuguesa. Entendi tudo.

Dias depois, Eneás foi transferido para a Itália, acho que para o Bologna. Mas no campo de botão lá de casa virou uma entidade e resolvia sempre jogos impossíveis. Cheguei a escalá-lo no lugar do Éverton numa quinta feira a tarde chuvosa e sem tv em casa. A única partida que fez pelo São Paulo. 

Vendo a partida da Argentina contra a Nigéria, revi e reforcei minhas crenças. Não foi o Eneás, evidentemente. Mas aquele gol do lateral esquerdo, de perna direita, que segundo a própria mãe do jogador em entrevista aos periódicos portenhos só servia para subir nos degraus do ônibus, aos quarenta e larai do segundo tempo, foi de Batistuta, que encarnou no pé do lateral, ali, bem ali, e aos olhos de toda a multidão do mundo. 


26 de junho, 2018. Argentina e Nigéria. Islândia e Croácia. França e Dinamarca. Peru e Austrália.






   

quinta-feira, 21 de junho de 2018

O tango do sexo das corujas mortas



Ser desclassificado de qualquer torneio é morrer um pouco, sempre. Desde a desclassificação evidente, que só machuca o peito, até aquela que é cruel, com requintes de filmes B e temperos de fim de mundo, que chegam a dilacerar tecidos. 

Lembro de um pelotaço de Ademílson, atacante vindo de Cotia, no São Paulo numa fase eliminatória de Libertadores, contra o Galo, em pleno Morumbi. A bola absolutamente lasciva, pingando na área, goleiro batido e o nosso atacante dá um chute galaxial, a redonda virando satélite. Já estávamos com dez em campo, desconfio, mas um gol ali era batata e classificação. Passei a semana fechando os olhos e a imagem que aparecia era o satélite quicando na lua. 

Se o jogo é de quarta a noite, virá o combo insônia, refluxo e saudade, rememorando o que poderia ter sido. É uma das sensações mais intensas que alguém pode viver. E sobreviver. Porque o campeonato seguinte começa em breve.

O cacete de uma eliminação na Copa é que existe uma maldição a mais: somente dali a quatro anos é que o gato que desvencilha do telhado. Sim, tem a questão das eliminatórias, que podem piorar o gosto de café frio. Ou seja, o dia que se sai da copa é um dia moribundo. Ainda mais se as conexões com o seu time estão presentes, em afeto e carinho. 

É evidente que os peruanos estavam de caso amarrado com o selecionado. Todas as matérias de recheio das coberturas esportivas do certame russo apresentaram rostos pintados de vermelho e branco, exaltando as qualidades do time, fazendo barulho nas ruas e nos estádios. A festa na partida de despedida do Peru de Lima, numa partida contra a Escócia, se a memória não me trai, foi daquelas deliciosas quizombas, de dar um tiquinho de inveja, remorso, espinha de peixe na goela. E o Peru já está fora da Copa, apesar de ter feitos dois jogos bastante razoáveis. Hoje o vermute não foi digestivo.

Vi boa parte do jogo entre franceses e peruanos. De uma lado um time enjoado, com muita qualidade aparente nos toques de bola e com um volante descomunal de bom, Kante. Mas um time confuso... por não encontrar uma palavra mais adequada para descrever o trem. Do outro, um time brioso, mas cheio de incompatibilidades entre a bola e os pés. Mas os sulamericanos jogaram como puderam, emparelharam o jogo. Lá pelas tantas, partida já com o placar de um a zero, a bola vem em direção a um dos peruanos menos famosos e o cara acerta na veia da redonda, dá para ouvir o barulho quando escrevo. Do pé na bola, um movimento levemente curvo, parecendo reto, um canhão. O tempo pára. A transmissão da tv, a narração do rádio, a respiração. Numa velocidade incrível e inapelável, a bola passou pelo goleiro e explodiu no travessão. Ali onde a coruja faz ninhos. Ali onde os sonhos viram passado. Ali onde não há o chuá delicioso do som da pelota se emaranhando as teias da baliza e, sim, um estalo de ferro. Excesso de ferro, revelam os exames de sangue, problemas de fígado. A eliminação se deu ali. Nunca mais. Quando a bola volta ao campo de jogo ela já é outra, deformada, rasurada.

É lindo também, nesse jogo de palavras e sentidos, que nós chamamos em muitas obras de arte, na literatura, nas telas e nas alcovas, o momento do orgasmo de "pequena morte". Como se depois, não houvesse mais nada. Deve ter sido o que Modric sentiu depois de desferir o chute que resultou no segundo gol croata contra a Argentina. Croatas e peruanos morreram um pouco hoje. Os argentinos não: seguem vivendo em seu tango dramático, "por una cabeza". 

21 de junho, 2018. Dinamarca e Austrália. Argentina e Croácia. Peru e França.




sábado, 16 de junho de 2018

Como sói acontecer



José Sérgio Presti, o Zé Sérgio, ponteiro esquerdo do São Paulo no fim dos setenta e começo dos oitenta - e que depois jogou no Santos, no Vasco e no Japão, foi o meu Pelé. De certa forma foi a partir de suas jogadas, de seus dribles e avanços, de seus gols, que comecei a ver o mundo com mais carinho pela esquerda do campo. 

Foi num natal entre 77, e aí deve ter sido Papai Noel, e 79, e aí devem ter sido meus pais, que ganhei os primeiros times de futebol de botão, meus grandes e saudosos camaradas, que me acompanhariam brincadeiras e vida adentro. Eram dois times de botão daqueles de acrílico, de prenda de festa junina, do São Paulo e do Santos. E junto aos times, o Estrelão, o meu Morumbi. Escalo o time que fez a partida inaugural, em voz de repórter de campo: "Valdir, Getúlio, Bezerra, Chicão, Neca, Serginho e... pela ponta esquerda, confirmado, Zé Sérgio, com a ooooonze!". No Santos, tinham Nilton Batata, Rubens Feijão e Juari. O jogo deve ter acabado com vitória tricolor, provavelmente por goleada. Mas, certamente, Zé esmerilhou: fez gol, passou, driblou, bateu lateral, escanteio, foi zagueiro e tudo mais. Eu tinha um caderninho que anotava os jogos e resultados das minhas partidas. Quando o caderninho se fechou, devia estar na faculdade já, o Zé devia ter uns mil gols.

Aquela jaqueta onze foi motivo de sonho. E de dores: Zé teve a carreira abreviada por contusões, por ter quebrado a perna e por um episódio de doping por causa de Naldecon ou dalgum tipo de antigripal similar. Odeio remédios,  abaixo a medicalização! Os zagueiros só paravam o Zé na porrada. Eu chorei quando o Zé, voltando do estaleiro, teve uma recidiva num jogo de meio de semana. Naquela época, na Record, durante o bangue bangue a italiana, os resultados dos jogos do campeonato paulista eram mostrados por pequenos tipos na parte inferior da tela. Os faroestes espaguetes e o Zé Sérgio. Memórias, sempre elas. E trilha do Morricone.

Não importam os analistas econômicos dizerem todos os sacrossantos dos dias que para a economia ir bem temos que ter austeridade, equilíbrio fiscal e aquele monte de discursê sobre competitividade, eficiência, gestão privada e lufts. Para mim, o fato, o dado concreto, o calor do asfalto, Zé Sérgio foi o maior craque que vi jogar. As vezes eu acho que estes comentaristas esportivos, a tal crônica especializada, repete uma série de numerozinhos e obviedades para encaixar realidades em suas teses, para dizer que um  time ou um jogador são melhores que outros. Mas é o bolsa família que tira as pessoas da miséria, que inclui famílias e famílias no tal mercado, é o SUS que possibilita algum tipo de atendimento quando a saúde falha. Planilha boa é a do excel, quando resolve teu dilema ou quando preenche as classificações dos grupos automaticamente depois dos palpites no bolão.

Cristiano Ronaldo é um Zé Sérgio, desconfio. Mas é, em sua intensidade e objetividade, uma aula de economia. Dizem das vaidades de Cristiano, de sua soberba de quem sempre anda de queixo erguido, de seus gols de penal e até dos cremas que passa na face. Mas ali, no petardo, no cotidiano, nos diversos e rotineiros mísseis que viram golos, sempre o vejo abraçando os camaradas de time e sorrindo para algum guri que vive no Tejo...

Uma última notinha, antes d´ir: Hoje, no meu Estrelão, provavelmente o Zé estaria a tabelar com o Cavani, procurando algum jeito de retribuir o Dario Pereyra, o Pablo Forlan, o Lugano e o magnífico Pedro Virgílio Rocha, um Sérgio Leone das quatro linhas. 

16 de junho, 2018. França e Austrália. Argentina e Islândia. Peru e Dinamarca. Nigéria e Croácia.


sexta-feira, 4 de julho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - XXIII


Há um problema em exorcizar fantasmas de forma transversa. Porque fica pairando no ar, como espírito sem cabeça, o malogro da sorte.

Desclassificamos a Itália de Paolo Rossi logo na primeira fase. Tá certo que fizemos um descarrego na copa de noventa e quatro. Mas foi nos penais. Sem querer ser chato,sendo, sempre, precisamos despachar a azzura num desses jogos de mata-mata, para poder colocar toda a nossa frustração num grito só, com xingo e tudo.

O Uruguay deixamos chegar nas oitavas, para colocarmos no avião de volta depois de uma tunda, na exibição mais plástica de uma seleção até aqui. A Celeste lembrará de James por anos. Sim, nós ganhamos do Uruguay em setenta, viramos o jogo, Clodoaldo bailou. Mas sempre e sempre tem aquele engasgo tamanho Maracanã na jaca. Podíamos ter ganho deles aqui, faria bem. 

Agora a França está em campo. Joga com a Alemanha e perde, findo o primeiro tempo: um a zero. O trasgo francês é mais recente e o fígado ainda se ressente daquela piaba de noventa e oito. E oitenta e seis. E dois mil e seis. Enfrentá-los seria divã puro e colocá-los num saguão de aeroporto com uma derrota traria paz, muita paz, nesses nossos corações em transe.

E a final contra a Argentina seria a coroação da despossessão. Não que os hermanos sejam alguma espécime de fantasma. Somos almas gêmeas. Mas seria lindo, naqueles exageros típicos da alma portenha, ganhar aqui, em casa, seis vezes e várias e várias canções de maldizer. Cantaríamos até o juízo final.

O problema do exorcismo transverso, me parece evidente, é que não tratamos os ectoplasmas - apud "Ghostbusters" - com esmero, deixando os vasilhames um tanto abertos. Qualquer falha, qualquer faísca e BUM!!!! Temos um país inteiro invadido por almas penadas de todos os tipos. 

Oxalá que não. 

De qualquer forma, já escrevi uns bilhetes para São Mané. Nenhum "joão" voltou do além até hoje, o que comprova a milagresa toda e toda desse santo protetor.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Dez Mais Oito


"Tia....". Tia, não. Professora.

Nessas minhas manias de reduzir as cousas numa linguagem que eu possa entender, gosto de imaginar as Copas como um imenso interclasses, aqueles nossos campeonatos da escola, na época do ginásio.

Quem nunca entrou numa quadra, porque os campeonatos interclasses costumam ser de salão, num torneio que reunia da quinta à oitava, quando os pequeninos, recém saídos do primário, nem beijo selinho ainda, eram obrigados a enfrentar por essas tabelas desalmadas, aquele time da oitava séria, todo mundo no fatorial, barba, gazeta, fura olho?

O time da quinta era até muito bom. Pelota de pé em pé, saída de bola bem feita, cada um marca um, pivô e eteceteras e tals. Goleava impiedosamente naqueles recreios com futebol qualquer time e até faziam chacotas quando colocavam na roda os demais. Era impossível não pensar que seria sempre assim e ter esperanças. O time é bom.

Aí chega o campeonato. O interclasses. Onde moram perigos. Onde há torcida. Há beijos de recompensa. Há craques, prêmios, olhares de inveja e cobiça. Bola rolando e...

O fato é que o timaço da quinta série ganha uma, dá show e todos comentam que os meninos são colossais. Vão vencer qualquer obstáculo. Até que naquela partida decisiva, intervalo entre aulas, todo o colégio assistindo a peleja, um a zero, o time da oitava empata. No finzinho. Depois do grandalhão ter dado uma cusparada feia no chão, depois de uma dividida mais ranheta, depois de uma discussãozinha com o professor que é o juiz, porque não marcou falta naquela jogada ali. E antes do sineta, óbvio, o gol evidente do time mais experiente. Feito com calma, quando tudo já era coração. E foi daquele menino lá, justo aquele que eu queria ser, justo aquele lá que já ia receber o melhor dos beijos...

México, Chile e Colômbia devem saber na alma o que é este sentimento. Brasil, Alemanha, Argentina, Itália também sabem que podem resolver situações improváveis antes da sineta. As vezes não funciona, é verdade, mas é muito raro não funcionar para todos os times da oitava série concomitantemente. Eles parecem, inclusive, combinar entre eles quem vai ser o responsável por extirpar o coração do romântico do momento, furará os olhos como já furaram uma Dinamarca, uma Hungria, uma Suécia, um Chile, um México... uma Colômbia. 

Mas e a Espanha? Bom, a Espanha é aquele time de sexta ou sétima série, que vez por outra belisca o caneco porque os times da oitava se mataram entre si. Mas depois, no outro campeonato, ficam lá na ansiedade entre o pega-pega, esconde-esconde e o gato mia...

E... acabou de sair um gol da França. Numa pipocada do goleirão.
"Tia........".


Nota do Feiceditor: Sabemos que por força da LDB o ensino fundamental vai hoje até o nono ano. Que antiga quinta é sexta, a antiga oitava é nona. Mas a memória é minha então mantenho no ferro velho.



quarta-feira, 25 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Douze

Bastam dois pares de chinelo. E pronto, temos o essencial para um jogo de futebol. Os chinelos serão as traves. Dividimos os jogadores, quase sempre metade para cada lado e pronto: A esfera roda. Na praia, na praça, na grama do quintal, na rua, na sala de jantar. E lá seremos outros, ainda que por instantes. Eu já fui Zé Sérgio, o melhor jogador de futebol do planeta. Já fui Chulapa, Dario Pereira e Getúlio. Com o Grande e o Pequeno sou Rogéeeeeeeeeeeerio. Já fui Sócrates, Rocheteau e até Boniek. E fui o arqueiro camaronês Nkono. E Tilico, Élvio, Bernardão, Zé Teodoro. E enfrentei e joguei junto nas mesmas equipes de Zico, Biro, Jorge Mendonça, Dicá, Juari, Lato, Kempes. O Grande já foi Luis Fabiano, Robben e Cristiano Ronaldo. O Pequeno, Lucas, Messi e ambos já foram, vejam só, para desgosto paterno, Neimar.

Nesses jogos de chinelo pouco importa o que a crítica especializada acha dos craques, quais as notícias, quem vai casar com quem, se o jogador é bom de família, se cai na noite ou sei lá mais que saramaleques. Nessas horas o que realmente importa é o que o Zé Sérgio fez pela gente. E pronto. Mas a gente cresce....

Algo em Cristiano Ronaldo me incomoda. Me incomoda, e muito, a forma como que boa parte da crítica "especializada" trata o português. Cristiano é um jogadoraço, um gênio, decisivo, craque, sobrenatural. Mas o que importa é o cabelo, o olhar para o vetê, o exibicionismo e a arrogância. Ou as vitrines de roupa, perfumes ou sei lás que ele, como marca, ajuda a vender.

Cristiano Ronaldo, baleado, numa seleção frágil e fraca, no último minuto de uma partida foi capaz de um lançamento milimétrico, preciso, com açúcar, para encontrar a cabeça de Varela, no único instante possível. E não foi um gol inexpressivo. Foi o gol que manteve as tênues e limitadas esperanças portuguesas de classificação para a segunda fase. 

O mesmo locutor que faz a pilhéria, no desdém do gajo, enaltece outro, que é também craque, genial no campo, decisivo, sobrenatural, mas que vende cabelo, marca de cueca, olha para o vetê e faz dancinhas, coraçõezinhos, vende badulaques. Não se pode, mesmo, agradar a todos. Mas podíamos ser um pouquinho menos críticos da grama alheia.

Ou lembrar dos chinelos de trave e deixar os chatos para o depois do jantar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Quinto



Fui ver um dos jogos no Anhangabaú. Lá montaram os "patrocinadores" e a organizadora do evento um local com telão para assistir aos jogos. Paulistas somos inacreditavelmente jecas para muitas cousas. Como não temos praia, costumamos nos lambuzar nas farofas, com gosto. Até as narinas mais empinadas da gente bandeirante piratininga chegam na praia e pronto: mafuá, farofa milanesa na areia e queimadura. Nem adianta dizer que não. Quem nega, no mínimo é cafona. Bom... nós paulistas somos cafonas. Mas voltando à marola, como não somos uma cidade linda por natureza, nossos encantos são outros. E para desvelo é necessário um algo mais, um outro olhar que guais de turismo e de beleza não dão. E por estas e outras estamos inacreditavelmente desacostumados aos gringos turistas.

Chega a ser patético. Porque uma cidade pseudo cosmopolita, repleta de gente do mundo todo que mora aqui, quando vê um que não mora, só tá de visita, ficamos todos animados, como que vendo entidades sobrenaturais. Jecas. No estilo do Monteirão, um clássico do tatu.

E na tal tenda para os jogos o que mais tem é gringo. Contei sotaques. Contei dezenas, repito, dezenas, de camisas de países diferentes. Fiquei bestificado com tudo. Parecia criança em loja de brinquedo. Quando uns caras, um deles com a camisa da Argélia e outro da França, começaram a azucrinar um grandalhão coreano, com uma linda jaqueta do time da Coréia do Sul, gritando "Argélia", comecei a rir feito besta: Coréia e Argélia é um dos clássicos do grupo H.. Pinto no lixo, eu.

E tinha um francês ao meu lado. Puxei papo. O cara veio da França para assistir ao jogo do Uruguay com a Inglaterra, em Itaquera. Um único jogo. E nem era do país dele. Estava todo feliz tirando foto de tudo e comemorou o primeiro gol francês com uma felicidade de primeira mordida em quindim. Bonito que só. Falamos da copa e ele, em inglês tão ruim quanto o meu, me disse algo como "vim para me divertir".

São Paulo tem muito africano. Quem anda pelo centro, sabe, reconhece. Mas é difícil conversar com eles num dia normal. Porque no corre corre dos dias somos todos meio bestas, mais relógios que relíquias. Mas lá na tenda, ar aberto, era fácil. Um "oi", um sorriso, uma comemoração de gol. E eles sorriem bonito, né? Quem nunca ficou feliz com um sorriso deles, desses lindos, sabe pouco dos encantos do mundo, pouquíssimo. Só refrigerante, provavelmente.

E os latinos americanos!!! Senhoures e senhouras, a quantidade de camisas vermelhas do Chile é de impressionar qualquer marujo. E amarelas de colombianos, sombreiros mexicanos e o azul dos hermanos. E os felizes costa riquenhos, garbos com sua bandeira.

Um clima amistoso que estamos pouco acostumados, gente sentada no chão sem toalhinha para as bundas, felizes, conversando. Apesar das caras sempre carrancudas dos policiais - e me pergunto a razão do porquê a policia do estado estar num evento que a organizadora diz ser dela - com exclusividade pérfida de um amante ciumento e inseguro - e, portanto, um evento privado.

Apesar dumas catracas e de umas revistas em mochilas e roupas, o local estava aberto. E os bêbados do centro também estavam lá. E não só os bêbados: as putas do entorno da praça do Correio, os mendigos das escadarias da Líbero, gente diferenciada. Há algo ali no Anhangabaú, antes de sermos essa gente jeca e malcriada, quando era rio e vale e gente pelada, que tatuou a cidade. Nem a tal organizadora foi capaz de tirar isso de lá. É provável que até o fim da copa tentem expulsar essa gente feia dali. Mas muito provavelmente não conseguirão... Desta vez há um ancestral nosso que continua a achar José de Anchieta um grandessíssimo dum explorador mequetrefe, que de santo não tinha nem as batas... mas que acha graça num festerê. 

Vão acabar comendo a gente, se tivermos sorte.


quarta-feira, 5 de março de 2014

O Camisa Oito




A paixão pela Bahia surgiu aos 13 anos, quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Da viagem, o que nunca lhe abandonou a memória, contudo, não foram as lindas praias, seus coqueirais, a lagoa escura, a areia branca. Também não foi o farol, o Bonfim, as sacadas, os sobrados, ou o que quer que a baiana tenha. Mas a elegância sutil de um camisa oito, que, cabeça erguida, enxergava todos os cantos do gramado, sem virar o olho, sem mexer um músculo sequer. Depois, baianamente, fazia a bola voar e, sem pressa, inalcançável, chegar ao destino preciso, como se não houvesse outro caminho possível.

Também lhe encantava a sonoridade francesa do nome estampado acima do número oito, que de bobo não tinha nada. Tampouco de bom burguês. Pelo contrário, na tez do boleiro, revelava-se a mesma origem africana de seus ancestrais, o que só fazia ampliar a reverência e a admiração do garoto pelo jogador.

Aquilo tudo, o corpo, a bola, a elegância, a África, tornara-se obsessão para o menino, que não teve outro caminho a trilhar, senão tornar-se jogador de futebol.

Agora, voltava à Bahia em outra condição. Aos 41 anos, aposentado há oito, decidira por seu retorno aos gramados. As razões que o levaram a tomar esta decisão não se resumiam ao mero amor de menino que ainda sentia pelo futebol. Também não queria “retomar” a carreira. Sabia que o tempo, mesmo que navegue por mares pouco revoltos, é cruel e leva do corpo, gota a gota, todo o seu viço.

Ele queria “retomar” sua aposentadoria.

A carreira encerrada num ato impensado, num átimo, um segundo. Uma cabeçada sem pé nem cabeça. Justo ele, tão cerebral. Ao invés da bola, na cabeça, a camisa da Itália.

Mais que de voltar, a hora era de encerrar de novo.

E a Copa era no Brasil, sua vítima predileta, sua consagração.

Encerrar a carreira na Bahia seria um sonho.

Do primeiro jogo, não participou. Derrota por 4 x 0 imposta pela seleção de Honduras – diga-se, sensação da Copa. A esfarrapada desculpa para sua ausência: os quatro graus abaixo de zero em Porto Alegre poderiam complicar-lhe o quadro gripal.

O segundo jogo seria contra a Suíça, na mesma Salvador de seus 13 anos, no mesmo lugar onde se encantara pela sutil elegância do camisa oito. Claro, a cidade não era mais a mesma. O estádio não era o mesmo. A velha Fonte, tragicamente, foi ao chão, dando lugar a uma nova, limpinha e afrescalhada arena.

E como todo o resto, ele também não era mais o mesmo e começaria o jogo no banco. Estava combinado que entraria somente no segundo tempo.

Para agravar sua condição de fumante inveterado, Salvador estava particulièrement belle, trés joly. Manifestações, Copa do Mundo, cem anos de Dorival. Portanto, tudo era carnaval. Pra comemorar a ocasião, lá tem vatapá, lá tem caruru, lá tem mugunzá, então vá. E ele foi. Resultado: ressaca e tremenda diarreia.

Não entrou com a equipe em campo. Do trono do vestiário, ouviu a sonora vaia da torcida brasileira, quando a França, toda de azul, adentrou o gramado. Pela TV, viu a Suíça, camisa vermelha e calções brancos, começar o jogo melhor e, logo aos quatro minutos, escanteio pela esquerda, Drmic de cabeça. 1 x 0.

A equipe suíça foi levando o jogo em banho-maria. Parecia treinada por Tite. Fechadinha atrás, tocava a bola, de pé em pé, de um lado para outro, aguardando uma chance de contra-ataque, cozinhando o galo, em homenagem ao escudo da camisa adversária. Um autêntico coq au vin.

O primeiro tempo terminou com o placar mínimo em favor dos suíços.

Ao ver seus companheiros chegarem cabisbaixos ao vestiário e olharem-no, arregalados, em busca de alguma palavra motivadora, uma crítica sagaz, uma luz tática no fim do túnel, decretou:


Nous reviendrons sur blanc!


Voltaremos de branco! Era sua volta aos gramados e ainda que estranhassem o pedido, jogadores e comissão técnica acatariam o capricho.

E assim voltou a França: meias vermelhas, calções azuis e camisa branca.

Os apupos da torcida do primeiro tempo, estranhamente, transformaram-se em aplausos, no segundo. Todos pensaram que se tratasse de uma reverência à ilustre presença de um dos maiores de todos os tempos. Mas ele, número oito às costas, sabia que a razão era outra. E tinha a ver com o camisa oito de sua infância. Sim, a seleção francesa vestia o mesmo manto, o uniforme número dois do Esporte Clube Bahia: meias vermelhas, calções azuis, camisa branca.

Tanto assim, que apenas pouco mais da metade do Estádio virara a casaca em favor dos franceses. A outra metade seguia torcendo pela seleção suíça, que, diga-se, vestia as cores do Vitória.

O segundo tempo iniciou com a Suíça tocando a bola, como fizera no primeiro, mas a França, agora, além de contar com o apoio de parte da torcida, tinha uma referência.

Aos vinte do segundo tempo, a bola lhe foi lançada na intermediária. Ele a viu viajando, em câmara lenta, até quase parar a um metro de seu corpo, na altura dos olhos. Como nos velhos tempos, ergueu o pé esquerdo para trazê-la para si, mas o nervo ciático não o deixava em paz. A bola caiu em pés suíços e ele, de quatro, no chão.

A cena ridícula não poderia se eternizar. Ele merecia um final menos patético, mais apoteótico.

Carrinho da maca, água milagrosa e segue o jogo.

De fato, ele não era o mesmo. Agora, sentia na pele o que isso queria dizer. Tratou de tocar a bola com movimentos mínimos, fazê-la girar, como fazia o camisa oito, como faziam os suíços. Estes haviam de provar seu próprio veneno.

Assim foi feito. A França cresceu no jogo e a peleja pegou fogo. “Os azuis”, Le bleu, de branco, pressionavam, mas ...

Mas davam espaço para o contra-ataque. A Suíça foi para cima e perdeu duas chances claras de gol. Aos 33, Shakiri não desperdiçou a terceira. Suíça 2 x 0.

Confirmando-se o resultado, a França estaria praticamente fora da Copa. A Suíça iria a seis pontos e, dificilmente a seleção de Honduras, já apelidada de “Laranja Caribenha”, deixaria a vitória escapar contra o fraco Equador.

Mas nada disso importa.

O que importa, senhoras, é nosso personagem, sua aposentadoria.

O time francês, tres désolé, tocava a bola no campo de defesa, tentando evitar um amargo chocolate suíço.

Ele só conseguia pensar nos jornais estampando sua foto, caído, de quatro, como que a pastar no gramado. Seria mais vexatório que a cabeçada da primeira aposentadoria. E as manchetes: “De gatinhas, francês desiste do futebol!”.

Jamé!

Ou melhor, Jamais!

O ato final lhe reservava um desfecho à sua altura.

Inconformado, aos berros, temendo por sua reputação, ele pedia a bola.

Aos quarenta e três, extenuado, na marca do pênalti, de costas para o gol, ele a recebeu entre dois zagueiros suíços. Sabia que se tentasse o giro para finalizar, o ciático o derrubaria novamente. Ainda que sobrevivesse à extravagância, o zagueiro anteciparia a jogada. Ao seu redor, ninguém de branco para tabelar.

A solução foi natural: calcanhar na pelota, goleiro no chão, bola na rede e braço esquerdo erguido no ar.

A torcida inteira aplaudiu. Enfim, Bahia e Vitória se uniam na nova Fonte Nova. O prólogo de sua carreira fechava-se com chave de ouro.

Nem viajaria com a delegação para o resto da Copa. As chances de classificação eram mínimas e a Bahia tem um jeito.

O calcanhar, a bola na rede, o goleiro no chão mais uma vez o consagravam. Eram partes famosas de seu repertório.

O braço erguido ninguém entendeu.

Era uma homenagem a outro camisa oito por quem, ainda menino, se encantou. 

O viu jogar, não na Bahia, mas na Espanha, defendendo a seleção brasileira contra a seleção da Itália.

E de punho cerrado, gritou:


- Va fan culo, Materazzi!

Resultado: Suíça 2 x 1 França. Gols: Drmic, aos 4 min; Shakiri, aos 78 min. Ele, aos 88 min.
O texto é do Luís Nader, nosso querido "Luís Bom Motivo". Um bom motivo, sem dúvida!

sábado, 4 de janeiro de 2014

O sorriso de uma moça



Eram quinze minutos do primeiro tempo e já tínhamos farta matéria para os botecos. Para conversas daqui até Paris. Muito embora sabíamos todos que o destino da partida seria a maçã de Newton cair logo logo ao invés de ficar levitando como a conjurar demônios e a divertir por meio de metáforas: o gol de Davi contra Golias, logo aos cinco minutos. Mas depois do gol, o encanto e a maravilha: três ataques e três defesas espetaculares, milagrosas, meticulosas, espalhafatosas, sensacionais, redundantes até.


Lembro da única copa que houve de fato, a de 1982. Levara um radinho de pilha para a escola e auscutava, silenciosamente, pelejas durante as aulas. Uma delas, um soberbo Espanha 1 x 1 Honduras. Arzú, o goleiro hondurenho, um deus maia, fechou a cidadela centro americana e vingou a colonização nefasta, defendendo tudo e pensamentos. E só houve empate naquele dia porque alguém marcou uma penalidade ao fim do jogo, um desses imperialistas nojentos vestidos de preto.


Seria novamente Arzú? O fato é que aos vinte minutos ainda da primeira etapa a sucessão de milagres fazia a plebe acreditar piamente que um único gladiador poderia derrotar um império todo. As defesas de Zetti contra a Católica, todas, uma a uma. Rodolfo Rodrigues contra o América, uma obra de arte. Marcos e aquela partida inenarrável contra o Corínthians. E aos vinte e sete, duas penalidades. Duas. Dida, contra Raí. Era fato: o goleiro.


Mas a pressão era tanta e tamanha, armadas, fragatas, navios, submarinos, caças rasantes e seus mísseis. Acreditar que não haveria empate, virada, lógica, crua e nua, era acreditar em besouros que falam ou em vingança divina. Acreditar no impossível.
Mas era assombroso. E até de Rogério, sim, do mitológico arqueiro, contra o Liverpool – Gerard, no canto alto, espaaaaaaaalma o goleiro.


No intervalo, frisson. Até os pedregulhos, se filosofassem, teriam assunto de monte. O burburinho era incessante. Tive, por momentos, a certeza de que algo de sublime estava a acontecer. O homem pisando na Lua. A invenção da cerveja. O ar condicionado. E eu estava lá. Logo no começo do segundo tempo, cruzamento na área, o bola de ouro da Fifa e que tais, cheio de dólares, francos, suiças, flashes, cantigas, matérias de relógios, namoradas e de confusões nos periódicos da metrópole, sobe alto e testa firme. Pelé e.... Banks: queixo caído. E poderia descrever, logo depois, Oscar e Zoff, na mais terrível defesa de todos os mundos. Era incontroverso: assistíamos a maior exibição de um ser humano a defender balisas em todos os tempos, memoriais ou não, de Zamora à Barbosa, de Gilmar à Buffon, de Taffarel, de Valdir Peres, de Cassilas à Nkono. Arzú.


As faces de desolação, de derrota, de submissão dos jogadores adversários. Os rostos maravilhados. O treinador arrancando os cabelos. A elétrica certeza do estádio todo: Estávamos presenciando a história, Pearl Habor, a batalha da Normandia, o Riachuelo, Waterloo, Stalingrado, Bill Gates, Santos Dumont.


Mas um senhor ao meu lado assistia a tudo estranhamente desolado... e me diz, com a tristeza dos tesouros roubados por Cortez e Pizarro, em tom fúnebre: “Não posso mais suportar...”.


A história era assim: O arqueiro só fechava o gol quando estava triste. Muito triste, então, era um Yashin. Desde pequeno, descalço, o guri só conseguia fechar o gol depois de tragédias. Perdeu o pai, assassinado numa briga de gangues, catou até raio num joguinho de quarta série. A mãe, enferma, campeão do ginásio numa partida colossal contra um time repleto de repetentes, gigantes e malvados. O rol de infortúnios, as defesas miraculosas. Mas... era estar feliz e pronto: pinimbas em série. Frangos e uma coleção inteira de pássaros e vexames em finais de campeonato, em jogos no exterior, em eliminatórias. Só estava ali porque o goleiro titular estava suspenso e muitos não o queriam. E o senhor, firme, lágrimas: “tenho medo de saber o que será que está passando por aquela alma neste instante... deve ser amor.”


Suspenso no ar. Faltava me fôlego. Não sabia se podia acreditar naquela história, por demais fantástica, um conto de Cortazar, uma imagem da Amazônia de Pantaleão, Bolivar e Martí tomando um rum numa praia pirata. Mas o fato é que aos quarenta e oito minutos, o estádio em êxtase e o imperialista de amarelo, sempre eles, a lei, a marcar penalidade indiscutível. Cal. Silêncio.


No telão, um rosto de mulher. Sinto a tragédia, quando vejo o senhor ao meu lado, um Gabo, com seus bigodes trêmulos, chorar: “é ela...”.

A multidão e eu, todos os olhos do mundo, no arqueiro imenso. Que sorri ao rosto da mulher, riso farto, contente, contundente, de senhor do mundo, Quincas Berro D'Água.

Correu...... bateu.........”.


Para fora. Para a imensidão.


Honduras 1 x 0 França – (gol deBonieck Garcia)
Em Porto Alegre, Beira Rio, 15.06.2014