Mostrando postagens com marcador Equador. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Equador. Mostrar todas as postagens

sábado, 28 de junho de 2014

Amaraladas na Copa 14 - Quinzão


Há certas cousas no mundo que deveriam ser tratadas com muito mais seriedade. Sim, digo dos programas de solidariedade internacional e das redes de proteção internacionais tentando mitigar o sofrimento de muitos, refugiados, expatriados, perseguidos. O combate intransigente contra a intolerância: de gêneros, de religiões, culturais, étnicos. E deveríamos cuidar mais, dentro desta lógica, de nossas identidades culturais, de nossas construções históricas - não só as construções com pedras, cimentos, argamassas, compasso, tijolo, cálculo, engenharia e tais - mas todas as construções que são fruto de nossa história: o samba, a valsa, o amor, a serpentina, a bola... o futebol.

Eu não entendo porque não é a ONU que organiza o futebol pelo mundo. Simplesmente não entendo. A ONU não é lá essas cousas, a gente sabe, tem muito mesmo o que melhorar, aprimorar, ser. Mas é uma construção importante, ao menos um indicador de que outro tipo de mundo seria possível, que outros mecanismos para resoluções de conflitos seriam necessárias, que não precisamos mais só de guerras. A ONU é um sonho. Mas é.

A FIFA é um balcão de negócio, principalmente depois que Havelange, aquele um que deveria ser esquecido pelo tempo e destinado ao ostracismo que nem o inferno é, é só esquecimento. Um pulha, com todo o perdão aos mais sensíveis e à família do cara. A federação deixou de ser o que Jules Rimet pensou um dia para ser só mais uma dessas multinacionais globais, cuja a pátria é só o crédito na conta de acionistas ou fedores assim. E o pior, a casa de tolerância monetária "organiza" uma daquelas paixões mortais que nos identificam como seres humanos - e, portanto, nos aproxima do sobrenatural, das deusas e deuses. Organiza e monopoliza um bem cultural da humanidade. E isso é lamentável, como processo histórico, político, econômico e cultural.

O futebol parou guerras e foi fundamento para outras. Mas não estamos falando só de um esporte que alimenta paixões. Estamos falando de nós. Estamos num Celtic versus Rangers. Estamos criando. Desde as regras simples do jogo, passando pelas inúmeras possibilidades que um time de onze jogadores, mais onze reservas, podem criar. Não é só para brutamontes, como vários outros desportos que necessitam da força física e do sobrepujar quase a morte o outro. Não é só talento e habilidade com os pés, senão não teríamos esta profusão de heróis cabeças de bagre, mas raçudos, onipresentes, volantes que desarmam e avantes que marcam com canelas, bicos de pé, púbis ou sei lá mais. Estamos a conversar e a construir, epopéias, vexames, desgraças, vitórias, derrotas, frangos, aritméticas, geometrias, sambas, livros, filmes, criação!!!!

A primeira fase da Copa no Brasil revelou muito disso. Que apesar dos fuínhas da federação, com suas echarpes no calor, com seu cheiro de colônia vencida, com seus arrotos, apesar dos cartões de crédito, dos bancos, das empresas de televisão, flui algo outro, que nos encanta. As histórias e as narrativas da copa de verdade, nas ruas, nos países, nos povos, no campo é fantástica. Sugiro aos mais incautos que persigam estas crônicas e relatos na copa em sítios como o Impedimento ou o Trivela. A história do garoto escocês que adora o atacante grego Samaras e o comovente depoimento do jogador sobre esta amizade. A façanha de Mondragon, o arqueiro cafetero que acaba de se tornar o jogador mais velho a atuar em um mundial, em três, na verdade. Drogba, que parou uma guerra em seu país. Eto se comparando a Obina e depois abraçando um moleque brasuca só pelo abraço. Das ruas de São Paulo, a cidade mais mau humorada do planeta as vésperas do mundial tomadas por uma intensa felicidade que se explica só e só pela bola, a esfera, a redonda, a menina, o balão. Do Maracanã, que vilipendiado, renasce num grito latino de chilenos,argentinos, uruguaios, colombianos e equatorianos. Do navio repleto de mexicanos. Das histórias de We Are The Bangladeshi Fans of Brazilian Football team, um país que não está na copa mas se reúne para falar, discutir, apreciar e se deixar encantar.

Do desespero dos conservadores americanos, porque lá nos States é o futebol que começa a despertar a multidão. Imaginem, no centro desta cultura mercantil, da vitória dos mais fortes, começarmos a apreciar o futebol como arte, como manifestação, como brinquedo e entenderemos as razões profundas deste temor. O futebol é outra cousa. E por isso mesmo não poderia ser tratado como simples mercadoria de gôndola.

Oxalá entendamos esta beleza e suas possibilidades, de fato infinitas... Merecemos. E muito.

A Fifa? Que vá a merda. Que é o seu lugar.

 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Em casa. Primeira parte.



O domingo me acorda duas horas antes do combinado com o despertador. Tento não fazer barulhos ao me levantar e dou um silencioso cheiro nas minhas meninas antes de vestir os óculos e trancar a porta ao sair. Sabia aonde tinha de ir. Acho que desde sempre.

Meu Tejo. Minha Macondo. Minha Tatooine. A 409 sul.

Dentre os presentes que recebi de meus pais, não há outro mais importante que uma infância em Brasília durante os anos 80. A quadra, então, era um mundo a ser explorado. Um mundo imenso. Um mundo de poucos perigos, de amizades diárias, de liberdade infinita à distância do assobio paterno.

E a 409 era a minha quadra. Minha. Cercada pela L2 a leste, pelos militares da 209 a oeste, pelos briguentos da 408 ao norte e pelos rivais, na bola e nos amores, da 410 ao sul.

A minha quadra. A corda bamba e a rede num mesmo lugar.

409 sul. Onde estou agora, sentado sobre o banco de concreto do Areião. Ali, sob aquele pé de jamelão, dei meu primeiro beijo, após pequena fraude em uma salada mista. Mais adiante, ao lado do Bloco D, saí na mão com um moleque. Mais tarde, no mesmo dia, era meu melhor amigo.

Os pés me guiam pela velha quadra, ampla como a generosidade de Lúcio: aqui jogava botão, meu primeiro time de galalite conquistado em um jogo à vera. Ali, a temível guia do G, a calçada mais alta da quadra, o troféu máximo a ser conquistado de peixinho sobre uma extra light. Só quem subiu de peixinho a guia do G, engolindo o medo da queda e do vexame, sabe o que é uma vitória.

Passo lentamente pelo Maconhão, o campo das peladas dos meninos e de outras diversões para os mais velhos. Está mudado: agora há parquinho e árvores, que certamente dificultariam – mas não impediriam – nossas pelejas. Vejo a Igreja Metodista onde pichei, sob um pânico nauseante e em trêmulas letras, algum pseudônimo. Sinto o cheiro da primeira namorada sob a flamboyant em que a aguardava voltar da escola. A mesma árvore.

Atravesso a fronteira para a 410 e vejo o antigo apartamento de minha avó, onde testemunhei o equívoco de Toninho e Júnior. Volto e gasto alguns minutos em frente ao Bloco C, onde – ao lado do meu Velho – acompanhei Galo perder o penal. Nesse dia, o Velho me garantiu que Zico não erraria. Não sei se já o perdoei.

As Copas de nossa infância forjam, em bruto ferro, nosso caráter. Definem. Amaldiçoam. Perseguem. Todos os meninos da 409 sul. De todas as 409 sul. Todos estão presos à dureza da derrota inesperada. À dureza da derrota do mais forte. À dureza da derrota da beleza.

É a nossa cicatriz. Nossa marca de nascença. Nosso troféu de guerra. Nossa bandeira.

É quase meio-dia quando os cacos da minha existência dão uma trégua e lembro que é bom me aprumar. O jogo é mais cedo hoje. Às 13.

Suíça e Equador, no velho Mané, onde vi Brasil e Alemanha Ocidental com meu Velho. Uma Copa na minha cidade. Uma Copa na 409 sul.

Senhores, isso não é pouco.

Demetrius Cruz
Brasília, 15.06.14, antes de Suíça e Equador.