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quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contos de Leiteria


Devo ter organizado uns mil campeonatos de botão quando era moleque. A maioria desses campeonatos joguei sozinho. O Estrelão no meio da sala, times espalhados pelo tapete. Até a mesa de jantar era estádio, abrigava finais de Maracanã. Obviamente, por razões absolutamente evidentes, o São Paulo costumava faturar muitos torneios. Eram raras as derrotas do tricolor. Mas houve uma Portuguesa de Desportos, de Enéas e Wilson Carrasco, que numa tarde, entre o Speed Racer e o Savamu Demolidor, produziu um milagre para erguer catedral.

A finalíssima do torneio tinha que caber no tempo entre os desenhos. A história de Savamu estava empolgante, ele devia enfrentar algum gigante tailandês depois de ter sido derrotado numa primeira luta e treinado sozinho numa floresta para a revanche. O famoso chute no vácuo foi treinado contra árvores e o lutador saltava e caia numa fogueira que ficava no relvado. Ou seja, não dava para perder. O fato é que Portuguesa e São Paulo entraram no campo logo após o Corredor X salvar pela enésima vez o pescoço do irmão. A campanha da Lusa tinha sido excelente. Enéas estava literalmente possuído. Acho que na semifinal destroçou o Corinthians de Palhinha e Geraldão. Se não foi o timão, a vítima deve ter sido o Palmeiras, de Beto Fuscão e Polozzi. Já o São Paulo teve uma vida mais tranquila, vencendo a Ponte Preta de Dicá, o Guarani de Zenon e triturado o Fluminense de Edinho e Pintinho. Lembro de tudo. Arrepia contar o que aconteceu depois...

Na partida, numa saída de bola, eu literalmente escorreguei a palheta que comandava as ações do volante Almir. A bolinha chata de jogo de War resvalou no Wilson Carrasco e foi parar no fundo do gol do Valdir Peres. Inacreditável. Eu quase invalidei o gol, não tínhamos árbitro de vídeo, meu irmão devia estar no quarto, meus pais trabalhando. Ninguém ia saber de nada. Mas a consciência, sei lá porque, pesou. Gol. E pronto. Tinha tempo para virar. O que se sucedeu foi um massacre. O São Paulo bombardeava a defesa da Lusa. Eu jogava usando uma regrinha de cinco toques para cada time em cada jogada. Nas saídas de bola da Lusa, misteriosamente, as bolas batiam nos botões do tricolor. Mudava a posse da bola, então. O relógio correndo. Os comerciais da groselha Milani e do DD Drim, "nesta festa preciso por um fim", indicavam que em poucos minutos começaria a luta do século. Dei uma porrada num jogador do São Paulo, dentro da área. Expulsei o zagueiro da Lusa. Marca da cal, penal, bateu, o goleiro Moacir pegou. Palavrão. Na tela da TV, a música do Savamu: "Ele se julgava o demolidor, ele se julgava o demolidor". 

Mas o assombroso, o sobrenatural, ainda estava para acontecer. Da defesa do goleiro a pelota foi parar nos pés de Eneás. Ou seja, bola com a Lusa. Displicentemente eu toco com a palheta no botão. A bola ganha uma força sobrenatural e cai na gaveta do Valdir, encobrindo Oscar e Dario antes de morrer no fundo da meta. Dois a zero. Depois daquele dia nunca mais duvidei de fantasmas e que espíritos comandam por vezes as partidas de futebol. Confesso que remoí todos os lances e quase que me estraga o desenho, inconformado que estava. Anos depois, lendo Nélson Rodrigues, reconheci na leiteria o Castilho que morava no Enéas do meu jogo de botão da Portuguesa. Entendi tudo.

Dias depois, Eneás foi transferido para a Itália, acho que para o Bologna. Mas no campo de botão lá de casa virou uma entidade e resolvia sempre jogos impossíveis. Cheguei a escalá-lo no lugar do Éverton numa quinta feira a tarde chuvosa e sem tv em casa. A única partida que fez pelo São Paulo. 

Vendo a partida da Argentina contra a Nigéria, revi e reforcei minhas crenças. Não foi o Eneás, evidentemente. Mas aquele gol do lateral esquerdo, de perna direita, que segundo a própria mãe do jogador em entrevista aos periódicos portenhos só servia para subir nos degraus do ônibus, aos quarenta e larai do segundo tempo, foi de Batistuta, que encarnou no pé do lateral, ali, bem ali, e aos olhos de toda a multidão do mundo. 


26 de junho, 2018. Argentina e Nigéria. Islândia e Croácia. França e Dinamarca. Peru e Austrália.






   

quinta-feira, 21 de junho de 2018

O tango do sexo das corujas mortas



Ser desclassificado de qualquer torneio é morrer um pouco, sempre. Desde a desclassificação evidente, que só machuca o peito, até aquela que é cruel, com requintes de filmes B e temperos de fim de mundo, que chegam a dilacerar tecidos. 

Lembro de um pelotaço de Ademílson, atacante vindo de Cotia, no São Paulo numa fase eliminatória de Libertadores, contra o Galo, em pleno Morumbi. A bola absolutamente lasciva, pingando na área, goleiro batido e o nosso atacante dá um chute galaxial, a redonda virando satélite. Já estávamos com dez em campo, desconfio, mas um gol ali era batata e classificação. Passei a semana fechando os olhos e a imagem que aparecia era o satélite quicando na lua. 

Se o jogo é de quarta a noite, virá o combo insônia, refluxo e saudade, rememorando o que poderia ter sido. É uma das sensações mais intensas que alguém pode viver. E sobreviver. Porque o campeonato seguinte começa em breve.

O cacete de uma eliminação na Copa é que existe uma maldição a mais: somente dali a quatro anos é que o gato que desvencilha do telhado. Sim, tem a questão das eliminatórias, que podem piorar o gosto de café frio. Ou seja, o dia que se sai da copa é um dia moribundo. Ainda mais se as conexões com o seu time estão presentes, em afeto e carinho. 

É evidente que os peruanos estavam de caso amarrado com o selecionado. Todas as matérias de recheio das coberturas esportivas do certame russo apresentaram rostos pintados de vermelho e branco, exaltando as qualidades do time, fazendo barulho nas ruas e nos estádios. A festa na partida de despedida do Peru de Lima, numa partida contra a Escócia, se a memória não me trai, foi daquelas deliciosas quizombas, de dar um tiquinho de inveja, remorso, espinha de peixe na goela. E o Peru já está fora da Copa, apesar de ter feitos dois jogos bastante razoáveis. Hoje o vermute não foi digestivo.

Vi boa parte do jogo entre franceses e peruanos. De uma lado um time enjoado, com muita qualidade aparente nos toques de bola e com um volante descomunal de bom, Kante. Mas um time confuso... por não encontrar uma palavra mais adequada para descrever o trem. Do outro, um time brioso, mas cheio de incompatibilidades entre a bola e os pés. Mas os sulamericanos jogaram como puderam, emparelharam o jogo. Lá pelas tantas, partida já com o placar de um a zero, a bola vem em direção a um dos peruanos menos famosos e o cara acerta na veia da redonda, dá para ouvir o barulho quando escrevo. Do pé na bola, um movimento levemente curvo, parecendo reto, um canhão. O tempo pára. A transmissão da tv, a narração do rádio, a respiração. Numa velocidade incrível e inapelável, a bola passou pelo goleiro e explodiu no travessão. Ali onde a coruja faz ninhos. Ali onde os sonhos viram passado. Ali onde não há o chuá delicioso do som da pelota se emaranhando as teias da baliza e, sim, um estalo de ferro. Excesso de ferro, revelam os exames de sangue, problemas de fígado. A eliminação se deu ali. Nunca mais. Quando a bola volta ao campo de jogo ela já é outra, deformada, rasurada.

É lindo também, nesse jogo de palavras e sentidos, que nós chamamos em muitas obras de arte, na literatura, nas telas e nas alcovas, o momento do orgasmo de "pequena morte". Como se depois, não houvesse mais nada. Deve ter sido o que Modric sentiu depois de desferir o chute que resultou no segundo gol croata contra a Argentina. Croatas e peruanos morreram um pouco hoje. Os argentinos não: seguem vivendo em seu tango dramático, "por una cabeza". 

21 de junho, 2018. Dinamarca e Austrália. Argentina e Croácia. Peru e França.




sábado, 16 de junho de 2018

Como sói acontecer



José Sérgio Presti, o Zé Sérgio, ponteiro esquerdo do São Paulo no fim dos setenta e começo dos oitenta - e que depois jogou no Santos, no Vasco e no Japão, foi o meu Pelé. De certa forma foi a partir de suas jogadas, de seus dribles e avanços, de seus gols, que comecei a ver o mundo com mais carinho pela esquerda do campo. 

Foi num natal entre 77, e aí deve ter sido Papai Noel, e 79, e aí devem ter sido meus pais, que ganhei os primeiros times de futebol de botão, meus grandes e saudosos camaradas, que me acompanhariam brincadeiras e vida adentro. Eram dois times de botão daqueles de acrílico, de prenda de festa junina, do São Paulo e do Santos. E junto aos times, o Estrelão, o meu Morumbi. Escalo o time que fez a partida inaugural, em voz de repórter de campo: "Valdir, Getúlio, Bezerra, Chicão, Neca, Serginho e... pela ponta esquerda, confirmado, Zé Sérgio, com a ooooonze!". No Santos, tinham Nilton Batata, Rubens Feijão e Juari. O jogo deve ter acabado com vitória tricolor, provavelmente por goleada. Mas, certamente, Zé esmerilhou: fez gol, passou, driblou, bateu lateral, escanteio, foi zagueiro e tudo mais. Eu tinha um caderninho que anotava os jogos e resultados das minhas partidas. Quando o caderninho se fechou, devia estar na faculdade já, o Zé devia ter uns mil gols.

Aquela jaqueta onze foi motivo de sonho. E de dores: Zé teve a carreira abreviada por contusões, por ter quebrado a perna e por um episódio de doping por causa de Naldecon ou dalgum tipo de antigripal similar. Odeio remédios,  abaixo a medicalização! Os zagueiros só paravam o Zé na porrada. Eu chorei quando o Zé, voltando do estaleiro, teve uma recidiva num jogo de meio de semana. Naquela época, na Record, durante o bangue bangue a italiana, os resultados dos jogos do campeonato paulista eram mostrados por pequenos tipos na parte inferior da tela. Os faroestes espaguetes e o Zé Sérgio. Memórias, sempre elas. E trilha do Morricone.

Não importam os analistas econômicos dizerem todos os sacrossantos dos dias que para a economia ir bem temos que ter austeridade, equilíbrio fiscal e aquele monte de discursê sobre competitividade, eficiência, gestão privada e lufts. Para mim, o fato, o dado concreto, o calor do asfalto, Zé Sérgio foi o maior craque que vi jogar. As vezes eu acho que estes comentaristas esportivos, a tal crônica especializada, repete uma série de numerozinhos e obviedades para encaixar realidades em suas teses, para dizer que um  time ou um jogador são melhores que outros. Mas é o bolsa família que tira as pessoas da miséria, que inclui famílias e famílias no tal mercado, é o SUS que possibilita algum tipo de atendimento quando a saúde falha. Planilha boa é a do excel, quando resolve teu dilema ou quando preenche as classificações dos grupos automaticamente depois dos palpites no bolão.

Cristiano Ronaldo é um Zé Sérgio, desconfio. Mas é, em sua intensidade e objetividade, uma aula de economia. Dizem das vaidades de Cristiano, de sua soberba de quem sempre anda de queixo erguido, de seus gols de penal e até dos cremas que passa na face. Mas ali, no petardo, no cotidiano, nos diversos e rotineiros mísseis que viram golos, sempre o vejo abraçando os camaradas de time e sorrindo para algum guri que vive no Tejo...

Uma última notinha, antes d´ir: Hoje, no meu Estrelão, provavelmente o Zé estaria a tabelar com o Cavani, procurando algum jeito de retribuir o Dario Pereyra, o Pablo Forlan, o Lugano e o magnífico Pedro Virgílio Rocha, um Sérgio Leone das quatro linhas. 

16 de junho, 2018. França e Austrália. Argentina e Islândia. Peru e Dinamarca. Nigéria e Croácia.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

"O el asilo contra la opresión..."


No caminho para Cuiabá fui pensando, muito, no tom da escrita e do relato. Desde a maldita definição de que a Copa do Mundo seria no Brasil sentimentos se misturam, contraditórios. Como todos, alias. Os sentimentos são sempre possíveis.

Por um lado, carambola cósmica, desde pequeno queria uma copa aqui. E quando digo aqui, nas minhas memórias, estão os jogos na Rua Javari, no Canindé, no Pacaembú, no Morumbi, no Palestra e até no Parque São Jorge. Teríamos jogos em Moça Bonita, na Rua dos Eucaliptos – que já nem existe mais. Sim, era uma copa de menino que recortava escudo em revista para colar em botão que ganhara em prenda de festa junina. Mas, já disse noutras e noutras vezes, futebol são essas reminiscências.

Por outro, carambola atômica cor de limão, a nojeira disso tudo. Dos gastos com uma dinheirama sem fim para os mesmos de sempre do Brasil Maravilha, das empreiteiras de sempre, dessa gente nojenta de sempre que vê no Estado uma enorme teta de vaca, sem a vaca, só a teta. Das corruptelas, das corrupções, das melecas, da funesta relação entre o público e o privado. Do patrimonialismo, da cara de pau, da rede Globo e quejandos. Do cinismo do presidente operário que para se manter mais calmamente no poder fez o pacto com a camarilha de cima, que em nenhum momento tentou tomar as rédeas do processo de construção da copa, deixando esta festança para Ricardo Teixeira e clube e, posteriormente, para a figura enauseante, podre, caquética, mequetrefe, acaju, do governador biônico paulista, cartola de sempre.

O futebol é, sim, daqueles elementos que definem o país. Que nos caracteriza, define, desenha, molda. É um traço cultural do povo brasileiro. A Copa é a copa. E por isso, de tão relevantes, não deviam ser tratadas desta forma patife.

Mas o jogo é Chile e Austrália. Um calor de matar cactus assombrava junho. Não houve, como na noite da estreia, manifestações, gás de pimenta, sururu. Nem vaia. O estádio gritava “Chi-Chi-Chi... Le-Le-Le”. Vermelho e azul. Estava bonito. De fato, só por este jogo, meu ceticismo com relação ao certame se desmontava: havia festa e celebração. Do lado de fora, brasileiros, chilenos e paraguaios, muitos, sem ingresso, faziam uma festa digna, alegre, repleta de cores. Dentro do estádio, tomado por uma maioria chilena, muita cantoria. O estádio veio abaixo quando Bachelet apareceu no telão. E se gritavam palavras contra Pinochet, para desespero da FIFA – no telão era possível perceber que as câmeras fugiam das faixas e camisetas que mandavam à merda o ditador pulha. Arrepiou o hino chileno. Mesmo. No telão, Salas, Zamorano, Figueroa e Caszely. Eu fui ao estádio com uma camisa com a cara do Caszely, do filme “Rebeldes do Futebol”, documentário do Eric Cantona. Sorri.

Sim, alguns torcedores e torcedoras da Austrália estavam por lá. Mas era dia de pisco. Sem dúvida.

Bola rolando e.... do calor, a chuva. Uma quimera. Aparentemente o sistema de drenagem passara no teste crucial. Mas uma poça na entrada de uma das áreas e um charco embaixo de um dos arcos – fazendo lembrar estádios da década de 70 espalhados pela Latino América – davam um ar de verdade ao “clean” padrão FIFA.

Valdívia – e camisas do Palestra eram visíveis nas arquibancadas – arrancou pelo meio, fintou um, dois, três, deu o famoso drible do chute no ar, o zagueiro caiu ao chão numa imagem que certamente fará parte das antologias da copa... mas ao entrar na área deu um chute tão mixo que o goleirão até sorriu antes de pegar a rechonchuda.

Lá pelas tantas, Alexis, fez um golaço. Bolaça de Valdívia. Encobriu arqueiro e zagueiro. O Chile mostrava força. Só não contava com a presepa, aos trinta e sete do segundo tempo. O goleiro escorregou na poça e a bola sobrou libre para um de camisa amarela – não sei, confesso, o nome do canguru. Um toquinho sutil, suave, belo até. Empate.

A pequena torcida da Austrália fez grande estardalhaço. Voltava o calor. Lá fora, eram os brasiguaios a cantar e a convencer os chilenos que contra Espanha e Holanda a sorte sorriria. Faltou vinho no pantanal.

Chile 1 x 1 Austrália (Alexis Sanches e Archie Thompson)
Cuiabá, 13 de junho de 2014.

Por Fernando Amaral.