sexta-feira, 15 de junho de 2018

Spaciba!



É inevitável lembrar da União Soviética quando a gente está a viver uma copa do mundo na Rússia. Para os do século vinte, a URSS é mais do que memória e história. Os soviéticos foram durante quase todo o século que passou a metade da laranja, muitas vezes a mais gostosa e por vezes a mais sinistra.

Uma das digressões que sempre faço como os meus botões é imaginar um título mundial dos soviéticos numa copa do mundo e se, com o caneco, Gorba teria feito o estrago que fez. A URSS teve o Pelé e o Zico dos goleiros: Yashin, a aranha negra, e Dasaev. Com bons times, em 66, podia ter tido mais sorte. Em 82 - que saudade do naranjito - sucumbiu num grupo de segunda fase que tinha a Polônia dos geniais Boniek, Lato e Deyna. De fato, portanto, os soviéticos nunca tiveram a grande chance do caneco, nem a Jules nem a atual. Mas será que? 

No mundo ingênuo da Guerra Fria, numa luta de caubóis em escala lunar, as nossas percepções de mundo eram quase sempre referenciadas na disputa entre o mundo livre americanos e os tiranos comunistas soviéticos. Um verdadeiro Fla Flu.

Talvez, entre as propagandas possíveis, a vitória no futebol tivesse uma importância fundamental, porque os soviéticos ganhariam a disputa no jogo que o mundo todo adora. Os americanos tem esportes próprios, sabemos, como forma de manter uma hegemonia num campo onde não há disputa. São digressões estupidamente simplificadas, simplificantes, pueris. Mas são. Aliás, penso se o fim da Iuguslávia teria sido menos sangrento se os excelentes times iuguslavos tivessem ganho alguma das copas em que seus times eram realmente fortes, assim como o Marechal. E se a Tchecoslováquia seriam duas.

É óbvio solar que as cousas do mundo são muito mais complexas. O mundo está mais para as explicações da Mafalda de Quino do que para Chuck Noris. Somos teias. Mas o futebol como metáfora ajuda nos botecos. No campeonato de seleções dos meus estádios imaginários, do campo de futebol do botão ou dos tabuleiros de jogos como o Escrete, o Brasil podia sempre ganhar com gol do Zé Sérgio no final, driblando a defesa alemã como faca quente em manteiga fora da geladeira. Mas Cuba chegaria em algumas finais, os soviéticos também e Moçambique seria imbatível depois de ler Mia Couto.

Ontem, por instantes, imaginei um engenheiro de som doidivanas invadindo a torre do estádio e colocando a "Internacional" no lugar do hino russo. Um violino de Jorge Mautner ao fundo e o povo da Rede Globo em parafuso. E o Misha, o urso mais simpático de todos, a mascote das Olimpíadas de Moscou, dando o pontapé inicial. Acordei, caminhando pelo centro de São Paulo, cada vez mais parecido com cenário de filme de apocalipse zumbi: "Aluga-se". 

A Mafalda temia os soviéticos, os americanos, os chineses, o imperialismo ianque, o imperialismo soviético, as autoridades em geral, colocava esparadapos em seu globo de brinquedo. A Mafalda, argentina, certamente estava nas ruas de Buenos Aires comemorando a vitória das mulheres do mundo no dia 13, na votação na Câmara dos Deputados portenha, sobre a legalização do aborto. É inevitável, durante a copa, pensar num outro mundo possível, onde Irã e Marrocos despertem a mesma atenção que um Barcelona e Manchester. E que as ruas possam estar ocupadas com festas. E sorrisos.


15 de junho, 2018. Uruguay e Egito. Irã e Marrocos. Espanha e Portugal.



2 comentários:

  1. Texto fabuloso. Nunca tinha feito uma reflexão sobre o que significaria em termos político e geopolítico a antiga URSS ganhar um caneco de Copa do Mundo. Mas me arrisco a dizer que a Ioguslavia esteve mais perto desse feito, com a geração de jogadores dos anos 90. Foram campeões mundiais sub qualquer coisa (Mundial sub 20 acho), e dizem que na Sérvia atual, a geração mais antiga comenta que o Brasil só ganhou em 94 graças a desintegração ioguslava. Nunca saberemos. Abraço. Coloque no grupo sempre seus textos.

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    1. Marco!! Obrigado pela visita e pelo comentário. Sim, acho que a Iuguslávia - e a Tchecoslováquia - tiveram mais próximas e mais times. Aliás, a Tchecoslováquia foi duas vezes vice campeã do mundo, em 34 e 62, perdendo para nós. Abração!

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