sábado, 30 de junho de 2018

Silêncio sorridente



Outro dia vi um vídeo filmado em Beirute, no Líbano. Era uma espécie de cortejo, onde as pessoas levavam um caixão com a bandeira da Alemanha, como num cortejo fúnebre. Mas repleto de buzinas e um tambor. E quem acompanhava o cortejo eram pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira, portando bandeiras do Brasil. O vídeo foi filmado no dia dos jogos de Brasil e Alemanha, na data de desclassificação dos alemães desta copa da Rússia.

Por aqui a gente não tem a menor noção do que representa a seleção brasileira de futebol. Não tem a ver com a CBF, com o governo de ocasião, com a patrocinadora da camisa. Em países como Bangladesh, Índia e Haiti foram relatadas histórias comoventes, emocionantes, bárbaras, de torcidas pelo Brasil, com gente pintando rua, fazendo oferenda, arrumando confusão com vizinho. Há uma identificação com a seleção, que é política, cultural, esportiva, lúdica. As matérias foram publicadas nos grandes portais e nos excelentes portais de futebol, como o Trivela. Ouso aqui uma digressão de boteco: a química entre a seleção brasileira é comparável às torcidas dos grandes e ricos times europeus, mas com uma dimensão fantástica, por ser uma aproximação por afinidades culturais, esportivas, política. Sim, politica no sentido de um reconhecimento da mágica que é um país pobre, miserável, com uma história repleta de assaltos, ganhando por cinco vezes o torneio mundial de futebol. 

Argentina, Uruguai e Brasil desafiam a lógica no assunto futebol. No esporte que todos os povos praticam e gostam, três países periféricos conseguiram feitos impressionantes e rotineiros. Enfrentam ombro a ombro e com vantagens, muitas vezes, os colonizadores, desafiam as potências, fazem os Estados Unidos parecem uma republiqueta de merda, como o cinema americano adora e reiteradamente retrata os países mais pobres de todo o mundo. E, o Brasil, o Brasil, meus caros, é a seleção que está sempre lá, que todos sabem que pode ganhar o caneco. Não faço aqui uma patriotada qualquer, que patriotismo é uma ideia idiota, feita para alimentar ódios que afastam o pensar daquilo que realmente importa. Falo de uma importante questão de estima, de levantar cabeça, de sonhar. A capacidade de sonhar.

Estamos sendo negligentes, muito, com o futebol como este elemento simbólico do Brasil como civilização. Entregamos o futebol ao negócio, deixamos um falso discurso de que são negócios privados os agentes que regulamentam o esporte. Perdemos a imensa oportunidade na copa passada, realizada aqui, de transformar o nosso mundo. Deixamos que um cafajeste como o Marin, algoz de Vlado, colaborador ativo da ditadura militar, fosse o "organizador" da Copa, presidindo a CBF. Deixamos a federação internacional de futebol associação criar leis, regras, conveniências. Fomos covardes. Continuamos sendo. Nunca que a fifa seria mais forte do que nós numa quebra de braço sobre os rumos do mundial, porque o mundial não pertence à fifa, embora queiram narrar assim. O mundial é aquele vídeo de Beirute. O mundial é o gol do Panamá e a festa do primeiro gol em copas num jogo onde tomavam de seis. Os donos do mundo cagam as regras nas nossas cabeças porque a gente não reconhece o nosso lugar, nossa força, nossa vitalidade. A gente prefere alimentar uma "rivalidade" com a Argentina ao invés de organizar um campeonato com o hermanos em Bangladesh, na Palestina, no meio do Kosovo ou participar da Copa da África como país convidado.

Não foi por acaso que instrumentalizaram o uso da camisa da seleção para os eventos patéticos que jogaram o país nesta selva de desesperança. Porque reconhecem a força simbólica e querem domá-la, para longe de nossas "Bangladeshes".

Tem um filme lindo chamado "Shooting for Sócrates", que conta a história da Irlanda do Norte na perspectiva de um menino que adora futebol e do jogo entre irlandeses e brasileiros na copa de 1986, no México - aquele jogo do gol do Josimar. A seleção brasileira é um instrumento que produz sonhos. E é esta a capacidade, a de sonhar, que nos transforma, a todos. Mais do que torcer pela seleção a gente precisa recuperar o que é nosso. 

Esta sexta que passou, primeiro dia sem jogos na copa da Rússia, fez aniversário de 60 anos do caneco na Suécia. Devia ser feriado nacional. E não estou brincando.

29 de junho, 2018. dia sem jogo, véspera das oitavas. Sobre o filme: http://www.cafecomfilme.com.br/filmes/driblando-a-guerra




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