segunda-feira, 18 de junho de 2018

Juiz ladrão!!!!


Uma das piores invenções da humanidade é o árbitro de vídeo nas partidas de futebol. Aquele um que fica no ar condicionado, bedel de costumes e analisador de lances polêmicos, distante do calor do campo, presente no imaginário como o que vai sarar a injustiça no campo. Trata-se de grande besteira. Enorme, retumbante, fascinante.

Eu sempre escrevo que futebol são reminiscências. Muito, mas muito mesmo, do que acontece ali no campo tem pouca ou nenhuma importância. Aliás, pensando bem e que mal tem, o jogo dentro do campo inúmeras vezes é a coisa mais chata do futebol. Há uma transcendência no jogo, uma esfera confusa, contraditória, maravilhosa, dolorida, alegre, efusiva, desastrosa. O gol na data do casamento, a derrota na véspera daquela prova de química, os cantos dentro do ônibus a caminho do estádio, o sanduba de mortadela, o pernil, a namorada que foi com você no jogo. O cantar da torcida, o frio absurdo do cimento do gélido Morumbi, você e mais quinhentas testemunhas numa quarta feira de noite infame e sem condução, tendo que andar até a Rebouças para encontrar algum jeito de ir para casa. Sim, tem o campeonato, tem a briga, tem o quiprocó, tem o erro da arbitragem, tem a pantomima dum chute horroroso. Tem nó tático, tem vitória nos acréscimos, tem derrota humilhante e tem tirar pontos do campeão invicto. Tem rocambole, pipoca doce de isopor, cerveja quente. Tem Nélson Rodrigues, tem "O drible" do Sérgio Rodrigues. Tem Luis Airão, Chico Buarque, Nick Hornby e até o Iron Maiden. Tem o grupo de amigos no uátizapi. Tem o não dormir porque o time perdeu, xingando técnico, jogadores, preparador físico, diretor de futebol e o presidente da república, com azia e má digestão. 

O diabo, e o mau diabo, porque o bom gosta de sambar, é que de uns tempos para cá resolvemos emprestar ao futebol os sentidos morais de uma vida cheia de virtudes. O futebol deixando de ser válvula, arte, música, brincadeira, para ser um simulacro das boas relações sociais, quase que uma reedição dos dez mandamentos. Não roubarás, não matarás, não simulará nem penal nem cusparada. E como nas relações sociais, na vida em concreto, a gente não consegue reproduzir a totalidade dos mandamentos sem dar uma escorregada no quiabo de vez em quando, resolvemos escolher o futebol como lugar do "justo".

Não, evidentemente que não. Não é lícito, legítimo, correto, desejado, vencer uma partida com um gol ilegal. Não vale tudo. Mas a linha onde se constata a má-fé, a blasfêmia, a injúria não é tão firme e resoluta assim. Temos mania de dar como exemplo de mau caratismo o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra. Um gol de mão, da Argentina contra a Inglaterra, cazzo! Esquecemos tudo o que ao redor daquele gol se encerra. E julgamos com nossas virtudes todas de quem nunca esquece de escovar os dentes. Mas o penalti que Nilton Santos fez contra a Espanha na copa do Chile e pulou para fora da área, para enganar o juiz, foi o que? A cotovelada de Pelé? Ou o esperar no vestiário, excedendo os quinze minutos entre um tempo e outro, deixando os ingleses debaixo de um sol asteca de mil deuses no cucuruto, na partida mais difícil de 70? A nossa dupla moral, que a gente veste conforme o calor que está lá fora: ora um terno modelinho básico de boa costura ora uma sunga de crochê.

Miranda foi empurrado pelo suíço? Aaaaaah.... por favor.... qualquer jogada de área tem destas. Tem juiz que marca, tem juiz que não marca, tem zagueiro que reclama e tem zagueiro que não dá a mínima, porque puxou o calção do centroavante no lance anterior. Aí, o vestal, lá da cabine com ar condicionado, decide chamar o juizão para lhe dar conselhos ou veredictos. Não sei, mesmo, se me convenço da utilidade disso. "Segue o jogo!".

O futebol é lugar para reminiscências, saudades, memórias, lembranças - muitas delas infantis. Mas me parece que, ao contrário de buscarmos nisso toda a beleza e a infinitude do jogo, estamos é infantilizando a disputa: não se tolera mais a frustração, não se pode deixar espaço para o dúbio, vamos aplicar um corretivo para quem fez feio, menino mau. E como crianças que precisam de distrações para não pensar e questionar a merda de escola que lhes é oferecida nós deixamos que todo o debate sobre o jogo fique nisso de juiz ladrão, gastamos horas e horas nisso, fazemos discurso, fincamos o pé, birra e mais birra. Estamos todos impedidos.  



18 de junho, 2018. Suécia e Coréia do Sul. Inglaterra e Tunísia. Bélgica e Panamá.



Para quem não conhece, ou para quem quer se lembrar, uma cena antológica do filme "Boleiros" do Ugo Giorgetti, com o magnífico Otávio Augusto:

https://www.youtube.com/watch?v=E2Q2icAoKrQ



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