quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Em casa. Primeira parte.



O domingo me acorda duas horas antes do combinado com o despertador. Tento não fazer barulhos ao me levantar e dou um silencioso cheiro nas minhas meninas antes de vestir os óculos e trancar a porta ao sair. Sabia aonde tinha de ir. Acho que desde sempre.

Meu Tejo. Minha Macondo. Minha Tatooine. A 409 sul.

Dentre os presentes que recebi de meus pais, não há outro mais importante que uma infância em Brasília durante os anos 80. A quadra, então, era um mundo a ser explorado. Um mundo imenso. Um mundo de poucos perigos, de amizades diárias, de liberdade infinita à distância do assobio paterno.

E a 409 era a minha quadra. Minha. Cercada pela L2 a leste, pelos militares da 209 a oeste, pelos briguentos da 408 ao norte e pelos rivais, na bola e nos amores, da 410 ao sul.

A minha quadra. A corda bamba e a rede num mesmo lugar.

409 sul. Onde estou agora, sentado sobre o banco de concreto do Areião. Ali, sob aquele pé de jamelão, dei meu primeiro beijo, após pequena fraude em uma salada mista. Mais adiante, ao lado do Bloco D, saí na mão com um moleque. Mais tarde, no mesmo dia, era meu melhor amigo.

Os pés me guiam pela velha quadra, ampla como a generosidade de Lúcio: aqui jogava botão, meu primeiro time de galalite conquistado em um jogo à vera. Ali, a temível guia do G, a calçada mais alta da quadra, o troféu máximo a ser conquistado de peixinho sobre uma extra light. Só quem subiu de peixinho a guia do G, engolindo o medo da queda e do vexame, sabe o que é uma vitória.

Passo lentamente pelo Maconhão, o campo das peladas dos meninos e de outras diversões para os mais velhos. Está mudado: agora há parquinho e árvores, que certamente dificultariam – mas não impediriam – nossas pelejas. Vejo a Igreja Metodista onde pichei, sob um pânico nauseante e em trêmulas letras, algum pseudônimo. Sinto o cheiro da primeira namorada sob a flamboyant em que a aguardava voltar da escola. A mesma árvore.

Atravesso a fronteira para a 410 e vejo o antigo apartamento de minha avó, onde testemunhei o equívoco de Toninho e Júnior. Volto e gasto alguns minutos em frente ao Bloco C, onde – ao lado do meu Velho – acompanhei Galo perder o penal. Nesse dia, o Velho me garantiu que Zico não erraria. Não sei se já o perdoei.

As Copas de nossa infância forjam, em bruto ferro, nosso caráter. Definem. Amaldiçoam. Perseguem. Todos os meninos da 409 sul. De todas as 409 sul. Todos estão presos à dureza da derrota inesperada. À dureza da derrota do mais forte. À dureza da derrota da beleza.

É a nossa cicatriz. Nossa marca de nascença. Nosso troféu de guerra. Nossa bandeira.

É quase meio-dia quando os cacos da minha existência dão uma trégua e lembro que é bom me aprumar. O jogo é mais cedo hoje. Às 13.

Suíça e Equador, no velho Mané, onde vi Brasil e Alemanha Ocidental com meu Velho. Uma Copa na minha cidade. Uma Copa na 409 sul.

Senhores, isso não é pouco.

Demetrius Cruz
Brasília, 15.06.14, antes de Suíça e Equador.

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