Tinham
se conhecido na final da Copa do Mundo de 2010, 11 de julho, Soccer
City, em Joanesburgo, África do Sul. Conhecido talvez não seja a
palavra mais precisa – o máximo que conseguiram foi trocar, nem
tão de longe, nem tão de perto, alguns olhares. Foram olhares
generosos, é verdade, talvez de cobiça, desejo, e até esboçaram
alguns sorrisos. Mas depois nunca mais se viram. O Espanhol e a
Holandesa estavam atrás do gol defendido por Stekelenburg no segundo
tempo da prorrogação, aquele onde Iniesta, num quase voleio, uma
verdadeira chicotada de cima para baixo, mandou um foguete cruzado no
cantinho da meta da Holanda, garantindo finalmente o tão almejado
primeiro título mundial para a Fúria. O Carrossel amargaria o
terceiro vice-campeonato. Quando o árbitro apitou o fim da peleja, o
Espanhol, eufórico e sem saber muito bem o que fazer, saiu correndo
sem rumo pelas arquibancadas (não sei se esse setor existe nas
arenas FIFA, mas também não sei outra maneira de chamá-las),
embrulhado na bandeira vermelha e amarela, pulando e gritando como
criança. A Holandesa saiu cabisbaixa, ‘perdemos de novo, por pouco
de novo, sempre o quase’, sem pudor de esconder as lágrimas
sentidas, caminhando lentamente na direção contrária. A bandeira
azul, vermelha e branca tinha sido dolorosamente enrolada. Quando se
deram conta, se procuraram. Em vão. Na multidão, não se acharam.
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Salvador
mora no meu coração. Cidade querida, tantas cores e lugares
incríveis, onde minha esposa guarda raízes e onde viveu boa parte
da infância. O Pelourinho, o Rio Vermelho, o Farol da Barra, a
Universidade Federal. Em minha primeira passagem por lá, no já
longínquo 1999, além de sofrer com a ensolação braba, compreendi
com uma pontinha de inveja saudável o jeito inteligentemente
malemolente de ser e de viver do baiano. Passamos o dia na praia de
Stella Maris ou de Itapoã (a memória não é precisa) - e por isso
o inevitável arcar com as consequências das horas de sol implacável
na cachola. Até às onze da manhã, a barraca mais próxima esteve
fechada. Foi então que o barraqueiro chegou tranquilamente, sem
pressa. Vendeu sucos, refrigerantes, cervejas, porções diversas,
água de coco. Até às três da tarde, quando baixou a porta e foi
embora. Estranhei – já vai fechar? Me explicaram – já tinha
vendido o que precisava para dar conta daquele dia. Amanhã seria
outro dia, resolveria depois, no tempo certo. Sem estresse. É isso.
Trabalhar para viver, não viver para trabalhar. Lições sábias dos
soteropolitanos.
Estava
mais uma vez na capital baiana, sexta-feira, 13 de junho. Mau
presságio? Tinha chovido no dia anterior, aquela chuvinha fina e
chata, típica da cidade nos dias de inverno. Mas a manhã da sexta –
pulei da cama cedo, ansioso – já anunciava céu azul limpinho e
calor de fritar ovo no asfalto, uns 40 graus na sombra. Não foi
fácil chegar à Fonte Nova – trânsito intenso nas proximidades do
Dique do Tororó, orixás a dar as boas-vindas aos torcedores, além
de passeatas que exigiam Saúde e Educação padrão FIFA que tinham
saído de diferentes pontos da cidade, para se concentrar no entorno
do estádio. Havia cordão de isolamento. Um clima tenso, ar
sufocante, politicamente pesado. Manifestantes de um lado da rua,
policiais militares de outro, frente a frente. Sensação de que
qualquer aviãozinho ou bolinha de papel que fosse atirado, por
brincadeira, poderia fazer estourar reação em cadeia e saraivada de
cacetadas e “passou, levou”, pancadaria generalizada. Só podia
atravessar o ‘batalhão da segurança’ quem tivesse o ingresso em
mãos (agora, chamam de tíquete, bilhete, sei lá...). Passei. Não
levei. Entrei. Estádio arena é mesmo diferente, bonito, pomposo,
imponente. Se valeu o investimento? É discussão para outro texto.
Procurei meu lugar. Bom. Ótimo. Bem no meio do campo. Visão
privilegiada. A adrenalina bateu níveis estratosféricos e o corpo
chacoalhou quando as duas seleções entraram em campo. O relógio
marcava três e quarenta e cinco da tarde, em ponto. A Espanha vestia
camisas e calções azuis; a Holanda vinha toda de laranja.
Exatamente como na final da última Copa. Clássico do planeta bola.
Reedição da final da África do Sul. Eu estava lá.
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Desde
o primeiro minuto, o que se viu foram duas orquestras afinadíssimas
e com fome de bola em campo. Espetáculo único. Jogo ofensivo.
Futebol arte. Tique-taca versus carrossel. Tabelas e lançamentos de
deixar incrédulos e boquiabertos até mesmo os torcedores mais
velhos, aqueles que tinham visto Pelé, Garrincha e a inigualável
Seleção Brasileira de 70 a bailar nos gramados nacionais. Pep
Guardiola, técnico espanhol, aprendiz da escola holandesa, já
disse: “estamos apenas resgatando e colocando em prática o que os
brasileiros nos ensinaram”. Troca rápida e milimétrica de passes,
quase todos de primeira, entre Xavi, Iniesta e Xabi Alonso, a
reproduzir os famosos triângulos barcelonísticos, e Diego Costa
saiu na cara do gol para abrir o placar. Camisas vermelhas na
arquibancada pularam. A festa ficou mais bonita ainda quando, depois
de uma meia-lua – o popular drible da vaca – no zagueiro
adversário, já dentro da área, Fábregas tocou para Iniesta, que
devolveu com açúcar e com afeto para o meia-atacante do Barcelona,
já quase na linha do gol, goleiro batido. Fábregas só teve o
trabalho de empurrar a bola para dentro.
Lindo!
Aplausos! 2 x o Espanha. Fatura garantida? Goleada anunciada? Era só
a primeira meia hora de jogo, que correu vivo até o final do
primeiro tempo, com as duas seleções ignorando solenemente o calor
abafado. O segundo conseguiu ser ainda mais eletrizante. Depois de
uma bola na trave e de outras duas que passaram raspando, Van Persie
aproveitou um cruzamento da direita na medida e saltou sozinho para
marcar de cabeça. Alívio dos camisas laranjas nas arquibancadas.
Esperança. A explosão veio dez minutos depois, quando novamente Van
Persie, oportunista, aproveitou bola espirrada pela defesa e emendou
de primeira, no ângulo. Sensacional. Plasticamente perfeito. Com
dois gols e o empate, já seria o nome do jogo. Mas o atacante do
Manchester United, ex-Arsenal, talvez quisesse ser alçado à
condição de um dos nomes mágicos da Copa. Quando faltavam cinco
minutos para o final, arrancou da intermediária, driblou três
espanhóis (o primeiro levou no meio das pernas, o último ficou com
dor na coluna), deixou Casillas com a bunda no chão, corte seco,
cruel, e ainda olhou para a arquibancada antes de soltar o pé maroto
e fazer a bola morrer lentamente no fundo do gol espanhol. Gritos em
êxtase e bandeiras laranjas tremulando. Final de jogo. Holanda 3 x
2, de virada.
Levantei
para aplaudir, encantado, ainda embriagado pela beleza sublime do que
tinha acontecido em campo. Percebi então que vinha em minha direção
um Espanhol, feição triste, macambúzio. De repente, ele parou.
Arriscou um sorriso, primeiro envergonhado, rapidamente efusivo.
Sorriso de redescoberta. De reencontro. É comigo, pensei? Conheço
esse cara? De onde? Tentei acionar a memória. Mas ele foi mais
rápido, passou por mim como um raio e correu por mais uns dez
metros. Parou. Ficou ali, esperando. A Holandesa, que comemorava a
vitória, a revanche, ainda não tinha percebido. Ele se aproximou e
soltou o fatal ‘hola, que tal?’. Certeiro. Fulminante. Ela
sorriu. Quatro anos depois, no Brasil, um pedaço da África, na
negra Salvador, na Bahia de todos os santos e amores, voltaram a se
encontrar. Saíram juntos do estádio, abraçados. Ele, bandeira da
Holanda nas costas; ela, bandeira da Espanha enrolada na cintura.
Espanha 2x3 Holanda (Diego Costa, Fábregas e Van Persie -3)
Salvador, Fonte Nova, 13.06.2014
Chico Bicudo.
(Nota do Amaral: O Chico? Grande escritor, literato, jornalista. O Blogue dele? Supimpão, aqui: http://oblogdochico.blogspot.com.br/)
Pelamor, Chico!!! Que história é esta!!!! Grande gol!
ResponderExcluirGolaço, Chico. Delícia de texto. Beijão, Deco.
ResponderExcluirValeu, meu Rei. Beijos, Deco.
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