sábado, 21 de dezembro de 2013

A FÚRIA, O CARROSSEL E A BAHIA DE TODOS OS AMORES





Tinham se conhecido na final da Copa do Mundo de 2010, 11 de julho, Soccer City, em Joanesburgo, África do Sul. Conhecido talvez não seja a palavra mais precisa – o máximo que conseguiram foi trocar, nem tão de longe, nem tão de perto, alguns olhares. Foram olhares generosos, é verdade, talvez de cobiça, desejo, e até esboçaram alguns sorrisos. Mas depois nunca mais se viram. O Espanhol e a Holandesa estavam atrás do gol defendido por Stekelenburg no segundo tempo da prorrogação, aquele onde Iniesta, num quase voleio, uma verdadeira chicotada de cima para baixo, mandou um foguete cruzado no cantinho da meta da Holanda, garantindo finalmente o tão almejado primeiro título mundial para a Fúria. O Carrossel amargaria o terceiro vice-campeonato. Quando o árbitro apitou o fim da peleja, o Espanhol, eufórico e sem saber muito bem o que fazer, saiu correndo sem rumo pelas arquibancadas (não sei se esse setor existe nas arenas FIFA, mas também não sei outra maneira de chamá-las), embrulhado na bandeira vermelha e amarela, pulando e gritando como criança. A Holandesa saiu cabisbaixa, ‘perdemos de novo, por pouco de novo, sempre o quase’, sem pudor de esconder as lágrimas sentidas, caminhando lentamente na direção contrária. A bandeira azul, vermelha e branca tinha sido dolorosamente enrolada. Quando se deram conta, se procuraram. Em vão. Na multidão, não se acharam.


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Salvador mora no meu coração. Cidade querida, tantas cores e lugares incríveis, onde minha esposa guarda raízes e onde viveu boa parte da infância. O Pelourinho, o Rio Vermelho, o Farol da Barra, a Universidade Federal. Em minha primeira passagem por lá, no já longínquo 1999, além de sofrer com a ensolação braba, compreendi com uma pontinha de inveja saudável o jeito inteligentemente malemolente de ser e de viver do baiano. Passamos o dia na praia de Stella Maris ou de Itapoã (a memória não é precisa) - e por isso o inevitável arcar com as consequências das horas de sol implacável na cachola. Até às onze da manhã, a barraca mais próxima esteve fechada. Foi então que o barraqueiro chegou tranquilamente, sem pressa. Vendeu sucos, refrigerantes, cervejas, porções diversas, água de coco. Até às três da tarde, quando baixou a porta e foi embora. Estranhei – já vai fechar? Me explicaram – já tinha vendido o que precisava para dar conta daquele dia. Amanhã seria outro dia, resolveria depois, no tempo certo. Sem estresse. É isso. Trabalhar para viver, não viver para trabalhar. Lições sábias dos soteropolitanos. 
 

Estava mais uma vez na capital baiana, sexta-feira, 13 de junho. Mau presságio? Tinha chovido no dia anterior, aquela chuvinha fina e chata, típica da cidade nos dias de inverno. Mas a manhã da sexta – pulei da cama cedo, ansioso – já anunciava céu azul limpinho e calor de fritar ovo no asfalto, uns 40 graus na sombra. Não foi fácil chegar à Fonte Nova – trânsito intenso nas proximidades do Dique do Tororó, orixás a dar as boas-vindas aos torcedores, além de passeatas que exigiam Saúde e Educação padrão FIFA que tinham saído de diferentes pontos da cidade, para se concentrar no entorno do estádio. Havia cordão de isolamento. Um clima tenso, ar sufocante, politicamente pesado. Manifestantes de um lado da rua, policiais militares de outro, frente a frente. Sensação de que qualquer aviãozinho ou bolinha de papel que fosse atirado, por brincadeira, poderia fazer estourar reação em cadeia e saraivada de cacetadas e “passou, levou”, pancadaria generalizada. Só podia atravessar o ‘batalhão da segurança’ quem tivesse o ingresso em mãos (agora, chamam de tíquete, bilhete, sei lá...). Passei. Não levei. Entrei. Estádio arena é mesmo diferente, bonito, pomposo, imponente. Se valeu o investimento? É discussão para outro texto. Procurei meu lugar. Bom. Ótimo. Bem no meio do campo. Visão privilegiada. A adrenalina bateu níveis estratosféricos e o corpo chacoalhou quando as duas seleções entraram em campo. O relógio marcava três e quarenta e cinco da tarde, em ponto. A Espanha vestia camisas e calções azuis; a Holanda vinha toda de laranja. Exatamente como na final da última Copa. Clássico do planeta bola. Reedição da final da África do Sul. Eu estava lá.


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Desde o primeiro minuto, o que se viu foram duas orquestras afinadíssimas e com fome de bola em campo. Espetáculo único. Jogo ofensivo. Futebol arte. Tique-taca versus carrossel. Tabelas e lançamentos de deixar incrédulos e boquiabertos até mesmo os torcedores mais velhos, aqueles que tinham visto Pelé, Garrincha e a inigualável Seleção Brasileira de 70 a bailar nos gramados nacionais. Pep Guardiola, técnico espanhol, aprendiz da escola holandesa, já disse: “estamos apenas resgatando e colocando em prática o que os brasileiros nos ensinaram”. Troca rápida e milimétrica de passes, quase todos de primeira, entre Xavi, Iniesta e Xabi Alonso, a reproduzir os famosos triângulos barcelonísticos, e Diego Costa saiu na cara do gol para abrir o placar. Camisas vermelhas na arquibancada pularam. A festa ficou mais bonita ainda quando, depois de uma meia-lua – o popular drible da vaca – no zagueiro adversário, já dentro da área, Fábregas tocou para Iniesta, que devolveu com açúcar e com afeto para o meia-atacante do Barcelona, já quase na linha do gol, goleiro batido. Fábregas só teve o trabalho de empurrar a bola para dentro.


Lindo! Aplausos! 2 x o Espanha. Fatura garantida? Goleada anunciada? Era só a primeira meia hora de jogo, que correu vivo até o final do primeiro tempo, com as duas seleções ignorando solenemente o calor abafado. O segundo conseguiu ser ainda mais eletrizante. Depois de uma bola na trave e de outras duas que passaram raspando, Van Persie aproveitou um cruzamento da direita na medida e saltou sozinho para marcar de cabeça. Alívio dos camisas laranjas nas arquibancadas. Esperança. A explosão veio dez minutos depois, quando novamente Van Persie, oportunista, aproveitou bola espirrada pela defesa e emendou de primeira, no ângulo. Sensacional. Plasticamente perfeito. Com dois gols e o empate, já seria o nome do jogo. Mas o atacante do Manchester United, ex-Arsenal, talvez quisesse ser alçado à condição de um dos nomes mágicos da Copa. Quando faltavam cinco minutos para o final, arrancou da intermediária, driblou três espanhóis (o primeiro levou no meio das pernas, o último ficou com dor na coluna), deixou Casillas com a bunda no chão, corte seco, cruel, e ainda olhou para a arquibancada antes de soltar o pé maroto e fazer a bola morrer lentamente no fundo do gol espanhol. Gritos em êxtase e bandeiras laranjas tremulando. Final de jogo. Holanda 3 x 2, de virada.


Levantei para aplaudir, encantado, ainda embriagado pela beleza sublime do que tinha acontecido em campo. Percebi então que vinha em minha direção um Espanhol, feição triste, macambúzio. De repente, ele parou. Arriscou um sorriso, primeiro envergonhado, rapidamente efusivo. Sorriso de redescoberta. De reencontro. É comigo, pensei? Conheço esse cara? De onde? Tentei acionar a memória. Mas ele foi mais rápido, passou por mim como um raio e correu por mais uns dez metros. Parou. Ficou ali, esperando. A Holandesa, que comemorava a vitória, a revanche, ainda não tinha percebido. Ele se aproximou e soltou o fatal ‘hola, que tal?’. Certeiro. Fulminante. Ela sorriu. Quatro anos depois, no Brasil, um pedaço da África, na negra Salvador, na Bahia de todos os santos e amores, voltaram a se encontrar. Saíram juntos do estádio, abraçados. Ele, bandeira da Holanda nas costas; ela, bandeira da Espanha enrolada na cintura. 

Espanha 2x3 Holanda (Diego Costa, Fábregas e Van Persie -3) 
Salvador, Fonte Nova, 13.06.2014
 
Chico Bicudo.

(Nota do Amaral: O Chico? Grande escritor, literato, jornalista. O Blogue dele? Supimpão, aqui: http://oblogdochico.blogspot.com.br/)
 

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