domingo, 1 de julho de 2018
Amores em tempos de cólera
Talvez uma das maiores injustiças de todo universo, este em que escrevemos e lemos este texto e em muitos dos zilhares de mundos paralelos existentes desde a primeira história para dormir contada pela primeira vó, é o fato de Messi e Cristiano nunca terem jogado no mesmo time. Faz tempo que imagino esta possibilidade e fico estarrecido como nenhum dos dois resolveu bancar esta aventura. Os dois estão com a vida ganha e merecem, definitivamente, se divertirem, juntos. Imaginem, só por exercício, um arco e uma flecha, Lionel e Ronaldo.
Os dois foram eliminados no mesmíssimo dia na copa do mundo. Rivais, passaram a ser tema dos mais diversos colóquios sobre fracassos, sobre não terem ido mais longe, sobre terem refugado nos mundiais que disputaram. Deviam os dois sair para tomar umas, num boteco nas proximidades do aeroporto de Moscou, encher a cara e combinarem de darem bananas para todos e a granel, para todo o sempre. E acertarem de jogarem juntos no São Paulo, o Clube da Fé, da moeda em pé, do bonde de Leônidas, para disputarem o fim desse Brasileirão de 18.
Messi e Ronaldo são dois dos jogadores mais refinados que a bola já amou. Um é um artista sublime e o outro o cara mais objetivo de todos os tempos, uma objetividade tão intensa que vira o fio e o transforma na própria subjetividade da bola. Deve ser estranho explicar como um time absolutamente rocambolesco como este da Argentina conseguiu marcar três gols na França e imaginar um empate, tamanha a diferença técnica e tática entre as duas equipes. Mas nesta estranheza, a única explicação possível passa pelos pés do número dez, do chute a gol no tento da virada portenha e no lançamento para o último gol contra os franceses e, essencialmente, na matada de bola, no domínio, na passada e no arremate para o gol contra a Nigéria. E, é impossível imaginar Portugal sem Euzébio e sem Cristiano, é como matar a Camões.
Todos sabem da existência de mundos paralelos, espero. Há uma sofisticada teoria da física que explica o universo por feixes paralelos, contínuos, infinitos. Me parece cada vez mais óbvio que eventos como a chicotada que deu o zagueiro Pavard na redonda no gol de empate francês é um desses fenômenos que abre uma fenda definitiva no universo. Olhar o lance e escutar o barulho do chute e do emaranhar nas redes, a trajetória da bola é nítida: há um outro universo ali, começando, um big bang.
A bola, ela, sempre, escolhe seus afetos. O gol de cara que Cavani fez, depois das parábolas vividas e vivenciadas por ela nos passes - lançamentos - entre ele e Suarez, e o segundo gol, do mesmo Cavani, num arremate de cinema três dê, levaram este nosso velho universo em guerra a uma nova dimensão. Ficou evidente ali uma bela relação de amor.
Assim como ela tem com a nossa Marta e a infinita Formiga, que também não ganharam mundial...
30 de junho, 2018. França e Argentina. Uruguai e Portugal.
sábado, 30 de junho de 2018
Silêncio sorridente
Outro dia vi um vídeo filmado em Beirute, no Líbano. Era uma espécie de cortejo, onde as pessoas levavam um caixão com a bandeira da Alemanha, como num cortejo fúnebre. Mas repleto de buzinas e um tambor. E quem acompanhava o cortejo eram pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira, portando bandeiras do Brasil. O vídeo foi filmado no dia dos jogos de Brasil e Alemanha, na data de desclassificação dos alemães desta copa da Rússia.
Por aqui a gente não tem a menor noção do que representa a seleção brasileira de futebol. Não tem a ver com a CBF, com o governo de ocasião, com a patrocinadora da camisa. Em países como Bangladesh, Índia e Haiti foram relatadas histórias comoventes, emocionantes, bárbaras, de torcidas pelo Brasil, com gente pintando rua, fazendo oferenda, arrumando confusão com vizinho. Há uma identificação com a seleção, que é política, cultural, esportiva, lúdica. As matérias foram publicadas nos grandes portais e nos excelentes portais de futebol, como o Trivela. Ouso aqui uma digressão de boteco: a química entre a seleção brasileira é comparável às torcidas dos grandes e ricos times europeus, mas com uma dimensão fantástica, por ser uma aproximação por afinidades culturais, esportivas, política. Sim, politica no sentido de um reconhecimento da mágica que é um país pobre, miserável, com uma história repleta de assaltos, ganhando por cinco vezes o torneio mundial de futebol.
Argentina, Uruguai e Brasil desafiam a lógica no assunto futebol. No esporte que todos os povos praticam e gostam, três países periféricos conseguiram feitos impressionantes e rotineiros. Enfrentam ombro a ombro e com vantagens, muitas vezes, os colonizadores, desafiam as potências, fazem os Estados Unidos parecem uma republiqueta de merda, como o cinema americano adora e reiteradamente retrata os países mais pobres de todo o mundo. E, o Brasil, o Brasil, meus caros, é a seleção que está sempre lá, que todos sabem que pode ganhar o caneco. Não faço aqui uma patriotada qualquer, que patriotismo é uma ideia idiota, feita para alimentar ódios que afastam o pensar daquilo que realmente importa. Falo de uma importante questão de estima, de levantar cabeça, de sonhar. A capacidade de sonhar.
Estamos sendo negligentes, muito, com o futebol como este elemento simbólico do Brasil como civilização. Entregamos o futebol ao negócio, deixamos um falso discurso de que são negócios privados os agentes que regulamentam o esporte. Perdemos a imensa oportunidade na copa passada, realizada aqui, de transformar o nosso mundo. Deixamos que um cafajeste como o Marin, algoz de Vlado, colaborador ativo da ditadura militar, fosse o "organizador" da Copa, presidindo a CBF. Deixamos a federação internacional de futebol associação criar leis, regras, conveniências. Fomos covardes. Continuamos sendo. Nunca que a fifa seria mais forte do que nós numa quebra de braço sobre os rumos do mundial, porque o mundial não pertence à fifa, embora queiram narrar assim. O mundial é aquele vídeo de Beirute. O mundial é o gol do Panamá e a festa do primeiro gol em copas num jogo onde tomavam de seis. Os donos do mundo cagam as regras nas nossas cabeças porque a gente não reconhece o nosso lugar, nossa força, nossa vitalidade. A gente prefere alimentar uma "rivalidade" com a Argentina ao invés de organizar um campeonato com o hermanos em Bangladesh, na Palestina, no meio do Kosovo ou participar da Copa da África como país convidado.
Não foi por acaso que instrumentalizaram o uso da camisa da seleção para os eventos patéticos que jogaram o país nesta selva de desesperança. Porque reconhecem a força simbólica e querem domá-la, para longe de nossas "Bangladeshes".
Tem um filme lindo chamado "Shooting for Sócrates", que conta a história da Irlanda do Norte na perspectiva de um menino que adora futebol e do jogo entre irlandeses e brasileiros na copa de 1986, no México - aquele jogo do gol do Josimar. A seleção brasileira é um instrumento que produz sonhos. E é esta a capacidade, a de sonhar, que nos transforma, a todos. Mais do que torcer pela seleção a gente precisa recuperar o que é nosso.
Esta sexta que passou, primeiro dia sem jogos na copa da Rússia, fez aniversário de 60 anos do caneco na Suécia. Devia ser feriado nacional. E não estou brincando.
29 de junho, 2018. dia sem jogo, véspera das oitavas. Sobre o filme: http://www.cafecomfilme.com.br/filmes/driblando-a-guerra
sexta-feira, 29 de junho de 2018
Trave de chinelas
Lá pelos idos de não sei quanto, o critério de desempate para os jogos do Torneio Início - um campeonato festivo que marcava o início do campeonato paulista, com jogos de meia hora, num único dia, uma verdadeira macarronada de domingo, em partidas eliminatórias do tipo perdeu tá fora - eram os números de escanteio. O argumento era que o escanteio comprovava que o time estava jogando no ataque, procurando gol, então, no desempate, escanteio era gol.
Não sei se a regra do torneio Início era boa. Mas era oitocentas e quinze mais mais lógica e prudente que esta regra safada que a federação internacional de futebol associado tem adotado: a do "Jogo Limpo". Nas competições organizadas pela federação, premia-se quem tem menos cartões como critério de desempate. Obviamente, a regra macabra foi utilizada para definir um dos classificados o mais jururu para as oitavas de final nesta copa, na vaga disputada entre Japão e Senegal. Os japoneses ficaram com a vaga por ter tomado dois cartões amarelos a menos que os senegaleses.E o que aconteceu? Os asiáticos, sabendo do resultado da partida entre Senegal e Colômbia, mesmo perdendo o confronto com a Polônia, passaram os últimos cinco minutos num verdadeiro toco de lado recebo de volta. Uma ode ao oportunismo de quintal, aquele da grama do vizinho.
No fim, a seleção que praticou um joguinho mequetrefe de ocasião acabou se classificando na regrinha do "fair play", num contrassenso típico de fazer propaganda de refrigerante antes da matéria que alerta dos riscos da obesidade infantil. Ou, propaganda de banco e logo depois aquele analista cu de ferro vem explicar do problema da inadimplência contribuindo para os índices débeis da economia.
E é óbvio que a imprensona do mundo resolveu tacar o tacape nos japoneses, tratando a manobra do time como laranja podre, que aquele joguinho de engana nos últimos minutos foi uma manobra aviltante, mais terrível que xingar a mãe. Mas, carambolas cósmicas, porque diachos existe uma regra dessas? O amarelo, o cartão, é um sanção e se insere dentro das possibilidades da partida. O amarelo recebido numa partida duríssima, por causa de uma falta que impediu o prosseguimento da jogada, não pode se equipar com um amarelo por comemoração de gol. Aliás, amarelo em comemoração de gol é outra dessas cretinices de emoldurar. O amarelo é um sinal de alerta, uma admoestação preliminar, mas que leva em conta única e exclusivamente as condições objetivas e subjetivas, o drama e a miséria, daquela partida singular, que nunca mais se repetirá.
Melhor o critério do escanteio. Pelo menos se premiaria quem chegou na última linha de defesa da cidadela adversária, tentando ganhar o pote de ouro do castelo. Melhor ainda era chamar japoneses e senegaleses para um encontro no ginásio coberto da escola pública mais próxima, para fazer um "vai a um", gol caixote, meio campo, seis de cada lado, sem goleiro mas com a regra de no mínimo três toques. Uma regra simplesinha, que toda criança que jogou futebol sabe identificar.
Ou, sei lá, classificar o Irã.
28 de junho, 2018. Japão e Polônia. Colômbia e Senegal. Inglaterra e Bélgica. Panamá e Tunísia.
quinta-feira, 28 de junho de 2018
"Lateral é meio gol!!!"
Na TV Gazeta, antes do maravilhoso programa do Ronnie Von, muito antes, num tempo onde as tardes eram ocupadas pelo "Mulheres em Desfile", apresentação de Ione Borges e Claudete Troiano, um verdadeiro percursor de tudo o que é programa vespertino de televisão, o grande barato eram os programas de mesa redonda de futebol.
O formato era descaradamente clubista, com todos os apresentadores representando ao menos um dos grandes times paulistas. Peirão de Castro, santista. Alfredo Borba, corintiano. Milton Peruzzi, palestra. Luis Noriega, São Paulo. Desconfio que o Fernando Solera também era São Paulo. E tinha o Orlando Duarte, Portuguesa. Não lembro se Orlando estava nas mesas redondas ou só ocupava as transmissões da Pan, como comentarista dos jogos narrados pelo estupendo José Silvério, quando a Pan era uma rádio de verdade e não esta sucursal da estupidez galopante e hidrófoba que é hoje.
Eram duas versões, que me lembre, e as memórias são sempre isso, um afeto e nunca um teipe completo que repete os exatos: uma noturna, aos domingos, depois do Gigantes do Ringue - um desses vale tudo fantasia, avô bastardo dos MMAs que hoje ganham o mundo com regras e muitos dólares, e antes do videoteipe do jogo da rodada - a Gazeta não transmitia os jogos ao vivo, transmitia um videoteipe, com narração do Peirão ou do Solera - e uma versão diária, matinal, na hora do almoço. Cabulei aula, no meu primeiro ano de colegial, ou ensino médio para os mais atualizados, ou clássico e científico para os mais de antanho, várias vezes para ver o programa da Gazeta, que era no prédio onde eu estudava. Gazeta na gazeta, devia ser o nome do programa dos estudantes.
No fundo, camaradas, somos todos torcedores, na dor, no amor, na economia, na cerveja, na política, no futebol e na porrinha. O formato descaradamente clubista do programa garantia bons debates, quebra paus homéricos. Mas evitava esse tipo de "isenção" ou "neutralidade" que tanto cagam e mancham de cocô as análises do suposto jornalismo brasileiro. Aparentemente aquilo podia ser simples ou simplista, não tinham os gráficos, as análises de desempenho, os números de passes certos, os números de gols onde o chute foi no meio do gol, não tinha "mapa" de calor para mostrar a movimentação dos jogadores em campo. Mas a gente sabia que o Dicá era mais preciso nos lançamentos, que Andrade nunca errava passe, que Paulo César Capeta dava um calor dos infernos nos laterais esquerdos, que os times do Telê gostavam de ter mais a posse de bola e que os times do Minelli eram fechados, bem armados, prontos para um golpe letal. Ninguém enchia o saco com as estatísticas de quantas vezes a chuteira do pé direito de fulano tocava na bola e nem das oitenta vezes que o time que jogava de azul conseguia a virada quando chovia em Estrasburgo. O dois a zero era um resultado perigoso e onde passava um boi passava uma boiada, eram as filosofias certeiras do Juarez Soares, que só não participava como mais um corintiano na mesa redonda porque era de outra emissora.
O grande problema das análises do time de Tite é que poucos dizem os óbvios, aqueles óbvios que são ditos por torcedores comendo pernil. Tentam dar planilhas onde deviam dar mortadela. O time de Tite é bom, ganhou três jogos e a rigor passou apuro um pouquinho contra a Suíça, depois do gol, e um pouquinho no segundo tempo contra a Sérvia. No resto foi o Tite de sempre. O técnico é o Tite, os times dele jogam assim, na segurança, a volúpia do um a zero. Se Coutinho e Casemiro estão a gastar a pelota, sendo Coutinho o super trunfo do pacote, o time tem presepadas. Falta ao time do Tite rebolado, gente que se mexe, alterna de posições no ataque. Que se libere Marcelo para flutuar e viver a vida loca de Real e que Tiago e Miranda se virem para dar cobertura. Que Neymar deve as vezes trocar com Willian de posição e que Willian, pelo amor de todos os deuses e deusas do universo, não pode ficar só no lado direito do campo, porque qualquer hora ele sai pela linha lateral e ninguém vai perceber. Aliás, pelo talento que tem, Neymar pode inclusive jogar de centro avante, trocando com Gabriel, e pelo meio, trocando com Coutinho. É um desperdício confinar o onze santista num lado só do campo, mesmo quando ele ziguezagueia pro meio parte de um lado só. E tem Firmino, entra Firmino. Enfim, mais remelexo menos missa. E que Tite convocou errado...
Não levar o Reinaldo do São Paulo fez o Brasil perder aquele lance de gol gerado pelo lateral batido lá no meio da área, para um bumba meu boi deus nos acuda na área adversária. O leitor pode rir, mas com um a zero, precisando empatar, quarenta e dois do segundo tempo, tem mais chance quem se desespera sem pudor, um beijo de batom vermelho e com mais bola na área saravá meus orixás.
27 de junho, 2018. Brasil e Sérvia. Costa Rica e Suíça. Suécia e México. Coréia do Sul e Alemanha.
quarta-feira, 27 de junho de 2018
Contos de Leiteria
Devo ter organizado uns mil campeonatos de botão quando era moleque. A maioria desses campeonatos joguei sozinho. O Estrelão no meio da sala, times espalhados pelo tapete. Até a mesa de jantar era estádio, abrigava finais de Maracanã. Obviamente, por razões absolutamente evidentes, o São Paulo costumava faturar muitos torneios. Eram raras as derrotas do tricolor. Mas houve uma Portuguesa de Desportos, de Enéas e Wilson Carrasco, que numa tarde, entre o Speed Racer e o Savamu Demolidor, produziu um milagre para erguer catedral.
A finalíssima do torneio tinha que caber no tempo entre os desenhos. A história de Savamu estava empolgante, ele devia enfrentar algum gigante tailandês depois de ter sido derrotado numa primeira luta e treinado sozinho numa floresta para a revanche. O famoso chute no vácuo foi treinado contra árvores e o lutador saltava e caia numa fogueira que ficava no relvado. Ou seja, não dava para perder. O fato é que Portuguesa e São Paulo entraram no campo logo após o Corredor X salvar pela enésima vez o pescoço do irmão. A campanha da Lusa tinha sido excelente. Enéas estava literalmente possuído. Acho que na semifinal destroçou o Corinthians de Palhinha e Geraldão. Se não foi o timão, a vítima deve ter sido o Palmeiras, de Beto Fuscão e Polozzi. Já o São Paulo teve uma vida mais tranquila, vencendo a Ponte Preta de Dicá, o Guarani de Zenon e triturado o Fluminense de Edinho e Pintinho. Lembro de tudo. Arrepia contar o que aconteceu depois...
Na partida, numa saída de bola, eu literalmente escorreguei a palheta que comandava as ações do volante Almir. A bolinha chata de jogo de War resvalou no Wilson Carrasco e foi parar no fundo do gol do Valdir Peres. Inacreditável. Eu quase invalidei o gol, não tínhamos árbitro de vídeo, meu irmão devia estar no quarto, meus pais trabalhando. Ninguém ia saber de nada. Mas a consciência, sei lá porque, pesou. Gol. E pronto. Tinha tempo para virar. O que se sucedeu foi um massacre. O São Paulo bombardeava a defesa da Lusa. Eu jogava usando uma regrinha de cinco toques para cada time em cada jogada. Nas saídas de bola da Lusa, misteriosamente, as bolas batiam nos botões do tricolor. Mudava a posse da bola, então. O relógio correndo. Os comerciais da groselha Milani e do DD Drim, "nesta festa preciso por um fim", indicavam que em poucos minutos começaria a luta do século. Dei uma porrada num jogador do São Paulo, dentro da área. Expulsei o zagueiro da Lusa. Marca da cal, penal, bateu, o goleiro Moacir pegou. Palavrão. Na tela da TV, a música do Savamu: "Ele se julgava o demolidor, ele se julgava o demolidor".
Mas o assombroso, o sobrenatural, ainda estava para acontecer. Da defesa do goleiro a pelota foi parar nos pés de Eneás. Ou seja, bola com a Lusa. Displicentemente eu toco com a palheta no botão. A bola ganha uma força sobrenatural e cai na gaveta do Valdir, encobrindo Oscar e Dario antes de morrer no fundo da meta. Dois a zero. Depois daquele dia nunca mais duvidei de fantasmas e que espíritos comandam por vezes as partidas de futebol. Confesso que remoí todos os lances e quase que me estraga o desenho, inconformado que estava. Anos depois, lendo Nélson Rodrigues, reconheci na leiteria o Castilho que morava no Enéas do meu jogo de botão da Portuguesa. Entendi tudo.
Dias depois, Eneás foi transferido para a Itália, acho que para o Bologna. Mas no campo de botão lá de casa virou uma entidade e resolvia sempre jogos impossíveis. Cheguei a escalá-lo no lugar do Éverton numa quinta feira a tarde chuvosa e sem tv em casa. A única partida que fez pelo São Paulo.
Vendo a partida da Argentina contra a Nigéria, revi e reforcei minhas crenças. Não foi o Eneás, evidentemente. Mas aquele gol do lateral esquerdo, de perna direita, que segundo a própria mãe do jogador em entrevista aos periódicos portenhos só servia para subir nos degraus do ônibus, aos quarenta e larai do segundo tempo, foi de Batistuta, que encarnou no pé do lateral, ali, bem ali, e aos olhos de toda a multidão do mundo.
26 de junho, 2018. Argentina e Nigéria. Islândia e Croácia. França e Dinamarca. Peru e Austrália.
terça-feira, 26 de junho de 2018
Para ler ao som de Pinduca, Dona Onete y Ruben Rada, porque no???
Daquelas cousas indesculpáveis, não ter dado a chance ao Mangueirão de sediar partidas de uma copa do mundo talvez sido uma das mais retumbantes bobagens de nossa história contemporânea. O estádio principal da cidade de Belém, no Pará, sedia uma das rivalidades mais estrondosas do futebol: Remo e Paysandu. E, de quebra, abrigou jogos da simpática Tuna Luso durante os anos dourados do cruzmaltino. A rivalidade entre o Remo e o Paysandu, Leão e Papão, é capaz de lotar estádios em jogos das séries A, B, C, D, do alfabeto inteiro.
Ignorar, por razões de sei lá qual ordem, esta rivalidade durante o preparo para a copa do mundo e escolher outras sedes, sedes em que o futebol era mero pretexto, demonstra muito da nossa incapacidade de entender o futebol como elemento central de nossa cultura, de nosso país, de nossa civilização. Não foram os portugueses que deram unidade ao Brasil. Foi a Rádio Nacional, foi Leônidas da Silva, foram Pelé, Didi e Garrincha. Internacional, Grêmio, Cruzeiro, Atlético, Sport, Náutico, Santa Cruz, Bahia, Vitória, Remo, Paysandu, Flamengo e River. Com um pouco de paciência, num boteco, poderíamos escrever um grande tratado de sociologia, antropologia, economia e política somente conversando sobre futebol.
O Brasil tem uma elite que odeia o Brasil. E para exercitar este ódio mascara, avilta, machuca, esquece nossa história. Nunca deu tratos à nossa maior ignomínia, ao nosso maior vexame, a escravidão. Na escola temos uma aula que diz que foi assinada uma lei por uma princesa bondosa e pronto, borracha. Não tratamos de nossa recente ditadura civil militar, não responsabilizamos o estado pela barbárie, pela tortura. Aprendemos que teve um golpe, que teve colégio eleitoral, que teve Tancredo, que Tancredo morreu, Sarney assumiu e acabou a ditadura, borracha. Nunca tratamos das borrachas, borrachadas, esculachos das forças de segurança contra a população mais pobre, negra. Aprendemos índices de violência e naturalizamos o confronto polícia e ladrão. Não nos furtamos em afastar uma mulher da presidência do país, eleita, só porque não íamos com a veneta dela, porque ela era mulher, usando argumentos os mais hipócritas possíveis. Nas escolas não se fala mais de Kuarup.
Não é diferente no futebol. Não temos interesses em ensinar nossa história nas copas, nos campeonatos. Basta afirmar que somos os melhores do mundo, no ufanismo idiota, como que brotando magicamente. Estamos esquecendo de Pelé e sem Pelé não há Zico, sem Zico não há Romário, sem Romário não há Ronaldo, sem Ronaldos não há Neymar. Pelé já é algo distante, alguns tratam como anedota ou como figura mítica, daquelas que perdem importância porque não precisamos mais de "Vitasay".
Sem Maracanazzo não há 58. E sem 58, senhouras, senhoures, não há Brasil. Quanto mais distante for 58, mais nos distanciamos daquilo que poderia nos caracterizar como civilização, a civilização brasileira. Didi da Guiomar, Garrincha, Djalma e Nilton Santos. Éramos mais felizes e não porque a nostalgia alimenta. Porque tínhamos um sonho que ia muito além de fazer compras em Miami ou morar em Lisboa.
A magistral partida da Colômbia contra a Polônia não se resume no passe saboroso de James para o tento de Mina, nas alturas. Nem do toque sutil de Quintero para o arremate lindo de Falcão Garcia. Muito menos na pintura de capela que foi o lançamento de James para o terceiro gol de Cuadrado. O magistral esteve no abraço de Higuita e Valderrama nas arquibancadas, um abraço de mais de mil palavras.
Nas coletivas de imprensa após a vitória indiscutível contra os russos, os jornalistas uruguaios perguntaram para o "maestro" Oscar Tabarez - o mais velho dos treinadores nesta copa e o que mais vezes a disputou como treinador, 1990, 10, 14 e 18 - sobre a partida e o que ele achava da Celeste ganhar dos anfitriões, assim como ganhou da África do Sul em 2010, da Argentina na Copa América de 2011 e do Maracanazzo, 1950. Celeste Olímpica, vencedora das Olimpíadas de 1924 e 1928, as outras duas estrelas que compõe o conjunto de quatro na camisa azul que entorta varal, mesmo sendo de um país pequenino de território.
O Remo está na série C do Brasileirão. O Paysandu na B. A Tuna Luso disputa a segundinha do paraense. No sítio da internete da Tuna, garbosamente, se anunciam dois títulos nacionais. Eu, correria lá para ler.
25 de junho, 2018. Uruguai e Rússia. Arábia Saudita e Egito. Irã e Portugal. Espanha e Marrocos.
segunda-feira, 25 de junho de 2018
Quando o marreco sorridente também gritou gol!
Era domingo. Último dia da segunda rodada da copa. Nas duas primeiras rondas, neste formato de grupos de quatro, são muito maiores as chances do lúdico, do brincar. Depois, tudo ganha ares de seriedades excessivas, classificações, epopeias, desastres, glória, fracasso, vexame, sete a um, dinastias e bebedeiras. Mas no comecinho, não. Ali naqueles primeiros momentos temos os sonhos de um Panamá campeão do mundo, de um gol antológico, de passes com azeite, bolas com açúcares, planos, brinquedos. Com jogos todos os dias, muitos jogos, muitas bolas, muito assunto. O deleite.
Sim, há na segunda rodada as desclassificações prematuras - ninguém deveria ser sumariamente eliminado na segunda rodada e as regras perfeitas um dia levarão isso em conta nalguma fórmula mágica. Mas, a rigor, todos tem chances. Até o time mais estrombólico, caricato ou sovina. É um grande barato, basta gostar de picolé. Eu gosto muito de acompanhar estas rodadas ouvindo jogos pelo rádio. Há uma fantasia nas narrações pelo rádio que nos transportam para mundos paralelos. Ouça o centésimo gol de Rogério num desses videozins de vocêtubo e percebam que para cada narrador, um desenho, uma mágica, um conto. Até parecidos, mas diversos. O rádio, o futebol pelo rádio, vai muito além da imagem televisionada: é a imagem imaginada.
De uns tempos para cá, com o advento dos aparelhos de telefone móveis, pequenas máquinas de computadores muito mais possantes que os PCs dos tempos remotos de colégio, há aplicativos e possibilidades de conhecer e escutar rádios de todos os lugares do mundo. Este sempre foi um sonho que acalentei, toda vez que tentava colocar as antenas dos radiotransmissores que passavam pelas minhas mãos e tinham a frequência das "ondas curtas". Com o celular, as ondas curtas funcionam mesmo. Basta um sinalzim das internetes.
Voltando ao domingão, fui ao parque com minha filha pequenina no horário do jogo do Senegal. Fui de carrinho e pude num plano infalível ouvir trechos do jogo. Um fone num ouvido e outro pronto para ela. Só quando ela quis dar milho e piruá para os patos é que deixei os fones. A menina adentrou corajosamente ao setor de patos e galinhas, galos e pintinhos do parque e eu resolvi que era melhor marcar de perto a atacante do meu próprio time, já que ornitologia é uma ciência que demanda total atenção e bicada de pássaro dói mais que chuteira de trava na canela. Bom, a menina andou para cima e para baixo, correu, correu de novo, subiu com a boneca para lá, para cá, conversou com o baile todo e, obviamente, se cansou. E pediu colo.
Lá pelas tantas ela estica as mãozinhas para os fones de ouvido. Estica, resmunga e só para quando eu entrego para ela. Automaticamente, ela coloca os fones nos ouvidos dela. Sem som, porque estavam desconectados. Reclama, aponta para o telefone, resmunga, chora. "Tá filha, vou ligar."
Antes de procurar alguma música, o celular estava conectado a uma rádio de Dakar, Senegal. Senegal e Japão faziam seu jogo na copa. Não entendia nada. Era um "Senegale hã Japonaise hã" que imaginei ser um a um o placar. O fato é que o narrador desembestou a gritar exatamente na hora que a menina recolocava os fones, desconfio que foi o segundo gol senegalês: "Futebó! Futebó, papai". E sorri gostoso.
O pai? O pai quase evapora naquele sorriso. E colocou o outro fone tentando descobrir se tinha sido mesmo gol...
24 de junho, 2018. Senegal e Japão. Inglaterra e Panamá. Colômbia e Polônia.
Assinar:
Postagens (Atom)