quarta-feira, 20 de junho de 2018

"Aperfeiçoando o imperfeito"


Ouvi uns pedaços do jogo de Portugal, numa estação de rádio lusitana, pelos fones de ouvido no celular. O telefone celular é uma invenção do demônio, todos sabemos. Mas o tinhoso é sempre contradição: criou algo para nos amarrar definitivamente ao trabalho, nos dar a sensação de estarmos ligados, conectados, plugados, por toda a existência da bateria, mas, por outra ruela nos deu os aplicativos de música e as rádios. Uma no cravo, outra na ferradura. Como na copa: Um Portugal e Espanha dum lado,um Coréia do Sul e Suécia, benzadeus que partida árida, doutro.

Os narradores portugueses, eles narram os jogos em dupla, assim como os uruguaios, torcem descaradamente e sem pudores para seus selecionados. É estranho quando comparamos com as nossas narrações mais famosas, que exageram num ufanismo que não podemos chamar de torcida... e não sei muito bem explicar o que é. A vitória parece que vem por causa de algo natural, inato e a derrota vem porque alguém cometeu algum crime. Os portugueses falam das naus perdidas. Nós falamos de como se perderam as naus. É uma linhazinha tênue mas é barbante. Nos jogos da seleção talvez fosse melhor escalar sempre o Silvio Luis e os seus bordões: "pelas barbas do profeta". Ou o Osmar.

O único jogo que vi quase inteiro nesta copa foi o Portugal e Espanha. Um belo jogo de futebol. Nos demais, o televisor ou o rádio ligado, mas sempre fazendo algo em paralelo. A copa, como encanto paralelo. Perdi muitos pedaços de jogo e vi alguns gols só em videoteipe. Como os de hoje. Não sei, então, nem tento, estabelecer análises de tática, técnica, desempenho. Aliás, estas análises andam chatas por aqui. Tentar criar sistemas lógicos que expliquem resultados, com índices de posse de bola, de chutes a gol, de onde a bola foi chutada, gráficos e mais gráficos, coloridos, bonitos. Não sei estas análises dão conta do jogo. A beleza de uma retranca, e como são belas as retrancas, quase nunca é observável dentro desses critérios matemáticos. Cannavaro nunca teria sido o melhor do mundo numa copa se os critérios de análise fossem só os de "show do intervalo".

Me disseram do Irã na partida com os espanhóis. Deve ter sido uma retranca lindíssima. Assim como foi a da Islândia. Nosso problema é tratar o futebol como obrigação de espetáculos e malabarismos circenses, quando na verdade são os imprevistos, os impossíveis, os incrédulos que dão perfume a este jogo, um dos poucos onde o melhor nem sempre ganha. Ninguém se apaixona pelo futebol numa partida do Barcelona ganhando com oitenta por cento de posse de bola. A gente pode admirar, achar um feito incrível, uma obra de arte, ter o gozo. Mas o que apaixona, aprisiona a bola no lado certo do coração, foi o dia em que o Mineiro recebeu um passe milimétrico do Aloísio Chulapa, entrou na área e caixa, time campeão contra um outro aparentemente muito superior. É a vitória do Valladolid num único ataque, nos seus dez por cento de posse de bola. É a vitória de Camarões na abertura da copa. E a dança do Senegal. A paixão só pode ser despertada num dia de vitória impossível. É o caneco do Leicester. É o Olaria do Afonsinho. Depois de instalada a paixão, a gente administra, transforma a paixão em amor, resolve querer ganhar sempre, aplaude e exige o bonito. Mas durante uma copa a gente percebe que amar é importante, mas paixão.... aaaaaaah..... paixão é foda, é bola na rede, é o salve-se quem puder na zona do agrião...

Na volta para casa, tentando recuperar os placares que perdi - num perdi muita cousa pelo jeitão de um a zero magrinho de todos eles - percebi que no meu bolão cravei Irã 1 x 1 Espanha. De certa forma, ainda tem paixão neste navio.


20 de junho, 2018. Portugal e Marrocos. Irã e Espanha. Uruguay e Arábia Saudita.





terça-feira, 19 de junho de 2018

O jogador que falta a seleção



Eu gosto de copa. Mas tem muitas cousas que eu não entendo. Uma delas, pujante, é o diacho de interromperem as partidas da série A do Brasileiro, a Libertadores e a Sulamiranda. Abraçados aos meninos e com a menina pulando entre nós no sofá, me perguntam os dois: "quando é que o São Paulo vai voltar a jogar?". Já estou na fase de não saber responder a todas as perguntas deles...

Alguns vão dizer que não dá para competir com o certame mundial, que seria uma espécime de cereja oficial da federação que organiza a bagaça toda. Outros irão dizer que não teria como porque exauriria as pessoas com tantas informações sobre o futebol. Outros, os diretores da empresa que monopoliza as ideias do país - essencialmente esses, acham que iam ter que contratar jornalistas, equipes de esportes e equipes operacionais, para poder dar conta de eventos simultâneos como estes e ficaria muito oneroso. Eu, aqui do breu das tocas, acho tudo isso cascata, lorota, falta de comprometimento ou o excesso doutro comprometimento qualquer outro.

Começa errado, por direitos de transmissão comprados a preços exorbitantes, que uma única empresa detenha o poder de transmissão sobre os jogos de todos os campeonatos. É o capitalismo de merda que o país está acostumado desde sempre, onde a "competição" só interessa no quinhão alheio. Não sei porque os órgãos de proteção ao mercado simplesmente não proíbem este tipo de concentração de atividade econômica e cultural. Devia ser regra: transmite o Brasileirão, não transmite a Copa. Transmite o Paulistão, não transmite o Carioca. Tem contrato com o Corinthians, não tem com o Flamengo. Transmite Olimpíadas, não transmite Fórmula Um. Simples assim. Concentração é um bode, não é? Mas nosso liberalismo é  herdeiro de capitanias, neto de feudos, bisnetos de castas. Ou uma outra saída, linda de marrédessi que seria liberar o sinal para todo mundo. Eu, aqui de casa, transmito o que quiser.

E segue errado, porque a pausa no campeonato interrompe o coito. Lembro de uma Libertadores que o São Paulo enfrentou o Cruzeiro.Estávamos com os mineiros entalados porque tínhamos sido eliminados num ano anterior, sem chutar uma bola no gol em cento e oitenta minutos. Era eliminatória, o time estava naquele vai não vai. Mas antes da série, pudemos inscrever novos jogadores. Inscrevemos Fernandão. Fernandão fez história no Internacional de Porto Alegre, uma bonita história, e no Goiás. Pois bem, Fernandão fez duas partidas monumentais, Messi no chinelo, acabou com o Cruzeiro, tirou o nó e prometia mundos e fundos. Pausa para copa. Nunca mais. Fernandão teve passagem breve, nem titular foi durante o resto do período que ficou no tricolor. Perdeu o trem. Fernandão era um cara legal. 

Escrevo estas linhas como um desabafo, preocupado, com os rumos da prosa. Nenê, nosso sete, mais de trinta e cinco de RG, anda fazendo partidas de gala e garbo neste Brasileiro. O São Paulo fez mais pontos em doze rodadas do que em todo o primeiro turno do ano passado. Fico aqui matutando se esta pausa para a Copa não vai tirar esta adrenalina de nosso artista e voltará macambúzio destas férias forçadas...

Ao menos neste ano a Série B não parou. O Fortaleza segue fazendo uma campanha de Canal 100 e agorinha a noite estavam jogando Avaí e Guarani, na Ressacada. O estádio estava animado. No Guarani, Édson Silva desfilava na zaga. Édson foi,por um curto período, é verdade, o maior brasileiro vivo quando ocupou a bequeira do São Paulo: foram um ou dois jogos messiânicos. O cara chegou a cabecear o chão lutando por uma bola. Do lado do Avaí, também na zaga, Betão, ex Corinthians. Foi de Betão o gol que terminou com a fase mais bonita do Majestoso, onde bastava o Corinthians jogar com o São Paulo para acabar em crise: o 5x1 na estréia de Autuori, as quedas de treinadores, o show de Amoroso naquele jogo que teve que ser refeito pelo rolo da arbitragem. No ano do rebaixamento, logo após o São Paulo ganhar o caneco de forma antecipada, Betão fez o um a zero que tirou o Corinthians da fila. Depois daquele jogo o Majestoso anda dando mais dor de cabeça do que resultando em pão na chapa.  

Quando era menino, gostava também de jogar bola nos dias da Copa. O monotema era bálsamo. Desliguei o televisor, estava dois a zero para o Avaí. Os meninos dormiram, a menina dormiu, a casa em silêncio, vim escrever. Procurando os gols dos jogos de hoje na copa, quase li uma notícia da contusão do Neymar. Antes de abrir a aba, num canto, o nome de Aguirre pula na tela e me chama: "São Paulo faz treino com três zagueiros, Aguirre relembra os tempos vitoriosos de Muricy: Se é o melhor para o futebol, não sei. Mas é o melhor para o São Paulo.". Me emocionei, confesso.  


Em tempo: Avaí e Guarani empataram, um elétrico 3 a 3.

19 de junho, 2018. Japão e Colômbia. Senegal e Polônia. Egito e Rússia.










segunda-feira, 18 de junho de 2018

Juiz ladrão!!!!


Uma das piores invenções da humanidade é o árbitro de vídeo nas partidas de futebol. Aquele um que fica no ar condicionado, bedel de costumes e analisador de lances polêmicos, distante do calor do campo, presente no imaginário como o que vai sarar a injustiça no campo. Trata-se de grande besteira. Enorme, retumbante, fascinante.

Eu sempre escrevo que futebol são reminiscências. Muito, mas muito mesmo, do que acontece ali no campo tem pouca ou nenhuma importância. Aliás, pensando bem e que mal tem, o jogo dentro do campo inúmeras vezes é a coisa mais chata do futebol. Há uma transcendência no jogo, uma esfera confusa, contraditória, maravilhosa, dolorida, alegre, efusiva, desastrosa. O gol na data do casamento, a derrota na véspera daquela prova de química, os cantos dentro do ônibus a caminho do estádio, o sanduba de mortadela, o pernil, a namorada que foi com você no jogo. O cantar da torcida, o frio absurdo do cimento do gélido Morumbi, você e mais quinhentas testemunhas numa quarta feira de noite infame e sem condução, tendo que andar até a Rebouças para encontrar algum jeito de ir para casa. Sim, tem o campeonato, tem a briga, tem o quiprocó, tem o erro da arbitragem, tem a pantomima dum chute horroroso. Tem nó tático, tem vitória nos acréscimos, tem derrota humilhante e tem tirar pontos do campeão invicto. Tem rocambole, pipoca doce de isopor, cerveja quente. Tem Nélson Rodrigues, tem "O drible" do Sérgio Rodrigues. Tem Luis Airão, Chico Buarque, Nick Hornby e até o Iron Maiden. Tem o grupo de amigos no uátizapi. Tem o não dormir porque o time perdeu, xingando técnico, jogadores, preparador físico, diretor de futebol e o presidente da república, com azia e má digestão. 

O diabo, e o mau diabo, porque o bom gosta de sambar, é que de uns tempos para cá resolvemos emprestar ao futebol os sentidos morais de uma vida cheia de virtudes. O futebol deixando de ser válvula, arte, música, brincadeira, para ser um simulacro das boas relações sociais, quase que uma reedição dos dez mandamentos. Não roubarás, não matarás, não simulará nem penal nem cusparada. E como nas relações sociais, na vida em concreto, a gente não consegue reproduzir a totalidade dos mandamentos sem dar uma escorregada no quiabo de vez em quando, resolvemos escolher o futebol como lugar do "justo".

Não, evidentemente que não. Não é lícito, legítimo, correto, desejado, vencer uma partida com um gol ilegal. Não vale tudo. Mas a linha onde se constata a má-fé, a blasfêmia, a injúria não é tão firme e resoluta assim. Temos mania de dar como exemplo de mau caratismo o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra. Um gol de mão, da Argentina contra a Inglaterra, cazzo! Esquecemos tudo o que ao redor daquele gol se encerra. E julgamos com nossas virtudes todas de quem nunca esquece de escovar os dentes. Mas o penalti que Nilton Santos fez contra a Espanha na copa do Chile e pulou para fora da área, para enganar o juiz, foi o que? A cotovelada de Pelé? Ou o esperar no vestiário, excedendo os quinze minutos entre um tempo e outro, deixando os ingleses debaixo de um sol asteca de mil deuses no cucuruto, na partida mais difícil de 70? A nossa dupla moral, que a gente veste conforme o calor que está lá fora: ora um terno modelinho básico de boa costura ora uma sunga de crochê.

Miranda foi empurrado pelo suíço? Aaaaaah.... por favor.... qualquer jogada de área tem destas. Tem juiz que marca, tem juiz que não marca, tem zagueiro que reclama e tem zagueiro que não dá a mínima, porque puxou o calção do centroavante no lance anterior. Aí, o vestal, lá da cabine com ar condicionado, decide chamar o juizão para lhe dar conselhos ou veredictos. Não sei, mesmo, se me convenço da utilidade disso. "Segue o jogo!".

O futebol é lugar para reminiscências, saudades, memórias, lembranças - muitas delas infantis. Mas me parece que, ao contrário de buscarmos nisso toda a beleza e a infinitude do jogo, estamos é infantilizando a disputa: não se tolera mais a frustração, não se pode deixar espaço para o dúbio, vamos aplicar um corretivo para quem fez feio, menino mau. E como crianças que precisam de distrações para não pensar e questionar a merda de escola que lhes é oferecida nós deixamos que todo o debate sobre o jogo fique nisso de juiz ladrão, gastamos horas e horas nisso, fazemos discurso, fincamos o pé, birra e mais birra. Estamos todos impedidos.  



18 de junho, 2018. Suécia e Coréia do Sul. Inglaterra e Tunísia. Bélgica e Panamá.



Para quem não conhece, ou para quem quer se lembrar, uma cena antológica do filme "Boleiros" do Ugo Giorgetti, com o magnífico Otávio Augusto:

https://www.youtube.com/watch?v=E2Q2icAoKrQ



domingo, 17 de junho de 2018

Zétti, De Sordi, Oscar, Mauro e Noronha. Rui, Bauer e Zizinho. Muller, Leônidas e Careca.



A camisa que tenho da seleção do Brasil é a branca, de 1950. Comprei numa dessas lojas que vendem camisa "retrô". Depois do Maracanazzo nunca mais o Brasil jogou de branco. Gosto de pensar que a minha camisa era a do Bauer, centrocampista que teve a alcunha de "Monstro do Maracanã", um dos poucos que se "salvou" da tragédia. Bauer faz parte de um dos poemas mais bonitos do ludopédio: Rui, Bauer e Noronha, linha média do São Paulo dos anos quarenta.

A camisa branca também podia ser também do Mestre Ziza, o Zizinho, o dez de cinquenta. O mestre foi o Zé Sérgio do Édson Arantes, li certa vez. Comparado a Picasso e a Da Vinci, Zizinho foi um jogador espetacular, capaz de proezas múltiplas. Vindo do Bangu, do estádio de Moça Bonita, que tem como nome oficial, de batismo, "Proletário Guilherme da Silveira" - só pelo nome do estádio o Bangu devia ser campeão todo ano -, Zizinho foi o maestro do time campeão paulista de 1957 e até hoje o Pacaembú nunca mais viu um time tão espetacular. Tinha o mestre mais de trinta e cinco em 58 e por isso, provavelmente, não foi cotado para compor o selecionado de 1958, o primeiro campeonato brasileiro da Jules Rimet, num time potencialmente impossível: Pelé, Garrincha e Didi. Fosse Zizinho um aninho mais novo e o menino Pelé talvez não fosse para a Suécia. 

Em 58, jogamos de azul. Ao menos a final foi de azul. Era a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida, segundo um dos dirigentes. Nos teipes, nas gravações de rádio, nas letras de Nélson, no Museu do Futebol, o time de cinquenta e oito é um estupendo avanço civilizatório, uma alegoria da imensidão que o Brasil poderia ter sido, entre acordes de bossa nova e a folha seca de Didi. O amarelo, portanto, vem depois. 

O amarelo tem causado muita crise existencial,sabemos, de uns tempos para cá. Houve uma apropriação indevida da camisa, da cor e da história e esta tristeza entope as coronárias. Mas quem nunca se emocionou com a mão levantada de Reinaldo e seu gol contra a Suécia? Ou no soco no ar de Pelé? Ou o Doutor, naquele lindo gol contra a Itália? O cacete da história é que a composição de narrativas contraditórias por vezes nos fazem esquecer das essências das cousas. Desde Fried, depois com Leônidas da Silva, da rádio Nacional, das narrações de Ari Barroso, o futebol e a seleção são nossos marcos de identificação cultural e de história, como definidor de nossa gente, como Pixinguinha, Tom Jobim, Milton Santos, Machado de Assis, o samba, os memes. Não temos as Ilíadas, por falta de idade e porque mataram nossos índios ancestrais. Mas temos o chapéu de Pelé no atônito zagueiro galês. Ou o gol de pé descalço contra a Polônia, do nosso Diamante debaixo duma chuva de dilúvio.

No sábado, Marco e Leonel, meus filhos, me pediram para comprar camisas da seleção. E ainda por cima questionaram a minha falta de simpatia, para ser eufêmico, com o time brasileiro. Não adiantou muito qualquer argumento. A simples lembrança do time de Telê e dos abraços que dei em meu pai durante os jogos de 82, me derreteram. Eu tenho direito de negar aos dois este picolé, este chicabon, esta groselha com gelinho na praia em dia de sol? 

Compramos as camisas, no museu do futebol, no mítico Pacaembu. Uma preta de goleiro, uma azul de treino. Sem patrocínios, nem oba oba. E vestimos hoje, eu com a velha camisa branca.

Durante a partida, lá pelas tantas, televisor com som desligado e rádio no talo, daquelas alegrias sem preço, depois de um pombo sem asa e sem direção de algum jogador do time de Tite: "Pai, tenho certeza que se fosse o Shaylon tinha sido gol". 

E concordamos de forma inequívoca que Sidão não tomaria nunca aquele gol de empate.


17 de junho, 2018. Brasil e Suíça. Alemanha e México. Sérvia e Costa Rica.




sábado, 16 de junho de 2018

Como sói acontecer



José Sérgio Presti, o Zé Sérgio, ponteiro esquerdo do São Paulo no fim dos setenta e começo dos oitenta - e que depois jogou no Santos, no Vasco e no Japão, foi o meu Pelé. De certa forma foi a partir de suas jogadas, de seus dribles e avanços, de seus gols, que comecei a ver o mundo com mais carinho pela esquerda do campo. 

Foi num natal entre 77, e aí deve ter sido Papai Noel, e 79, e aí devem ter sido meus pais, que ganhei os primeiros times de futebol de botão, meus grandes e saudosos camaradas, que me acompanhariam brincadeiras e vida adentro. Eram dois times de botão daqueles de acrílico, de prenda de festa junina, do São Paulo e do Santos. E junto aos times, o Estrelão, o meu Morumbi. Escalo o time que fez a partida inaugural, em voz de repórter de campo: "Valdir, Getúlio, Bezerra, Chicão, Neca, Serginho e... pela ponta esquerda, confirmado, Zé Sérgio, com a ooooonze!". No Santos, tinham Nilton Batata, Rubens Feijão e Juari. O jogo deve ter acabado com vitória tricolor, provavelmente por goleada. Mas, certamente, Zé esmerilhou: fez gol, passou, driblou, bateu lateral, escanteio, foi zagueiro e tudo mais. Eu tinha um caderninho que anotava os jogos e resultados das minhas partidas. Quando o caderninho se fechou, devia estar na faculdade já, o Zé devia ter uns mil gols.

Aquela jaqueta onze foi motivo de sonho. E de dores: Zé teve a carreira abreviada por contusões, por ter quebrado a perna e por um episódio de doping por causa de Naldecon ou dalgum tipo de antigripal similar. Odeio remédios,  abaixo a medicalização! Os zagueiros só paravam o Zé na porrada. Eu chorei quando o Zé, voltando do estaleiro, teve uma recidiva num jogo de meio de semana. Naquela época, na Record, durante o bangue bangue a italiana, os resultados dos jogos do campeonato paulista eram mostrados por pequenos tipos na parte inferior da tela. Os faroestes espaguetes e o Zé Sérgio. Memórias, sempre elas. E trilha do Morricone.

Não importam os analistas econômicos dizerem todos os sacrossantos dos dias que para a economia ir bem temos que ter austeridade, equilíbrio fiscal e aquele monte de discursê sobre competitividade, eficiência, gestão privada e lufts. Para mim, o fato, o dado concreto, o calor do asfalto, Zé Sérgio foi o maior craque que vi jogar. As vezes eu acho que estes comentaristas esportivos, a tal crônica especializada, repete uma série de numerozinhos e obviedades para encaixar realidades em suas teses, para dizer que um  time ou um jogador são melhores que outros. Mas é o bolsa família que tira as pessoas da miséria, que inclui famílias e famílias no tal mercado, é o SUS que possibilita algum tipo de atendimento quando a saúde falha. Planilha boa é a do excel, quando resolve teu dilema ou quando preenche as classificações dos grupos automaticamente depois dos palpites no bolão.

Cristiano Ronaldo é um Zé Sérgio, desconfio. Mas é, em sua intensidade e objetividade, uma aula de economia. Dizem das vaidades de Cristiano, de sua soberba de quem sempre anda de queixo erguido, de seus gols de penal e até dos cremas que passa na face. Mas ali, no petardo, no cotidiano, nos diversos e rotineiros mísseis que viram golos, sempre o vejo abraçando os camaradas de time e sorrindo para algum guri que vive no Tejo...

Uma última notinha, antes d´ir: Hoje, no meu Estrelão, provavelmente o Zé estaria a tabelar com o Cavani, procurando algum jeito de retribuir o Dario Pereyra, o Pablo Forlan, o Lugano e o magnífico Pedro Virgílio Rocha, um Sérgio Leone das quatro linhas. 

16 de junho, 2018. França e Austrália. Argentina e Islândia. Peru e Dinamarca. Nigéria e Croácia.


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Spaciba!



É inevitável lembrar da União Soviética quando a gente está a viver uma copa do mundo na Rússia. Para os do século vinte, a URSS é mais do que memória e história. Os soviéticos foram durante quase todo o século que passou a metade da laranja, muitas vezes a mais gostosa e por vezes a mais sinistra.

Uma das digressões que sempre faço como os meus botões é imaginar um título mundial dos soviéticos numa copa do mundo e se, com o caneco, Gorba teria feito o estrago que fez. A URSS teve o Pelé e o Zico dos goleiros: Yashin, a aranha negra, e Dasaev. Com bons times, em 66, podia ter tido mais sorte. Em 82 - que saudade do naranjito - sucumbiu num grupo de segunda fase que tinha a Polônia dos geniais Boniek, Lato e Deyna. De fato, portanto, os soviéticos nunca tiveram a grande chance do caneco, nem a Jules nem a atual. Mas será que? 

No mundo ingênuo da Guerra Fria, numa luta de caubóis em escala lunar, as nossas percepções de mundo eram quase sempre referenciadas na disputa entre o mundo livre americanos e os tiranos comunistas soviéticos. Um verdadeiro Fla Flu.

Talvez, entre as propagandas possíveis, a vitória no futebol tivesse uma importância fundamental, porque os soviéticos ganhariam a disputa no jogo que o mundo todo adora. Os americanos tem esportes próprios, sabemos, como forma de manter uma hegemonia num campo onde não há disputa. São digressões estupidamente simplificadas, simplificantes, pueris. Mas são. Aliás, penso se o fim da Iuguslávia teria sido menos sangrento se os excelentes times iuguslavos tivessem ganho alguma das copas em que seus times eram realmente fortes, assim como o Marechal. E se a Tchecoslováquia seriam duas.

É óbvio solar que as cousas do mundo são muito mais complexas. O mundo está mais para as explicações da Mafalda de Quino do que para Chuck Noris. Somos teias. Mas o futebol como metáfora ajuda nos botecos. No campeonato de seleções dos meus estádios imaginários, do campo de futebol do botão ou dos tabuleiros de jogos como o Escrete, o Brasil podia sempre ganhar com gol do Zé Sérgio no final, driblando a defesa alemã como faca quente em manteiga fora da geladeira. Mas Cuba chegaria em algumas finais, os soviéticos também e Moçambique seria imbatível depois de ler Mia Couto.

Ontem, por instantes, imaginei um engenheiro de som doidivanas invadindo a torre do estádio e colocando a "Internacional" no lugar do hino russo. Um violino de Jorge Mautner ao fundo e o povo da Rede Globo em parafuso. E o Misha, o urso mais simpático de todos, a mascote das Olimpíadas de Moscou, dando o pontapé inicial. Acordei, caminhando pelo centro de São Paulo, cada vez mais parecido com cenário de filme de apocalipse zumbi: "Aluga-se". 

A Mafalda temia os soviéticos, os americanos, os chineses, o imperialismo ianque, o imperialismo soviético, as autoridades em geral, colocava esparadapos em seu globo de brinquedo. A Mafalda, argentina, certamente estava nas ruas de Buenos Aires comemorando a vitória das mulheres do mundo no dia 13, na votação na Câmara dos Deputados portenha, sobre a legalização do aborto. É inevitável, durante a copa, pensar num outro mundo possível, onde Irã e Marrocos despertem a mesma atenção que um Barcelona e Manchester. E que as ruas possam estar ocupadas com festas. E sorrisos.


15 de junho, 2018. Uruguay e Egito. Irã e Marrocos. Espanha e Portugal.



quarta-feira, 13 de junho de 2018

"Apiiiita o árbitro e rompe-se a inércia do universo"



Pensei muito se deveria ressuscitar este campinho. Por aqui, na última copa, a do Brasil, escrevi pequenos textos, crônicas e observações durante todos os dias do certame. Foi prazeroso e, de certa forma, me reconciliou com o mundial. Há tempos, e muitos, que acho que o futebol é um local de afetos, de reminiscências, de pequenas memórias. Pouco ou nada tem a ver com a seleção. Tem a ver com algo outro, aqui dentro, que faz parte de mim: o menino que ainda chora esperando que a bola do Oscar cruze a linha, que Zoff não alcance a pelota,um abraço do Seu Nilto e que aquele Sarriá seja meu Estrelão.

Minha primeira memória ligada a uma copa do mundo é distante, longinqua. Quintal de minha vó, o rádio da ave maria ligado nas transmissões esportivas e minha torcida pela Argentina, quando todos na casa diziam que devia ganhar a Holanda, que a coisa andava braba pelos lados de nossos vizinhos. Evidente, o menino queria era ser o Kempes e pouca pelota deu para os conselhos alheios, dos mais velhos. Engraçado, que tempos depois eu seria um apaixonado por laranjas mecânicas: Para mim, o gol de Berkcamp contra os argentinos é a prova mais do que suficiente para comprovar a existência de um tempo paralelo, feito só de belezas. 

Mas é em 82, século passado, na única copa que realmente existiu, que algumas cousas me chamam pelo nome, me abraçam, me encantam, me fazem chorar. A eliminação naquele jogo contra a Itália, mas mais. Lembro de um radinho de pilha, cor vermelha, que ganhei dos meus pais para ouvir os jogos do São Paulo quando ia ao estádio - o rádio era o melhor tradutor dos fatos. E de levar o rádio escondido na mochila escolar de quarta séria do primário para poder ouvir Espanha e Honduras numa aula de matemática da Tia Meire. Da goleada da Hungria num perdido selecionado de El Salvador, dez tentos a um. E das minhas narrações imaginárias dos jogos imaginários. A Rádio Popular AM fez a melhor cobertura daquela copa. E Renato Pé Murcho, o oito do Tricolor e reserva do Sócrates, marcava o gol do caneco.

Escrevendo aqui pondero se tudo isso realmente aconteceu.... se não foi tudo resultado de minha imaginação, esta mesma que me ajuda agora. Sei que o radinho naquela aula de matemática, entre uma carta de amor nunca respondida da primeira paixão e o caderno de artes, provavelmente só foi escutado baixinho e durante a aula porque a professora tolerou - o menino tirava boas notas e gostava muito de futebol - e não porque tenha sido uma imensa transgressão infantil. Sei também que depois de 82 nunca mais tive uma seleção como aquela, não só porque cresci e perdi interesse, mas, essencialmente, porque minha relação com o futebol passa pelo São Paulo, pelo time que torço e que sem jogadores do meu time, perco tesão. Sou daqueles que acha impossível explicar porque o Zetti não foi titular em 94 e que ainda comemora o gol de penal, de Raí. Nunca entendi Mazinho, nem Taffarel. 

A copa é este local, de afetos. Os jogos mais inusitados são sempre poéticos e trágicos, como um Dinamarca e Uruguay, como um Colômbia e Camarões, como um frenético França e Alemanha decidido nas penalidades, depois de viradas heróicas e fantásticas. O gol da Espanha contra a Austrália... que golaço. Mas são nas minhas narrações. Reconciliar-se com a copa é conversar comigo. Me faz bem.

Outro dia lembrei que, na última EuroCopa, procurava ouvir os jogos, no escritório, em estações de rádio dos países que estavam jogando. Ouvi empolgado a alegria de galeses pela BBC e noutra peleja, não entendi nada, mas entendi tudo, uma narração croata na vitória destes contra a Espanha. Quem nunca ouviu um golo de Cristiano narrado pelas rádios portuguesas nunca comeu pastel de belém. 

No fundo, o surrado radinho vermelho, sempre ligado nas transmissões da Rádio Popular... AM. 

Voltei.

14 de junho, 2018. Rússia e Arábia Saudita.