quarta-feira, 5 de março de 2014

O Camisa Oito




A paixão pela Bahia surgiu aos 13 anos, quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Da viagem, o que nunca lhe abandonou a memória, contudo, não foram as lindas praias, seus coqueirais, a lagoa escura, a areia branca. Também não foi o farol, o Bonfim, as sacadas, os sobrados, ou o que quer que a baiana tenha. Mas a elegância sutil de um camisa oito, que, cabeça erguida, enxergava todos os cantos do gramado, sem virar o olho, sem mexer um músculo sequer. Depois, baianamente, fazia a bola voar e, sem pressa, inalcançável, chegar ao destino preciso, como se não houvesse outro caminho possível.

Também lhe encantava a sonoridade francesa do nome estampado acima do número oito, que de bobo não tinha nada. Tampouco de bom burguês. Pelo contrário, na tez do boleiro, revelava-se a mesma origem africana de seus ancestrais, o que só fazia ampliar a reverência e a admiração do garoto pelo jogador.

Aquilo tudo, o corpo, a bola, a elegância, a África, tornara-se obsessão para o menino, que não teve outro caminho a trilhar, senão tornar-se jogador de futebol.

Agora, voltava à Bahia em outra condição. Aos 41 anos, aposentado há oito, decidira por seu retorno aos gramados. As razões que o levaram a tomar esta decisão não se resumiam ao mero amor de menino que ainda sentia pelo futebol. Também não queria “retomar” a carreira. Sabia que o tempo, mesmo que navegue por mares pouco revoltos, é cruel e leva do corpo, gota a gota, todo o seu viço.

Ele queria “retomar” sua aposentadoria.

A carreira encerrada num ato impensado, num átimo, um segundo. Uma cabeçada sem pé nem cabeça. Justo ele, tão cerebral. Ao invés da bola, na cabeça, a camisa da Itália.

Mais que de voltar, a hora era de encerrar de novo.

E a Copa era no Brasil, sua vítima predileta, sua consagração.

Encerrar a carreira na Bahia seria um sonho.

Do primeiro jogo, não participou. Derrota por 4 x 0 imposta pela seleção de Honduras – diga-se, sensação da Copa. A esfarrapada desculpa para sua ausência: os quatro graus abaixo de zero em Porto Alegre poderiam complicar-lhe o quadro gripal.

O segundo jogo seria contra a Suíça, na mesma Salvador de seus 13 anos, no mesmo lugar onde se encantara pela sutil elegância do camisa oito. Claro, a cidade não era mais a mesma. O estádio não era o mesmo. A velha Fonte, tragicamente, foi ao chão, dando lugar a uma nova, limpinha e afrescalhada arena.

E como todo o resto, ele também não era mais o mesmo e começaria o jogo no banco. Estava combinado que entraria somente no segundo tempo.

Para agravar sua condição de fumante inveterado, Salvador estava particulièrement belle, trés joly. Manifestações, Copa do Mundo, cem anos de Dorival. Portanto, tudo era carnaval. Pra comemorar a ocasião, lá tem vatapá, lá tem caruru, lá tem mugunzá, então vá. E ele foi. Resultado: ressaca e tremenda diarreia.

Não entrou com a equipe em campo. Do trono do vestiário, ouviu a sonora vaia da torcida brasileira, quando a França, toda de azul, adentrou o gramado. Pela TV, viu a Suíça, camisa vermelha e calções brancos, começar o jogo melhor e, logo aos quatro minutos, escanteio pela esquerda, Drmic de cabeça. 1 x 0.

A equipe suíça foi levando o jogo em banho-maria. Parecia treinada por Tite. Fechadinha atrás, tocava a bola, de pé em pé, de um lado para outro, aguardando uma chance de contra-ataque, cozinhando o galo, em homenagem ao escudo da camisa adversária. Um autêntico coq au vin.

O primeiro tempo terminou com o placar mínimo em favor dos suíços.

Ao ver seus companheiros chegarem cabisbaixos ao vestiário e olharem-no, arregalados, em busca de alguma palavra motivadora, uma crítica sagaz, uma luz tática no fim do túnel, decretou:


Nous reviendrons sur blanc!


Voltaremos de branco! Era sua volta aos gramados e ainda que estranhassem o pedido, jogadores e comissão técnica acatariam o capricho.

E assim voltou a França: meias vermelhas, calções azuis e camisa branca.

Os apupos da torcida do primeiro tempo, estranhamente, transformaram-se em aplausos, no segundo. Todos pensaram que se tratasse de uma reverência à ilustre presença de um dos maiores de todos os tempos. Mas ele, número oito às costas, sabia que a razão era outra. E tinha a ver com o camisa oito de sua infância. Sim, a seleção francesa vestia o mesmo manto, o uniforme número dois do Esporte Clube Bahia: meias vermelhas, calções azuis, camisa branca.

Tanto assim, que apenas pouco mais da metade do Estádio virara a casaca em favor dos franceses. A outra metade seguia torcendo pela seleção suíça, que, diga-se, vestia as cores do Vitória.

O segundo tempo iniciou com a Suíça tocando a bola, como fizera no primeiro, mas a França, agora, além de contar com o apoio de parte da torcida, tinha uma referência.

Aos vinte do segundo tempo, a bola lhe foi lançada na intermediária. Ele a viu viajando, em câmara lenta, até quase parar a um metro de seu corpo, na altura dos olhos. Como nos velhos tempos, ergueu o pé esquerdo para trazê-la para si, mas o nervo ciático não o deixava em paz. A bola caiu em pés suíços e ele, de quatro, no chão.

A cena ridícula não poderia se eternizar. Ele merecia um final menos patético, mais apoteótico.

Carrinho da maca, água milagrosa e segue o jogo.

De fato, ele não era o mesmo. Agora, sentia na pele o que isso queria dizer. Tratou de tocar a bola com movimentos mínimos, fazê-la girar, como fazia o camisa oito, como faziam os suíços. Estes haviam de provar seu próprio veneno.

Assim foi feito. A França cresceu no jogo e a peleja pegou fogo. “Os azuis”, Le bleu, de branco, pressionavam, mas ...

Mas davam espaço para o contra-ataque. A Suíça foi para cima e perdeu duas chances claras de gol. Aos 33, Shakiri não desperdiçou a terceira. Suíça 2 x 0.

Confirmando-se o resultado, a França estaria praticamente fora da Copa. A Suíça iria a seis pontos e, dificilmente a seleção de Honduras, já apelidada de “Laranja Caribenha”, deixaria a vitória escapar contra o fraco Equador.

Mas nada disso importa.

O que importa, senhoras, é nosso personagem, sua aposentadoria.

O time francês, tres désolé, tocava a bola no campo de defesa, tentando evitar um amargo chocolate suíço.

Ele só conseguia pensar nos jornais estampando sua foto, caído, de quatro, como que a pastar no gramado. Seria mais vexatório que a cabeçada da primeira aposentadoria. E as manchetes: “De gatinhas, francês desiste do futebol!”.

Jamé!

Ou melhor, Jamais!

O ato final lhe reservava um desfecho à sua altura.

Inconformado, aos berros, temendo por sua reputação, ele pedia a bola.

Aos quarenta e três, extenuado, na marca do pênalti, de costas para o gol, ele a recebeu entre dois zagueiros suíços. Sabia que se tentasse o giro para finalizar, o ciático o derrubaria novamente. Ainda que sobrevivesse à extravagância, o zagueiro anteciparia a jogada. Ao seu redor, ninguém de branco para tabelar.

A solução foi natural: calcanhar na pelota, goleiro no chão, bola na rede e braço esquerdo erguido no ar.

A torcida inteira aplaudiu. Enfim, Bahia e Vitória se uniam na nova Fonte Nova. O prólogo de sua carreira fechava-se com chave de ouro.

Nem viajaria com a delegação para o resto da Copa. As chances de classificação eram mínimas e a Bahia tem um jeito.

O calcanhar, a bola na rede, o goleiro no chão mais uma vez o consagravam. Eram partes famosas de seu repertório.

O braço erguido ninguém entendeu.

Era uma homenagem a outro camisa oito por quem, ainda menino, se encantou. 

O viu jogar, não na Bahia, mas na Espanha, defendendo a seleção brasileira contra a seleção da Itália.

E de punho cerrado, gritou:


- Va fan culo, Materazzi!

Resultado: Suíça 2 x 1 França. Gols: Drmic, aos 4 min; Shakiri, aos 78 min. Ele, aos 88 min.
O texto é do Luís Nader, nosso querido "Luís Bom Motivo". Um bom motivo, sem dúvida!

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