Desde
janeiro deste ano, este caos. A média de temperatura é de trinta
graus. Trinta. E se é média, teve dia de quarenta graus na sombra.
Ou mais. São Paulo derrete a céu aberto. E o pior, anos de incúria,
alguma desorganização, muita falta de planejamento e um azar
monstruoso fazem a cidade, a região metropolitana, o estado, viverem
o racionamento de água constante. Como não chove, não há nos
reservatórios mais nada além de pó. E terra. Um calor tenebroso,
nauseabundo. As ruas cheiram perfumes vencidos. As pessoas se jogam
em piscinas de clubes, de motel, de casas para tomarem banho. Nunca
se vendeu tanto cloro, as lojas já acusam falta de mercadoria e o
medo, o pânico, o transtorno é faltar ainda mais higiene nesses
novos banhos públicos.
A
prefeitura comprou água de estados vizinhos e vez por outra
abastece, aos esguichos, ruas e praças da cidade. Até a praça
Buenos Aires, no cheiroso e limpinho bairro de Higienópolis, recebeu
uma dessas duchas públicas. O ex presidente FHC conclamou os pares
do bairro para o banho, com medo de baixa adesão. Porque
simplesmente não há mais água nas torneiras quatrocentonas. É o
caos. O presidente vestiu sunga e junto com o prefeito, numa inédita
união entre petistas e tucanos, tomou uma duchona alegre. E o calor,
continua. Intenso, inclemente, sufocante. E o cheiro de mijo pela
cidade se espalha e está natural, aceito, brisa.
É
neste clima que a copa chegou. Sim, é verdade que tentaram adiar os
jogos, jogar sal nas nuvens, encher o sistema Cantareira com água
transposta do mar, do Rio Paraguai, do Pantanal. O medo, justificado,
era a fedentina tomar conta da cidade de forma que a imagem
internacional da cidade, do estado e do país fossem para o buraco.
Iam, de fato. Mas havia solidariedade internacional: chegavam galões
de água de todo mundo com destino a paulicéia.
As
autoridades resolveram manter os jogos da copa. Afinal, é o Brasil
ame ou deixe-o, a nova pátria mãe gentil. Os protestos de junho de
2013? Sinceramente, em fevereiro, até o carnaval, foram intensos.
Mas a falta dágua deu um cecê monstro a qualquer tipo de
manisfestação coletiva. O calor abrasivo impedia multidões.
Vendia-se mais e mais daqueles guarda-chuvas chineses, para virarem
sombrinhas. As pessoas ficavam em casa, quase sempre nuas. A cidade
vivia um boom de gente pelada pelas ruas, o que atraía multidões de
novos turistas. Mas era triste o contraste se pensarmos que não
havia mais água na cidade. Era uma nudez fora de erotismos. Pensando
assim, a cidade estava até mais humana, solidária, sem máscaras.
Era
este o clima para Uruguay e Inglaterra no estádio do Corínthians.
Os ingleses eram apupados em todas as esquinhas, desde a chegada ao
hotel na marginal. O motivo? Eles trouxeram água inglesa e só
comiam produtos lavados ou feitos com esta água. Imagina o quiprocó,
o nacionalismo brasuca... era como se os ingleses voltassem a ser a
metrópole usurpadora de outrora e não a tia senil dos Estados
Unidos. Por isso os uruguaios deitavam e rolavam. Muitos brasileiros
vendiam ingressos no câmbio paralelo, porque pouca gente tinha
coragem para enfrentar mutidões nesse calor horrendo e sem água na
cidadona. E foi uma invasão oriental. Camisas do Peñarol, do
Nacional, do Danúbio, do Cerro, da Celeste. Os uruguaios, de banho
tomado, estavam em casa. Itaquera era Montevidéu.
Aos
dois minutos de jogo, Forlan. Aos oito, Suarez. E nas comemorações
o uruguaio fez troça, bebendo uma garafinha de água brasileira como
a dizer para os ingleses “imperialistas de mierda”, “não
solidários”. Aos dezoito, a iminência de uma goleada cósmica:
Cavani.
O fato
é que os esnobes ingleses, em campo, iam sendo derrotados. A premier
league não poderia conviver com aquele furdunço. De repente, chove.
Uma chuva de anos. Pela cidade pipocam rojões, saramaleques, há
danças da chuva. Há gentes peladas nas ruas, dos Jardins aos mais
distantes bairros da periferia. As notícias davam conta de
alagamentos, mas que as pessoas se banhavam, de sabonete e tudo, nas
águas torrenciais. O jogo foi paralisado.
Voltaram
a jogar no dia seguinte, só. Sim, a copa de todas as copas já tinha
sua página de Noé. Na continuação do jogo os ingleses fizeram um
gol, mas Lugano calou a rainha numa cabeçada monumental.
O
calor? Desaparecera, por completo. Agora temiam neve....
Uruguai 4 x 1 Inglaterra, Itaquerão, 19/06/2014 (Forlan, Suarez, Cavani e Lugano; Gerrard)
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