Quando a redonda girou no ar, saindo dos pés do Gérson, ela voou pelo céu até se aninhar no peito de Pelé. Talvez esta cena seja a descrição mais linda do que pode ser o futebol. Algo inexato, mas absolutamente matemático - parábola, equação, geometria euclidiana. Algo absolutamente complexo, mas simples, tão simples quanto um beijo, tão complexo quanto. Eu não me canso de ver este gol de Pelé contra a Tchecoslováquia, acho que é o gol de desempate. Porque Gérson estava ali e Gérson era o camisa dez do meu São Paulo. E porque o lançamento de Gérson é a prova mais translúcida de que há divindades no futebol, porque há algo místico, mistério, fantasia naquele passe que a ciência somente não conseguiria explicar. Ouça o tapa na bola e ouça o estufar da pelota branca no peito do Rei. E a bola na rede. O barulho da bola na rede, que som delicioso. Quase tudo nesta sinestesia e seria capaz de descrever tudo o que fiz naquele dia, como se fosse ontem - o que comi e bebi, o que vesti, o que conversei, o que amei. Memória.
Acontece que nasci em 72, dois anos depois da parábola de Gérson. Gérson já tinha voltado para o Rio de Janeiro, depois dos campeonatos paulistas de 70 e 71. Pedro Rocha já era o meu Pelé particular. E na copa de 74 nem Pelé, nem Gérson e, lamentavelmente, nem Pedro Rocha, jogaram. Jogou Rivelino, outra divindade. E tinha a Holanda de Cruiyff. Sou capaz de narrar os jogos, de descrever o baile que tomamos da Laranja, de Luís Pereira tentando salvar a nossa honra, de dizer que tivéssemos sorte no primeiro tempo poderia a história ser outra. Descrevo com rituais a derrota do Zaire por nove gols contra a Iugoslávia. E que suamos sangue para fazer três contra o mesmo Zaire para poder se classificar no saldo de gols contra a Escócia!
As memórias no futebol são assim. A gente descreve coisas que não viu, mas sente. Sempre. Porque é outro lugar que me aquece. As memórias são construções de sentimentos, sensações, experiências, saberes, dores, gostos, bebedeiras, loucuras, amargos, prazeres, amizades, saudades. O fato em si, aquele que para uns é tão tão importante, o factual, fica num outro lugar, talvez frio, talvez quente, mas outro. O exemplo mais exemplar do que quero tratar neste texto inaugural das memórias da copa de 22 é o último jogo do Brasil na única copa que realmente existiu, a de 1982: Quase nos acréscimos o genial Oscar, o melhor zagueiro de todos os tempos, subiu no último andar e testou firme... aquela bola entrou, ouço o gol na voz de José Silvério. Mas Zoff, o terrível goleiro italiano, fez a defesa, inacreditável, inapelável, transcendental. O fato é este, a defesa de Zoff. A memória... aquela bola tivesse entrado, a vaga era nossa e até as "Diretas Já" tinham passado em 1984, tamanha a força daquele testaço bestial.
São tempos estranhos. Eu, sinceramente, não consigo mais ter memórias sobre a seleção brasileira. Aliás, mesmo no futebol, as memórias vão se esvaindo. Pode ser a crise que o meu time se meteu por chafurdar na arrogância depois de ter sido o único tricampeão brasileiro com três triunfos consecutivos e insuperáveis de todos os tempos e se meter numa refrega as divindades do futebol por causa de uma infausta "taça das bolinhas" - ao reivindicar algo que não lhe pertencia, o tricolor da moeda em pé atraiu demônios que até hoje são sapos enterrados na relva - tenha a ver com isso. Mas não é só, sabemos. Escutando meu desejo, é menos recuperar a capacidade de devaneios com a seleção brasileira mas de revivenciar o chamego com a construção de memórias. Quem sabe os ares mais respiráveis que sopram em razão das eleições - com a derrota do sombrio e da infâmia - possam redesenhar possibilidades? Oxalá! E Richarlisson possa ser um novo Falcão!
Falcão, volante mais que estupendo, que deve fazer parte das memórias do meu querido amigo Guilherme Goulart, colorado e candango por adoção. Foi Goulart o muso deste texto: numa brincadeira num desses grupos de zap ele me questionou se este ano escreveria sobre a copa, como fiz nas últimas. Eu fiz muxoxo. Mas ele foi generoso nos adjetivos, me conquistou - leonino que sou. Mas o argumento definitivo foi outro: ele estava em dúvida entre Simone e Lula antes do primeiro turno das eleições e eu escrevi: "Vota no Lula desde já, que eu escrevo sobre a copa". Batata. Batata assada na churrasqueira, fica bom.
Vamos lá! A copa está chegando! Que venham boas memórias e encontros.
2022. novembro, 03.
Gérson e Pelé:
https://www.youtube.com/watch?v=PdvvJVlpRfU
Ps: A frase do título do texto era um bordão do narrador Fiori Gigliotti. Fiori narrava na Bandeirantes e José Silvério na extinta Rádio Panamericana, que chamavam de Jovem Pan.